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Quantos livros não há por aí em que o nome do tradutor não aparece senão na ficha técnica? Conheço também livros (normalmente traduzidos para o inglês) onde nem na ficha técnica põem o nome de quem os traduziu. Agora, nós por cá temos esta originalidade: um livro em que, na capa, aparece apenas o nome do tradutor, relegando o autor para a ficha técnica.
E esta, hein?
Ora, há que começar por dizer que é raro uma palavra poder ser traduzida por uma só palavra noutra língua. Muitas vezes, a uma palavra corresponde uma expressão (e vice-versa). É possível imaginar casos em que o tradutor tem de escrever um parágrafo inteiro para traduzir uma só palavra. Outras vezes, uma frase inteira pode ser traduzida por uma só palavra.
Dito isto, e tendo em conta o que disse no primeiro post deste blog (não existem palavras intraduzíveis), desafio quem julgar ter encontrado a mítica Palavra Intraduzível para pensar no seguinte: consegue explicar o significado dessa palavra? É provável que consiga. Descreva o significado o melhor possível, usando todas as palavras que quiser.
Pois bem, agora traduza essa descrição para a língua que desejar. Pronto: a palavra intraduzível está traduzida! E, provavelmente, um tradutor experiente conseguiria traduzir usando muito menos palavras — e, seja como for, a tal Palavra (aparentemente) Intraduzível, se estiver integrada numa frase, irá ter um significado mais preciso e mais facilmente traduzível.
Sim, é verdade: traduzir é muito difícil. Mas nunca é impossível.
Não acredito em palavras intraduzíveis. Não posso provar que não existam (ninguém pode provar que X não exista nalgum ponto do universo), mas considero-as tão improváveis como um unicórnio voador. E julgo não errar muito se disser que não há ninguém no mundo que tenha encontrado um desses unicórnios ou uma dessas palavras.
Conheço quem ache estranho ter muitos livros por ler. Ou seja, segundo algumas pessoas, os livros que temos nas estantes de casa devem ser os livros que já lemos — se assim não for, incorremos no pecado da hipocrisia, como se ter um livro na estante tivesse necessariamente de querer dizer que já o lemos e se não o fizemos estamos a enganar as pobres pessoas que querem saber tudo o que está dentro da nossa cabeça.
Pois eu tenho mesmo muitos livros que ainda não li. Não faço ideia se são a maioria dos livros que tenho (julgo que não), mas são muitos.
Pois ao folhear o The Black Swan de que vos falei há pouco, aparece-me este parágrafo magnífico sobre esse assunto (traduzo directa e livremente, embora haja tradução "oficial" em português — só que não a tenho aqui):
O escritor Umberto Eco faz parte dessa pequena classe de académicos que têm um conhcimento enciclopédico, são perspicazes e não são nada aborrecidos. É o proprietário duma grande biblioteca pessoal com trinta mil livros e costuma separar os visitantes em duas categorias: aqueles que reagem com um "Bem! Senhor Professor Doutor Eco, que biblioteca tem aqui! Quantos destes livros já leu?" e os outros — uma pequeníssima minoria — que percebem este simples facto: uma biblioteca privada não é um apêndice para nos afagar o ego, mas sim uma ferramenta de investigação. Os livros já lidos valem muito menos do que os livros por ler. Uma biblioteca deve conter tanto quanto possível de tudo aquilo que não sabemos — tanto quanto permitirem as nossas finanças, a nossa hipoteca e a crise do mercado imobiliário. Acumulamos conhecimento e livros à medida que envelhecemos e o número cada vez maior de livros por ler nas nossas estantes olha para nós de forma ameaçadora. De facto, quanto mais sabemos, maiores as filas de livros por ler. Chamemos a esta colecção de livros por ler uma "anti-biblioteca".
Já agora, para quem não confiar nos meus dotes de tradução, aqui vai o original:
“The writer Umberto Eco belongs to that small class of scholars who are encyclopedic, insightful, and nondull. He is the owner of a large personal library (containing thirty thousand books), and separates visitors into two categories: those who react with “Wow! Signore, professore dottore Eco, what a library you have ! How many of these books have you read?” and the others - a very small minority - who get the point that a private library is not an ego-boosting appendage but a research tool. Read books are far less valuable than unread ones. The library should contain as much of what you don’t know as your financial means, mortgage rates and the currently tight real-estate market allows you to put there. You will accumulate more knowledge and more books as you grow older, and the growing number of unread books on the shelves will look at you menancingly. Indeed, the more you know, the larger the rows of unread books. Let us call this collection of unread books an antilibrary.”
É este o ponto de partida do livro de The Breast, um livrinho de Philip Roth que acabei de digerir.
Não vou fazer muitos comentários. A incomodidade que o leitor sente em ver um tema kafkiano transformado numa farsa sexual tão crua é, parece-me, um dos objectivos do autor. (Vários académicos da minha área acabaram de bater com a mão na testa aos gritos: "Os objectivos do autor? Mas que pouca vergonha é esta?")
Não fazendo muitos comentários, deixo-vos com a capa de A Transformação, que é a fonte directa do tema de Roth.
Ah, pois...
Estou a falar de A Metamorfose, que uma nova edição que anda por aí nas bancas transformou numa transformação. Não desatem já aos gritos: o tradutor justifica a opção — e o editor até deixa o título mais comum, em letra pequena, por baixo do título correcto (segundo o tradutor).
Isto faz-me lembrar o Monte dos Ventos Uivantes, um título que já adornou as capas do Monte dos Vendavais...
Pois, isto foi assim: quando comecei a faculdade, vinha todo entusiasmado. Mal os professores davam as bibliografias, lá ia para as livrarias à procura dos livros que tinha de ler.
Sim, eu era desses.
Perdoem-me lá e avancem.
Pois bem, numa das primeiras disciplinas que tive, Introdução à Literatura Inglesa, ou algo assim, havia um livrito que tinha de ler. O famosíssimo Beowulf.
Ora, que o tinha de ler já sabia pelos resumos das cadeiras no site da faculdade, onde apareciam os títulos, mas não propriamente as edições recomendadas.
Armado com um entusiasmo provavelmente pouco saudável, ainda antes da primeira aula, lá fui comprar o Beowulf.
Ora, na Fnac, estava à venda, estranhamente, uma edição que reproduzia, com glosas lateriais, o texto original, em Old English.
O início da obra era este:
Hwæt! We Gardena in geardagum,
þeodcyninga, þrym gefrunon,
hu ða æþelingas ellen fremedon.
Oft Scyld Scefing sceaþena þreatum,
monegum mægþum, meodosetla ofteah,
egsode eorlas. Syððan ærest wearð
feasceaft funden, he þæs frofre gebad,
weox under wolcnum, weorðmyndum þah,
oðþæt him æghwylc þara ymbsittendra
Pois...
A professora, na primeira aula, lá explicou que a edição que queria era uma edição traduzida para inglês moderno.
Lá voltei à livraria, para comprar uma edição compreensível.
Não que a compra tenha sido totalmente despropositada. Afinal, o Beowulf era aquilo — e não deixa de ter o aspecto de língua nórdica, de saga antiga, de velhas aventuras em mares frios, mesmo sem percebermos uma palavra que seja.
Ah, os ð e þ são lindos.
E lermo-lo em tradução moderna deve pôr o Jorge Luis Borges a dar voltas no túmulo.
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