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Este não vai para a série "livros da minha vida", mas está lá quase. Este foi dos poucos livros que me deixaram de lágrima ao canto do olho. É lá mais para o fim, e o culpado é um cão a correr. 

 

Estou a falar de O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, editado pela Tinta da China.

 

 

Como sempre, o livro é muito o que se conta — e o que se conta é o retorno a Portugal duma família de portugueses angolanos, os famosos retornados — mas também como se conta, e o como se conta é uma deliciosa voz adolescente no turbilhão dessa história bem real que parece já esquecida tão poucas décadas depois, a história dum exílio de um milhão de pessoas, exílio por que poucos povos passaram e que nós, Portugueses, para o bem e para o mal, integrámos nas nossas vidas como se não tivesse sido nada. Em termos nacionais, foi como se tivéssemos caído duma altura de muitos metros e depois bastasse um "já passou" dos nossos pais para ficar tudo bem. Não sei até que ponto ficou mesmo tudo bem ou decidimos inconscientemente não falar mais do assunto.

 

Podemos não falar, mas o assunto é imenso e muito bem tratado nas mãos de Dulce Maria Cardoso. A tal forma como se conta inclui as palavras desses outros portugueses, como machimbombo, as conversas desses outros portugueses, incluindo as conversas que nos arrepiam, mas que são parte de nós. E o que se conta é também o certo desprezo da população em relação a estes outros portugueses, e o trauma do desenraizamento, e tudo o mais que podemos falar assim como quem não quer a coisa num blog levezinho, mas que este romance nos atira à cara com estrondo, para nos fazer sentir essa dor bem real por que tantos de nós passaram — e, com essa dor, sentimos o imenso de prazer de ler uma história muito bem contada.

 

Não interessa muito o que digo aqui, para dizer a verdade. O romance é dos melhores que li nos últimos anos, e não há perdão possível para quem não ler esta obra já a seguir.

Será que era só eu que adorava o cheiro dos livros da escola, as cores, os gráficos e aquela sensação de antecipação: "então é isto que vou aprender este ano?"

 

Se calhar era só eu... 

 

Duvido. Mas pronto. 


Neste post falei de manuais e literatura nos manuais e por via dum comentário duma ilustre leitora deste blog, lembrei-me que foi com um livro de português do 8.º ano que cheguei a Mário de Carvalho.

O livro tinha o conto integral "A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho”. Como não tenho aqui esse meu livro de Português, fiquem com uma edição mais actual (não a mais recente, que como sabem o mercado de transferências de escritores anda ao rubro):

 



Se já leram, sabem como é deliciosa essa história. Este conto mostrou-me o que pode fazer a literatura — e ainda me deu um gosto especial pelos nomes das avenidas de Lisboa. Afinal, aquela “Avenida Gago Coutinho” tinha todo um sabor de avenida cheia de carros, nos anos 80, onde chefes de polícia atrapalhados combatem tropas mouras. 

 

Desde então, tive uma paixão por esse autor que tenho por quase nenhum outro autor português. Mistura a aparente leveza da linguagem com uma riqueza de vocabulário e um gosto pelas histórias e pela língua que seduz um miúdo no oitavo ano dado a estas coisas. 

 

Algum tempo depois, fui a uma feira do livro na minha escola primária. Foi uma visita engraçada: lembro-me de ter achado que voltava a um sítio onde estivera quando era novo. Ou seja, do alto dos meus 16 anos, sentia-me mais velho, quase adulto, a visitar um local da infância. Que tolo!...

 

Encontrei por lá um livro na altura muito recente: Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Não é a obra mais típica do autor, mas é provavelmente a sua obra-prima. Ao lê-lo, esperando uma história ao estilo da Inaudita Guerra, fui ficando com um sabor diferente na boca, um sabor inicialmente metálico, depois calmo, ponderado, até que tudo aquilo começa a picar-me doutra forma e fiquei com o livro no palato durante muito mais tempo do que até então estava habituado nas minhas leituras de puto. 

 

 

Algo curioso: um romance supostamente histórico, passado no Império Romano, fez-me ver o que até então não tinha visto no que toca à questão das seitas, que nessa altura era a mania du jour dos opinadores nacionais (e ainda nem sequer havia blogs!). As seitas (IURD, etc.) eram a praxe da altura, se bem me entendem. 

 

Enfim, com o tempo, tornou-se num autor que quero ler logo que sai um livro. Já no início deste século, quando comecei um mestrado, li este outro livro, que já era uma espécie de Inaudita Guerra em ponto grande. 

 

 

Há um pormenor no livro que me faz abrir todas as edições que encontro, para ver se o editor não se esqueceu de fazer uma alteração ao texto. É este ponto:

 

 

O número de página tem de ser actualizado conforme a edição... E, normalmente, é isso que acontece.

 

É isto que Mário de Carvalho faz: brinca com os textos, as edições e os leitores. Muito pós-modernista, diriam alguns. Muito bom, digo-vos eu.

Como vos disse, estou em casa dos meus pais, e pus-me a olhar para os livros que temos por cá. Uma série de enciclopédias, de colecções do círculo de leitores, muitos livros infantis e juvenis, alguns romances da minha mãe, os livros dela quando era nova, alguns livros dos meus irmãos — e muita coisa que acabou por ser importante para mim há muitos anos, mesmo que tenha escolhido deixar os livros por cá…

Há bocado os meus olhos repousaram na colecção do Círculo dos Leitores das Obras completas de Júlio Dinis.

 

 

O ano da colecção? Não sei. Porque o raio do Círculo dos Leitores faz uns livros muita giros para pôr nas estantes mas esquece-se de pôr o ano da edição na edição em si!

 

Se conseguisse, tinha posto uns três ou quatro pontos de exclamação na frase anterior. Mas é algo que não consigo. Tenho um bloqueio qualquer. Para mim, um ponto de exclamação já é caso de indignação ao nível dum ovo atirado à cara dum ministro.

 

Pronto, fim de indignação muito académica.

O Júlio Dinis (Tio Júlio para os amigos) é daqueles autores vagamente simpáticos que são considerados pelos meios literários apenas ligeiramente acima, sei lá, da MRP — e o ligeiramente acima é apenas porque o senhor já morreu há muitos anos. Não é por mal, mas o senhor escrevia uns romances um pouco açucarados e não é fácil escrever grandes dissertações em que se afirma que “Portugal estava todo lá”. Não, Portugal só pode estar todo lá no Eça. Portugal de antanho está também um pouco no Camilo. E o Garrett é que é que até fazia textos a dar para o modernos. Júlio Dinis? Ui, que coisinha sem sal. 

Ao contrário do que o tom ligeiramente irónico do parágrafo acima possa fazer crer, até concordo com essa análise. Se querem ganhar tempo a ler autores do século XIX, há muito melhor do que o tio Júlio.

(Já agora, uma nota rápida para vos dizer: já viram que, do século XIX, pouquíssimos autores sobrevivem? Ai, o tempo, o tempo, que até os imortais mata…)

Apesar disso, os livrinhos do tio são livros bons, talvez não como literatura de adultos, mas para jovenzinhos a iniciarem-se na literatura, talvez naquela transição entre o Clube das Chaves e outros voos mais sólidos. Digo isto como descrição do que se passou comigo...

Houve uma altura aí entre os meus 12 e 15 (não me lembro bem), em que li esta colecção toda de enfiada. Aquilo sabia bem ao gosto pouco atrevido do miúdo bem comportado que eu era — e já sabia a coisa séria. E tinha a vantagem de conhecer um Portugal interessante, o Minho do século XIX.

Como sempre, lembro-me de algumas imagens, de alguma emoções: da palavra trigueira, duma tradição qualquer relacionada com as colheitas, duma estrada entre o Minho e Trás-os-Montes... Lembro-me ainda de ter ficado surpreendido ao perceber que As pupilas do senhor reitor não tinham a ver com os lindos olhos do tal reitor.

E lembro-me dos sítios onde li a colecção, hábito que ainda durou uns bons e largos meses...

 

Lembro-me dum chalet das Astúrias onde fiquei com os meus pais numa viagem por terras de Espanha. Há uma foto em que estamos a sair do tal chalet e eu com uma carga de livros na mão, os meus irmãos a brincar à minha volta. Era uma casinha romanticamente instalada no meio dos Picos de Europa, nessa região espanhola onde devia ter levado o Alexandre Herculano para ler e sentir o peso da Ibérica visigótica, com o Eurico, o Presbítero. Mas fiquei-me com o açucarado Júlio. Enfim, não tinha noção do espaço literário, é o que é.

 

Lembro-me também da casa de férias duns amigos dos meus pais, uma casa de pescadores antiga e saborosamente imperfeita, em Ferragudo, muito diferente do Algarve que quase todos conhecem — casa onde li à sombra duma oliveira no pátio interior. E lembro-me de estar na casa de banho dessa casa algarvia, casa de banho que ficava no pátio, a ler, enquanto todos estranhavam a demora.

Lembro-me de haver uma página em branco num dos livros e ter ficado irritadíssimo com isso...

E, por fim, lembro-me do que não li: Uma Família Inglesa, logo aquele que é o romance mesmo assim mais vem considerado do autor, e um que até poderia ter sido útil no meu curso. Enfim, nunca fui muito de ler por obrigação e o entusiasmo pelo autor durou uma série de meses mas desapareceu nas primeiras páginas da família inglesa, que mesmo assim consegui perceber que vivia no Porto, o que me parece muito típico para ingleses portugueses, que também os há.

 

Enfim, se o Tio Júlio não valer por mais nada, vale por essas recordações...


A colecção incluía tudo, incluindo rascunhos, contos por criar, etc. Por algum motivo, fiquei intrigado com aquilo e deu-me vontade de escrever. Escrevi contos juliodinisianos, armado em adolescente escritor, que espero já tenham desaparecido na voragem das mudanças de casa. Felizmente, nunca me deu para achar que a coisa era interessante. Tinha, de facto, a comichão de escrever, algo que todos os leitores, mais cedo ou mais tarde, sentem (pelo menos no nosso poético Portugal). Felizmente, entretanto apareceram os blogues para coçar essa comichão de escrever que tantos temos.

 

Deixo-vos com este início da Morgadinha, que sempre achei um início saboroso, com uma estrada, entre duas velhas províncias — mas isso sou eu, que sempre me dei muito bem com estradas e livros...

 


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