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Ao contrário do que diz Fernando Lopes, o «cristianismo cultural» não tem nada de mal. O cristianismo vivido como verdade absoluta, esse sim, como todas as religiões, pode descambar em extremismos.
Os meros ritos são parte de todas as sociedades, podendo estar mais ou menos vazios sem que mal venha ao mundo. O baptismo, o casamento, a morte: todos estes passos são acompanhados de cerimónias com mais ou menos conteúdo ideológico, com mais ou menos flores e embrulho religioso, mas é quando as pessoas acreditam de forma fervorosa em tudo que as coisas descambam (ou podem descambar).
Por isso, não, não tenho medo de quem baptiza porque é tradição e há festa. Tenho muito mais medo de quem baptiza porque tem a certeza absoluta de todos os dogmas e quer um filho tão aceso como ele.
Felizmente, as nossas sociedades passaram por esses processos de separação da Igreja do Estado e ainda de esvaziamento da religião, o que só posso encarar como saudável.
Aliás, esse esvaziamente da religião é o que falta ainda em grandes partes do mundo islâmico: precisam de relativizar as coisas, manter a tradição cultural (que promove a coesão social, sem que nos sintamos invadidos por outras culturas) sem aquela certeza aguda que impele muitos a matar os infiéis.
(Só uma nota literária: uma óptima descrição da religião vazia será os ritos romanos descritos por Mário de Carvalho em Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. O livro mostra, entre muitas outras coisas, o confronto entre a religião que é já só ritos e uma religião, naquele caso o cristianismo, ainda tão viva que estraga muitas vidas. Mesmo que não concordem com este post, aproveitem para ler esse livro. Vale a pena.)
Lembram-se dos homenzinhos que invadiram a Ucrânia? Todos sabemos que eram russos, mas a Rússia, com um sorriso nos lábios, dizia que não.
No caso dos terroristas que nos andam a dar cabo da tranquilidade, muitos de nós acham mesmo que são agentes que matam apenas porque sim, sem qualquer base ideológica.
Percebo porque caímos neste erro: não queremos acusar toda uma religião de ser a base deste terror.
E, de facto, o inimigo não é o Islão — mas tem um nome e é real.
Lembram-se do fascismo? Daquela ideologia assassina que invadiu muitas mentes europeias, muitas delas bem inteligentes e informadas, na primeira metade do século XX. Podemos mesmo dizer que ainda não desapareceu completamente.
Ora, o fascismo ligou-se, em muitos países, à religião cristã. E, no entanto, parece-me claro que não podemos acusar os cristãos, em conjunto, de serem fascistas.
O mesmo se passa no Islão: há uma corrente política que se afirma muito religiosa que tem um cariz fascista e que nos anda a aterrorizar.
Essa corrente não é o Islão. É uma corrente minoritária dentro desse Islão que se afirma como a mais pura das interpretações dessa religião.
O nome é wahhbismo e teve origem na Arábia Saudita. Se quiserem saber mais sobre o movimento, podem começar pela Wikipédia. Leiam ainda este post de Nassim Nicholas Taleb.
Sim, o wahhabismo é fascismo puro e duro. Confundir este movimento com o Islão é o mesmo que confundir os movimentos religiosos de cariz fundamentalista (como o K.K.K.) com o Cristianismo no seu conjunto.
Agora, as más notícias: este movimento tem o apoio explícito de países que são, por motivos circunstanciais, aliados da Europa e dos E.U.A. Este movimento tem também muito dinheiro e tem espalhado esta ideologia pelas escolas religiosas do Paquistão e de muitos outros países, incluindo o Reino Unido e a França.
Esta ideologia ganha cada vez que a confundimos com o Islão. As primeiras vítimas são os muçulmanos moderados (a larga maioria). É ainda uma ideologia muito atractiva para os homens novos, aborrecidos do mundo, que gostam de radicalismo e odeiam o mundo brando da vida adulta.
Mais: tudo o que fizermos para a combater é usado para justificar o radicalismo. Há ainda todo um processo de vitimização que lembra a forma como Hitler aproveitou a sensação de humilhação dos alemães depois da I Guerra Mundial. Este fascismo — como os outros — aproveita o pior da natureza humana, mas é profundamente eficaz a arrebanhar as mentes de quem cai na armadilha. Reparem no Estado Islâmico: promete salvação eterna no futuro, escravas sexuais agora mesmo, a excitação da guerra e a recusa do mundo aborrecido do dia-a-dia. São ideias potentes.
É um problema. São, literalmente, inimigos. Esta ideologia acha que todos os infiéis (grupo em que incluem grande parte dos muçulmanos) são sub-humanos, sem qualquer possibilidade de redenção ou de compaixão. Para eles, matar 200 crianças infiéis é tão inócuo como jogar um jogo de computador.
Daqui nasceu a Al-Qaeda e o Daesh (ou Estado Islâmico).
O que podemos fazer? Não tenho grandes respostas. Mas julgo que não devemos confundir esta ideologia radicalíssima e profundamente errada com a tradição religiosa de milhares de milhões de pessoas, com a qual podemos concordar ou não, mas devemos respeitar. Podemos discutir abertamente com crentes de todas as religiões. Não precisamos de dizer que têm razão em tudo, mas podemos propor um quadro de abertura, onde todos possamos discutir e viver em conjunto.
No fundo, temos de nos aliar aos moderados. Temos de defender o humanismo, tenha ele a cor nacional e religiosa que tiver.
Podemos ainda pensar em depender menos dos países que propõem este fascismo radical. Estou a falar da Arábia Saudita, claro.
Podemos também tentar dar mais força aos muçulmanos moderados, para contrabalançar a terrível força do dinheiro do petróleo por trás da divulgação das ideias wahhbistas (com a noção que tudo o que fizermos será usado contra nós pelos wahhbistas, que pintarão os moderados como «vendidos ao Ocidente»).
Podemos ainda continuar a defender valores humanistas, que, embora não excitem as almas jovens, são a única possibilidade de vivermos em conjunto. Esses valores incluem ajudar quem precisa (incluindo refugiados muçulmanos), defender o direito a discutir ideias diferentes, aceitar a provocação do humor, deixar viver à vontade quem não prejudica os outros, criar instituições comuns que não imponham valores religiosos de qualquer tipo e por aí fora.
Sim, são valores que nem todos gostam (entre eles, muitos religiosos moderados). Mas são estes valores que nos salvam dos fascismos de todos os tipos.
Uma vez fui visitar Conímbriga com o meu avô e os meus pais. A viagem foi curiosa, mas já sabemos que visitar ruínas romanas exige sempre alguma concentração: é preciso um trabalho de imaginação para reconstruir na nossa cabeça o que ali estava — e o que ali estava era uma civilização de há 2000 anos (ia dizer "atrás", mas ainda levava uma traulitada). Uma viagem em família não é o ambiente ideal para essa reconstrução mental e para chegarmos àquele clique em que pensamos, bolas, havia aqui gente que tinha uma sociedade inteira e sólida e, entretanto, tudo acabou e veio a Idade Média e tudo e tudo...
(Isto faz-me lembrar a viagem de finalistas da faculdade, à Tunísia, em que fui com uma turma que não era formalmente a minha, por razões que agora não vêm ao caso, e, na visita a Cartago, ficámos boquiabertos com aquilo — porque aquilo era quase nada... Talvez volte um dia a falar dessa mítica viagem.)
Portanto, lá fomos até Conímbriga. Lembro-me de pouco mais, mas lembro-me duma conversa com o meu avô, que devia ter uns 70 anos por essa altura.
Perguntava-me o meu avô como era possível aos historiadores saberem seja o que for sobre aquela gente que por ali andava — afinal, como ele explicava, na vila dele nem a geração dos avós dele (meus tetravós) tinha registos completos... Perguntava-me a mim, porque, supostamente, eu era um gajo muito sabido de História (o meu sonho entre os 10 e os 17 anos era ser historiador). Lá balbuciei umas explicações, mas era difícil em poucos minutos dizer fosse o que fosse sobre o método da História, sobre o Império Romano, etc. e tal.
Agora, não me interpretem mal: o meu avô é uma pessoa inteligentíssima. E com esta pergunta mostra um cepticismo bastante saudável. Mas fez a escola primária nos anos 30, e não me venham com histórias: antigamente é que não era bom.
(Não me interpretem mal também noutra coisa: hei-de vos contar várias conversas com o meu avô em que parece que ele pergunta e eu tento responder. Mas, não se esqueçam, a questão é que eu tive a oportunidade de seguir pela escola fora, também por causa do meu avô, e há coisas um pouco mais teóricas em que me sinto mais à vontade. Mas nem por sombras sinto que sei mais do que o meu avô que tem hoje 85 anos. É impossível. Podemos não saber das mesmas coisas, mas 85 anos são melhores do que muitos anos de leituras para se saber coisas que só nessa altura saberemos o quão importantes são.)
Ora bem, isto agora enrolei-me um bocadinho, mas vocês percebem. Adiante.
Na mesma viagem, mas já de regresso, falamos sobre as idades das pessoas. Digo ao meu avô que hoje vive-se, em média, mais anos do que "antigamente", seja lá isso quando for.
O meu avô franze a testa: "Então, mas na Bíblia falam de pessoas com 800 e 900 anos."
Ups.
Eis-me perante o Grande Choque de Gerações.
Tento dizer que isso seria simbólico, ou algo assim. Quase que me atrevo a dizer que o Adão, se calhar, vamos lá ver, pois bem... Se calhar é uma espécie de história. Resposta do meu avô: ou se acredita ou não se acredita. A Bíblia é para se acreditar, ponto final.
Fiquei calado, confesso. Em Portugal, ao contrário dos E.U.A., nunca me pareceu que a religião fosse impeditiva de as pessoas acreditarem nos factos científicos. Afinal, lembro-me de ter Religião e Moral na escola e de ter uma professora que nos explicou a evolução darwiniana não para "dizer mal", mas para provar que o Antigo Testamento só podia ser metafórico, mas nunca literal, porque a ciência já tinha demonstrado que a Bíblia não era uma descrição literalmente verdadeira.
Com esses professores assim tão desempoeirados (se calhar fui eu que tive sorte), esqueci-me que, do fundo do sistema de ensino do Estado Novo, foram educadas gerações habituadas a um ambiente em que a Bíblia era uma Verdade absoluta e sagrada. Antigamente não era mesmo nada bom... (Também, há que dizer em abono da verdade, aprenderam outras coisas válidas. Mas isso agora não vem ao caso.)
Reparem: o meu avô tem o instinto céptico que o leva a duvidar dos achados arqueológicos de Conímbriga. Mas há ideias que são sagradas, também porque estão envolvidas numa série de recordações (as missas, a catequese, a escola de há muitos anos) que implicam uma ligação emocional forte a essas ideias.
Não pensem, aliás, que esse problema é exclusivo da geração dos nossos avós. É muito fácil todos nós cairmos em certos engodos: a astrologia, a homeopatia e essas interpretações literais de textos religiosos (e um grande et caetera). É tão fácil porque estamos pouco alerta para os erros dessas ideias. São ideias que sabem bem, são confortáveis, parecem fazer sentido e as pessoas que nos explicam estas coisas são muito simpáticas e, por vezes, importantes para a nossa vida. Confiamos nelas. Toda a vida acreditámos e, por vezes, parece que não acreditar é trair não essas ideias mas as pessoas que no-las transmitiram.
Já a ciência parece ser uma coisa mais fria e um pouco desmancha-prazeres. (Ah, mas pode não ser...)
Enfim, não há muito a dizer nem a fazer quanto a estes desencontros geracionais. O meu avô de 85 anos há-de ter mais sabedoria do que eu para lidar com situações como estas — e o certo é que nunca deixámos de falar, mesmo com esta barreira que outros acham intransponível.
(E se estão a rir-se da ingenuidade do meu avô, pensem em quantos amigos vossos acreditam nos horóscopos e parem lá de rir, se faz favor.)
E lembrem-se que teremos todos muita sorte se, aos 85 anos, ainda tivermos vontade de aprender.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Conimbriga.jpg
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