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As notícias sobre a recomendação de Guterres como novo secretário-geral das Nações Unidas foram muitas e em várias línguas. Encontrei um curioso texto no El País («Otro triunfo de la diplomacia portuguesa») em que a competência dos diplomatas portugueses é elogiada de tal maneira que, na pena dum português, seria um texto constrangedor.
Um dos parágrafos pareceu-me muito curioso (o negrito é meu):
Pero hay otra cualidad, no menor, que permite a este pequeño país distinguirse en el mundo: su educación lingüística. No hay dirigente portugués que no hable inglés y español, por lo menos. El citado Barroso, como Guterres o como los actuales dirigente del país, el presidente Rebelo de Sousa y el primer ministro Costa, se mueven con total comodidad en los escenarios internacionales gracias a su don de lenguas. No necesitan intérpretes para hablar con Merkel, Hollande o Teresa May. En seis meses, Rebelo de Sousa ha departido cara a cara con más dirigentes internacionales que Rajoy y Zapatero juntos en sus años de Gobierno. Esa cercanía, esa afabilidad con todos, sin prepotencias y sin menosprecios, al final acaba dando sus frutos.
Parece-me haver aqui uma generalização que, lá por nos ser muito simpática, não devemos encarar sem algum cepticismo. Mas vamos assumir que sim, que os portugueses têm um à-vontade com as línguas em grau muito superior aos espanhóis. Tenho uma ideia, não mais do que uma teoria malpensada, que me leva a sugerir isto: os espanhóis exageram na importância diplomática que dão à sua língua. Sim, o espanhol é falado em muitos países, é uma língua muito importante nos E.U.A., é a segunda (ou talvez a primeira) língua europeia mais falada no mundo. Tudo isso é verdade, mas não se traduz em importância diplomática. E para mudar isso há que saber falar outras línguas…
Nós por cá também gostamos de ir atrás de declarações sobranceiras sobre a importância da língua, como sabemos. Mas também é verdade que a nenhum líder português lhe passa pela cabeça exigir aos outros líderes mundiais que saibam português. Ficamos contentes se souberem alguma coisa, mas não achamos que é sua obrigação. Ora, talvez se dê o caso de muitos líderes espanhóis, embebedados pelo discurso superlativo com que falam sempre da sua língua, estejam mesmo convencidos que os outros líderes mundiais têm de saber espanhol.
Bem, e será que deviam saber? Como sempre digo, isto de aprender línguas, ainda por cima uma língua como o espanhol, só faz é bem. Mas a realidade, para já, é esta: o inglês e o francês são as línguas da diplomacia. A força do número de falantes de cada língua conta muito menos do que se pensa. Assim, o político ou diplomata espanhol que não saiba falar bem outras línguas nos corredores da política internacional acaba por ter mais dificuldades em defender o seu país. É caso para dizer: será que defende mais o seu país quem inventa um mundo inexistente em que a sua língua é muito mais importante do que é na realidade — ou aquele que sabe mover-se no mundo de hoje, talvez semeando alguma coisa do mundo que gostava de ter?
Enfim, é uma reflexão perigosa, porque começa numa generalização, passa por uma teoria muito minha e talvez acabe muito longe da realidade. Mas se houver algum fundo de verdade nisto tudo que acabei de escrever, também pode explicar a confusão que muitos espanhóis sentem perante a defesa por parte de alguns dos seus concidadãos das línguas minoritárias de Espanha. Então mas por que razão não querem falar uma das línguas mais importantes do mundo? A verdade é que querem sim senhor: falam espanhol e também a sua língua. E por vezes ainda o inglês, o francês, etc. Surpresa, surpresa: saber uma só língua não é uma vantagem em sítio nenhum do mundo. Um galego que saiba espanhol e galego já vai um passo à frente…
Bem, dito tudo isto, tenho de afirmar o óbvio: o espanhol é uma língua importantíssima e, para vos dizer a verdade, uma das minhas paixões neste mundo das línguas e das culturas. E também admito: se acima me queixo da forma como muitos espanhóis imaginam uma importância diplomática que a sua língua não tem, também me custa ver como tantos fora de Espanha desvalorizam essa mesmo língua. Basta pensar nos E.U.A., onde a segunda língua do país é vista por muitos como uma língua estrangeira, alimentando discursos xenófobos sob a capa do patriotismo americano. E basta pensar na recusa de muitos portugueses em saber mais sobre a língua e a literatura dos vizinhos, para lá do portunhol de praia. Temos tanta e tão boa literatura aqui ao lado e não queremos saber…
Mas este texto vai neste sentido: a convicção legítima da importância da sua língua não deve servir para encerrar os falantes de espanhol num triste mundo monolingue. Na diplomacia, por exemplo, isso dá mau resultado, como reconhece o El País. E não é só na diplomacia: na vida do dia-a-dia, na literatura, na cultura, no comércio…
E fica aqui uma pista para outro dia: os ingleses e os americanos são outros dos povos que sofrem deste triste monolinguismo, uma espécie de preço a pagar pela importância internacional da sua língua…
Este problema nós por cá não temos — isto, claro, segundo o El País. Agora também não quer dizer que não tenhamos muito a aprender no que toca às línguas. Oh, se temos!
O leitor Paulo Vieira enviou-me esta mensagem:
Ouvi-o na Prova Oral afirmar que a nossa língua vem do galego e estava agora a ler uma notícia do Público sobre os Lusíadas, a que fez referência no artigo da língua bastarda, e nessa notícia é dito que a obra tem uma forte influência do castelhano, língua que aparentemente era muito usada na corte.
Fiquei interessado e gostava de esclarecer quais as origens da nossa língua. Recomenda algum livro sobre o tema?
No final deste artigo, deixo algumas sugestões de leitura.
Mas antes, porque esta compulsão para escrever parece não ter cura, vou tentar explicar aquilo que sei (ou penso saber). Mas tenho de avisar: não sou linguista histórico. Sou um tradutor e professor que estuda linguística por motivos práticos e junta a isso uma paixão pela disciplina.
Pois bem: a verdade é que gosto muito da história da língua — e julgo ser este um tema que nos interessa a todos. Com base no que fui aprendendo ao longo dos anos, mas também com base na leitura dos livros e artigos que refiro no final, aqui fica o meu resumo (os erros, claro, serão meus e não dos livros e artigos — ressalve-se!).
Enfim: todos nós que dizemos falar português e todos os que dizem falar galego falamos qualquer coisa que teve origem nos falares da Galécia, ali no noroeste da Península. Durante séculos, o latim trazido pelos soldados e colonos romanos e adquirido por toda a população foi sofrendo transformações — não as podemos ver em tempo real, porque ninguém as registava ou escrevia, mas, muitos séculos depois, quando finalmente a língua começou a ser escrita, havia nesse território uma língua já formada, com verbos próprios, com formas próprias, com características que a identificam e a distinguem das outras línguas em redor.
Quando Portugal se tornou independente, começámos a usar a língua que existia no território, que era ainda apenas o Norte. Não a escolhemos de imediato, pois nos primeiros tempos o latim ainda foi a língua oficial. Mas, devagar, a língua que era de facto falada começou a infiltrar-se nos textos escritos, às vezes de forma imperceptível, outras vezes de forma mais clara.
O país expandiu-se para sul e, com ele, veio a língua, claro. O português nasceu nesse canto noroeste e expandiu-se até ao Algarve (e, mais tarde, até além-mar). Por alturas de D. Dinis era já a língua oficial.
Depois, no final do século XIV, temos revoluções, a batalha de Aljubarrota… — a nobreza nortenha perde influência, a burguesia lisboeta alça-se à posição de classe dominante (e tudo o mais que faz parte da História). Lisboa é agora a capital e a nação esquece-se que a língua veio do norte, não foi criada em todo o território nacional. O que se falava em Lisboa seria esse galego-português que viera para sul com a Reconquista. Houve, claro, algumas intrusões do moçárabe, a linguagem latina do sul (com muitos arabismos). Mas, nas suas estruturas e características principais, a língua que Portugal assumiu como sua é a língua criada na Galécia: não houve um ponto em que o galego e o português se tivessem separado claramente.
Não houve um ponto em que o galego e o português se separassem claramente. Mas há, isso sim, algum afastamento da língua padrão em relação ao que se fala mais a norte. Muito desse afastamento fez-se também por causa das influências externas. Com a corte em Lisboa, e durante muitos séculos (na época de Camões, por exemplo), o castelhano teve uma influência que hoje poucos imaginam. Os escritores portugueses também escreviam, muitos deles, em castelhano. Liam em castelhano. A igreja usava muito o castelhano. A corte também usava o castelhano. Era a língua de prestígio. As misturas eram inevitáveis…
Ora, o português popular de todo o país não sofreu estas influências de forma tão marcada. Assim, arrisco-me a dizer que o português popular manteve durante mais tempo uma maior grau de semelhança com o galego do que o português-padrão — talvez por não ter tanta influência castelhana. Principalmente no Norte, o português e o galego mantiveram-se tão próximos que a fronteira era difícil de traçar. Mais a sul, na Corte, na capital, a língua “desgaleguizava-se” (ver artigos de Fernando Venâncio citados abaixo). Para as elites lisboetas, o galego e o português do Norte começaram a soar a português da província. E, no entanto, era de lá que tinha vindo a língua…
Depois, o castelhano deixou de ser uma influência forte no português (aí por volta do século XVIII); vieram então as influências francesas e, já bem entrado o século XX, começamos a olhar para o inglês.
Sim, sempre fomos uma língua que sofreu influências fortes de outras culturas. Podemos não gostar do facto, mas é isso mesmo: um facto. Não fiquem horrorizados: o castelhano também teve vagas dessas, o francês idem — então o inglês nem se fala. Não percam muitas horas de sono com isso — e, depois, a língua vai atrás da cultura, neste ponto: se quisermos uma língua pura, temos de fechar a cultura a influências exteriores. As línguas mais puras são as mais isoladas, as menos importantes.
Para terminar este resumo muito resumido, diga-se que o português-padrão se expandiu de forma fenomenal durante o século XX, com a escola, a televisão, a rádio, a imprensa. Aí, as formas do sul começaram a suplantar as outras formas, que subsistem, mas com menos força. O português começou a tornar-se mais homogéneo (e menos nortenho/galego) — mas tudo isto já é história das últimas décadas…
Bem, quanto ao galego, lá em cima, num país sem corte, uma sociedade rural, não sofreu tanta influência castelhana até muito tarde, embora essa aparente pureza seja apenas reflexo do isolamento da sociedade. Grande parte da população galega, aliás, só terá começado a sentir a invasão da sua língua pelo castelhano quando a escolaridade obrigatória apareceu no horizonte — e a televisão, jornais, etc. Ou seja, para muitos galegos, o castelhano tornou-se influência no século XX (nas elites terá sido antes, claro). Apesar de tardia, a influência do espanhol é avassaladora, claro está. Aliás, chamar-lhe influência será um eufemismo cruel. O espanhol não influenciou o galego: o espanhol começou a substituir o galego. Afinal, o Estado é o espanhol e a escolaridade da população foi em castelhano até muito tarde. Ou seja, nos séculos XIX e XX, o galego levou uma coça de que ainda não se levantou, apesar de, desde os anos 70, o governo autónomo ter, oficialmente, uma política de defesa da língua.
Alguns galegos tentam aproximar a sua língua do português para assim melhor se defenderem do peso do castelhano; outros apostam num galego autónomo tanto do castelhano como do português. Mas que o galego e o português ainda estão mais próximos do que imaginamos, isso é indesmentível: então quando começamos a olhar para o vocabulário popular, aquele que muitos desprezam injustamente, começamos a ver como falamos uma língua que não deixa de ser muito galega.
… o português tem origem no latim popular falado no noroeste da Península, na Galécia Magna, língua essa a que podemos chamar galego por ser uma língua da zona do Reino da Galiza, uma língua já com características muito próprias séculos antes da existência de Portugal. Ao tornar-se a língua dum estado independente a sul, chamado Portugal, a língua passou a chamar-se português — e com esse nome foi transplantada para os outros países que a falam. Apesar das mudanças a sul, a língua mantém uma forte proximidade com o que se fala a norte da fronteira. Essa língua portuguesa, como é típico duma língua dum país de cultura aberta a outros povos, sofreu grandes influências exteriores: do castelhano, do francês, do inglês… Até hoje. Também nos dias de hoje as formas mais padronizadas do português começam a suplantar as formas mais populares entre a população em geral — enquanto na Galiza, o castelhano avança.
Isto é uma explicação simplificada, claro está. É ainda a minha forma de o explicar: outros dariam ênfases a outras partes ou acrescentariam pontos talvez importantes… Se alguém quiser corrigir, matizar, completar, os comentários estão abertos!
(Proponho ainda que dê uma vista de olhos pelas histórias romanceadas que escrevi e que tentam dar uma ideia do que foi o percurso do idioma nesses primeiros séculos: «História Secreta da Língua Portuguesa».)
Bem, mas a pergunta era outra: que livros de especialistas podemos ler sobre o assunto?
Proponho dois livros breves, recentes, sobre a História da língua:
Proponho também três artigos de Fernando Venâncio sobre o assunto (convém dizer que as aulas que o autor deu na FCSH, este ano, permitiram-me aprender muito sobre as origens da língua):
Há muitas pessoas que estão sempre a pensar nos erros de português (dos outros). Tanto que se esquecem de ouvir o que os outros estão a tentar dizer.
Em honra desses enervados da língua, deixo as únicas três sugestões que garantem um português sem erros (e mesmo assim não sei):
Vá, deixem-se lá de obsessões pouco saudáveis…
Quer isto dizer que não me preocupo com os erros?
Claro que me preocupo!
O que digo é isto: devemos dar mais importância aos nossos erros e um pouco menos aos dos outros.
Há excepções: os revisores são pagos para se preocuparem com os erros dos outros. Os professores têm como uma das suas muitas funções ensinar a evitar erros. Mas, tirando esses honrosos casos, andar para aí a apontar erros a torto e a direito não ajuda ninguém.
Mas há pior: há quem consiga andar sempre a queixar-se dos erros dos outrose não consiga escrever uma frase seguida sem erros (haverá perdão?). Pior ainda: há quem ande por aí a acusar os outros de erros que não existem. Mas desses já tenho falado muito por aqui. Vou deixá-los descansar só hoje.
Ora, espero que me permitam este atrevimento. Proponho alguns princípios para lidar de forma mais saudável com os erros de português:
Por último: podemos tentar ouvir os outros com algum respeito, mesmo que falem com erros.
O português é importante, mas as pessoas ainda são mais.
(Então e como dar menos erros? Bem, já aqui dei algumas ideias.)
Já que o meu outro blogue (não contem a ninguém!) teve uma inundação de novos assinantes nos últimos dois dias, lembrei-me de criar uma lista de alguns artigos do blogue que me parecem úteis para quem escreve em português.
Espero que gostem!
Aproxima-se o Mundial e, com ele, algumas bocas ou reflexões mais ou menos indignadas sobre o que significa mesmo ser português. Isto porque a selecção, de há uns anos para cá, tem integrado alguns jogadores que se naturalizaram portugueses.
Muitos ficam chocadíssimos com isto, porque acham que não são portugueses mesmo a sério. Outras pessoas não querem saber disso e só se preocupam se a selecção joga bem ou não. Podemos não gostar, mas a questão existe e convém falar dela.
Tudo isto radica em visões diferentes do que é a nacionalidade de cada um. Algumas dessas visões são francamente perigosas e, quanto a mim, erradas. Por exemplo, há quem junte à discussão alguns toques (quase sempre disfarçados) duma visão racial da nacionalidade: não pode ser português porque nem sequer é filho de portugueses. Para estes, mesmo que Pepe tivesse nascido em Portugal, não seria português. Para outros, o que conta é ter nascido em Portugal. Mas há filhos de emigrantes que chamamos portugueses e não nasceram cá. O lugar do nascimento define a nossa identidade de forma tão marcada? Porquê? Outros dizem que é necessário ter crescido em Portugal: ora, se crescer em Portugal garante uma relação com o país, não torna uma pessoa portuguesa. Basta perguntar ao (ainda) rei de Espanha. Sendo assim, o Pepe não pode ser português? Se não pode, por que razão não pode?
Tentemos pensar de cabeça fria (o que é dificílimo nestas questões).
Primeiro, Pepe ganhou a nacionalidade portuguesa de forma perfeitamente legal. Quando falo aqui de "nacionalidade", estou a falar do conceito jurídico de nacionalidade, ou seja, da relação de determinada pessoa com um Estado. De acordo com as leis portuguesas, Pepe é português. Pode votar em Portugal, pode ser eleito para tudo (excepto para Presidente da República, único cargo com uma restrição mais específica do que a nacionalidade: o Presidente tem de ser originário de Portugal, seja lá o que isso quer dizer). Se não concordamos com essas leis, podemos defender a sua alteração: mas ninguém pode negar que Pepe é, em termos jurídicos, português. Sendo assim, porque deveria ser excluído da selecção? Além disso, ao entrar na selecção portuguesa, escolhe conscientemente nunca poder vir a fazer parte da selecção brasileira. O critério para fazer parte da selecção é mais apertado do que o critério da nacionalidade, pois a lei não impede que um português mantenha uma outra nacionalidade. Pepe tornou-se português de forma legal e rejeitou a possibilidade de jogar na selecção do seu outro país. Nada a apontar em termos formais.
Agora, todos sentimos que ser português é mais do que aquilo que aparece no registo civil. O Estado é uma estrutura política, mas tem — ou pelo menos quer ter (e em Portugal certamente que tem) — uma ligação profunda a determinada nação, ou seja, a um conjunto de pessoas que se identificam com uma comunidade nacional (se a definição parece circular, é porque o é). Poucos portugueses concordarão a 100% com o que significa fazer parte dessa "comunidade nacional", mas quase todos dirão: significa falar português, significa ter uma ligação forte ao território português, significa qualquer coisa de indefenível. (Alguns serão mais tribais e obrigam a uma relação étnica com Portugal...)
A verdade é que tudo isto é importante e não podemos escapar a essa necessidade de fazermos parte dum grupo com características com as quais estabelecemos uma relação emocional (chame-se tribo ou nação). Mas digo-vos: ser demasiado rigoroso nestas definições só pode dar mau resultado. Não é por termos um jogador que nasceu no Brasil a jogar na selecção que vamos ter problemas. Estas misturas são boas, mesmo que o nosso sentimento tribal fique um pouco magoado.
Ao contrário do que possam pensar, o caminho da civilização implica reduzir a identidade baseada em critérios tribais, vagos e potencialmente perigosos, e ancorá-la antes a critérios mais legais, mais definidos e menos emocionais. É um caminho difícil, mas um caminho em que o Estado-Nação é já uma etapa mais avançada que a tribo ou a relação feudal. Ser português significa acima de tudo ter uma relação com o Estado português e não recusar activamente essa relação. Tudo o resto tem de vir por acrescento, mesmo que cada um de nós encontre nesse "resto" o sentido da nossa relação com o nosso país. O "resto" é importante, é talvez o mais importante, mas não podemos garantir que todos o partilhem. Os direitos e deveres dos portugueses existem colocando-nos em pé de igualdade perante um Estado e as suas leis. Sim, a relação emocional com o Estado baseia-se na nossa necessidade de identificação com um grupo, mas não se esqueçam de tudo o que já aconteceu quando se levou tal emoção às últimas consequências.
No caso do Pepe, a vontade de jogar na selecção foi o "resto" que o levou a querer ser português. Terá sido por interesse? Sim, interesse em jogar na selecção. E será talvez mais — não sei, não o conheço pessoalmente. Mas andamos todos pela rua a perguntar a cada um o que o leva a querer ser português? Somos portugueses porque crescemos cá, somos portugueses porque queremos trabalhar cá, somos portugueses por várias razões. Uma sociedade civilizada não pode importar-se com as características de cada um ou com a origem de cada um, desde que cada um aceite alguns pontos essenciais: falar a língua, aceitar as leis, defender o país (cada um à sua maneira). O Pepe falha algum destes testes?
Prefiro um país complicado, aberto, indefindo se preciso for do que um país que se esforça por ser puro, o que só pode dar muito mau resultado. A pureza nacional é um fétiche que já matou muita gente e que não nos traz nenhuma vantagem. Portugal devia ser mais do que uma ideia antiga de pureza, que de qualquer forma quase ninguém sabe definir muito bem. Vamos descontrair, aceitar que há portugueses com uns restos de sotaque divertidos — e que, já agora, a selecção jogue bem!
Sabem a origem da expressão “para inglês ver”?
A expressão tem origem brasileira… (Será que os portugueses ciosos da pureza do dialecto europeu do português vão começar a não querer usar a expressão? Espero que não!)
Lembrei-me da expressão ao ler este artigo da The Economist, onde a expressão é referida.
Referia-se, na sua origem, às leis aprovadas pelo Brasil para convencer os ingleses que estavam em processo de eliminação da escravatura — porque os ingleses andavam a patrulhar os mares em busca de barcos de negreiros. Têm aqui uma explicação (pela revista Veja).
Se acham que os ingleses estavam armados em bonzinhos, só a defender os seus interesses, não se esqueçam que estamos a falar da escravatura! Claro que estavam a defender (também) os seus interesses, mas e daí?
A escravatura é daquelas questões onde podemos ver um verdadeiro progresso moral. Podem dizer-me que ainda existe escravatura, e eu sei que sim. Mas, reparem: dizemos ainda. No sentido em que nos dias de hoje já não devia existir. Porquê? Porque o mundo já chegou à conclusão que a escravatura é qualquer coisa de abominável, sem qualquer excepção. Quem a pratica são criminosos, sem qualquer aura de credibilidade. O mesmo não acontecia ainda há dois séculos. Penso que será seguro dizer que o mundo não voltará a um estado em que a escravatura é aceite por vários países e praticada livremente. Há outros casos destes: mudanças de mentalidade que se cristalizaram e tornaram o mundo um lugar melhor — mas, para já, fiquemos com este.
Jean Baptiste Debret,Voyage Pittoresque et Historique au Bresil(1834–1839).
Há muitas pessoas que não gostam de ouvir a expressão "o comer".
Estão, obviamente, no seu direito. Aliás, convém perceber que a expressão não é nada bem-vista em certos círculos sociais e incentivar o seu uso pode levar a situações embaraçosas. É uma questão de etiqueta — e todos sabemos como, muitas vezes, a etiqueta é irracional.
A questão é outra: quem não gosta da expressão acusa quem a usa de estar a cometer um erro linguístico. Ora, o prevaricador estará, no máximo, a cometer um erro social (talvez enquadrado no estudo da pragmática), mas não um erro linguístico.
"Então mas 'comer' é um verbo: não podemos usar como substantivo!"
Não só nada impede as palavras de saltarem classes gramaticais, como esse fenómeno é muito comum, sem levantar qualquer questão. Reparem nas frases:
- "O saber não ocupa lugar."
- "O teu olhar é lindo."
"Saber" e "olhar" são verbos transformados em substantivos — tal como "comer" na expressão "o comer está na mesa".
"Tudo bem, mas se temos a expressão 'a comida', é um erro inventar outra expressão para dizer a mesma coisa."
A língua tem muitos casos de sinónimos ou palavras de significado parecido. "Saber" também tem significado semelhante a "sabedoria" e ninguém se importa. Por que razão havemos de impedir o uso de palavras só porque existem outras palavras com significado parecido? Teríamos de apagar dos dicionários uma enormíssima percentagem de palavras.
"Está errado e pronto! E cada vez oiço mais, infelizmente!"
O que acontece não é que cada vez se oiça mais esta expressão: há é cada vez mais contacto entre vários grupos sociais e, assim, todos estamos mais expostos à variação linguística — que, na realidade, tem vindo a diminuir ao longo das últimas décadas, devido à maior escolarização e a esses maiores contactos sociais.
Quanto a dizer que está errado e pronto, é habitual no comentário aos usos linguísticos dos outros. Mas é um comentário, este sim, errado. Uma coisa é o gosto pessoal de cada um e ninguém é obrigado a gostar desta ou daquela expressão — outra coisa é apontar o dedo a um suposto erro só porque sim.
"Só mostra o facilitismo que grassa por aí!"
A acusação de facilitismo nos debates linguísticos é muito... facilitista. Neste caso, não há qualquer facilidade em usar "o comer" em vez de "a comida". Há até um aumento das opções em termos de vocabulário, com uma maior dificuldade na escolha...
"Então porque tanta gente diz que está errado?"
Não sei explicar, mas tenho uma teoria: há expressões que ferem os ouvidos de algumas pessoas, como "funeral", "vermelho" e outras que tais, supostamente sinais de uma certa origem social. Ora, no caso de "o comer", quem tem esta sensibilidade demasiado apurada encontrou alguns pseudo-argumentos linguísticos contra o uso da expressão. Esses argumentos e ideias espalharam-se através de conversas, comentários, etc. — e acabámos por ter de lidar com o mito de que "o comer" é um erro linguístico. Não é um erro linguístico: é, como disse acima, um possível erro social, se a expressão for usada em meios sociais que a abominam.
Por isso, vamos todos respirar fundo. "O comer" não faz mal a ninguém. Pode ser, apenas, um pouco desagradável, por falta de hábito de quem ouve.
Tratem da fama e do comer,
Que amanhã é dos loucos de hoje!
— Álvaro de Campos, “Gazetilha”
Se ninguém se entende sobre as vantagens e desvantagens do Acordo Ortográfico de 1990 — e não vamos falar de quais são as tais vantagens e as tais desvantagens — todos podemos concordar que não há acordo ou consenso em relação a esta matéria. O que fazer a partir daqui?
Há quem defenda que devemos voltar atrás e recuperar a ortografia de 1945. Outros defendem a manutenção da ortografia de 1990, ou porque concordam com o Acordo ou porque acham que o esforço de voltar atrás já não vale a pena.
Há, no entanto, outra solução: revogar, pura e simplesmente, toda a regulamentação legal relativa à ortografia.
Reparem: a lei não define a pronúncia das palavras, não define a sintaxe das frases, não define o vocabulário. Não é necessário que defina a ortografia oficial — aliás, muitas línguas há em que a lei nada diz sobre as características da língua (basta pensar no inglês).
Alguns ficarão com medo: então, e depois? Deixamos de saber escrever?
Claro que não! Não aconteceria nada de dramático. A comunidade linguística tem mecanismos para chegar a convenções ortográficas, que iriam evoluindo naturalmente, como acontece com a sintaxe, o vocabulário e a pronúncia.
Neste caso, teríamos uma dificuldade não habitual: partiríamos para a "selva ortográfica" (estou a ser irónico...) com duas ortografias que, libertas da discussão jurídica, estariam em luta permanente pela preponderância na sociedade em geral. O Estado também teria de decidir que ortografia usar no sistema de ensino — ou deixaria a decisão para as escolas (como já faz, de facto, no caso das universidades). Não viria daí nenhum drama — rapidamente chegaríamos a conclusões e, mesmo que não chegássemos, cada um usaria a ortografia preferida.
Haveria desvantagens? Só para quem tem aquela mentalidade uniformizadora que não admite variações ou não compreende como a linguagem humana funciona, de facto. Para estas pessoas, a língua é sempre imposta de cima para baixo. De resto, não me ocorrem desvantagens de maior.
Revogue-se a ortografia de 1990. E a de 1945. E a de 1911. Que a ortografia fique entregue às universidades, às escolas, às academias, às editoras, às empresas — e a quem escreve, em geral.
Os falantes de determinada língua estabelecem uma relação tão forte entre os sons e os símbolos que são usados para os representar na escrita que se torna, por vezes, difícil perceber como podia ser doutra maneira.
Por exemplo, há portugueses que julgam ver no som "nh" uma qualquer característica que obriga a que o som seja representado por duas letras (um dígrafo). Ora, mesmo aqui ao lado, temos os espanhóis a escrever "ñ" e a considerar este "eñe" como uma letra autónoma.
Já os catalães usam "ny" para o mesmo som. Os galegos usam "ñ" na ortografia oficial, havendo uma ortografia diferente, apoiada por alguns movimentos e universidades, que usa o português "nh".
Quanto ao mirandês, quem tratou de estabelecer uma ortografia única optou por "nh", à portuguesa.
O som "nh" tem tantas variantes porque não existia em latim. As línguas latinas acabaram por ter de se desenvencilhar sozinhas para inventar uma forma de o escrever.
Não só neste caso, mas em tudo o que toca à ortografia, estamos a falar de escolhas: por vezes, são escolhas que se vão acumulando ao longo de séculos, muitas vezes feitas pelos tipógrafos que pela primeira vez tiveram de passar a escrito manuscritos de autores que usavam opções diferentes conforme a página, outras vezes são opções conscientes e feitas de forma sistemática por uma pessoa ou por um grupo de pessoas encarregues de estabelecer um ortografia para uma língua. Casos há ainda que estas escolhas se tornam letra de lei, como acontece com o português, que é regulado por leis e tratados internacionais (um dos quais tem criado a polémica que todos conhecemos).
No entanto, mesmo quando inscrita na lei, a ortografia é sempre uma convenção. Teoricamente, uma língua (que é um fenómeno, à partida, oral) poderia adaptar-se a qualquer sistema de escrita. É possível escrever português em cirílico, por exemplo: bastaria estabelecer um conjunto de regras que fizessem a correspondência entre sons e letras (estas regras podem ser mais ou menos complexas; línguas há em que a relação é quase unívoca, como o espanhol, enquanto outras têm uma relação que, à primeira vista, é anárquica, como o inglês).
Seja como for, a ortografia e em especial os símbolos que distinguem cada língua acabam por ganhar tal força na mente e no coração dos falantes que, só por si, representam e simbolizam toda uma cultura.
O "ñ" é um símbolo do espanhol e da cultura espanhola, os catalães sentem o "ç" como algo que os distingue dos restantes espanhóis (o Barça é Barça e não Barza, se repararem bem) e nós, portugueses, andamos às voltas com a perda ou salvamento de algumas consoantes.
Estes símbolos especiais permitem ainda distinguir línguas, mesmo quando não conseguimos lê-las. O português, por exemplo, é inconfundível com o seus conjuntos de cedilha e til:
Já o catalão, para além da cedilha e do "ny", tem este símbolo estranho entre os dois "ll":
http://ca.wikipedia.org/wiki/L%C2%B7L
Uma empresa que queira chegar aos clientes na língua certa não deve limitar-se a ir à Wikipédia ver qual a língua oficial do país em questão. Não só pode acabar por ferir susceptibilidades regionais (assim de repente, lançar uma campanha de marketing em ucraniano na Crimeia pode não ser a melhor opção, principalmente por estes dias), como podem acertar na língua, mas errar na versão da língua.
Assim, uma empresa chinesa que decida entrar no mercado brasileiro e contrate tradutores portugueses vai acabar por ter problemas — as duas normas do português estão mais próximas do que julgamos ao nível da escrita, mas não deixa de ser impossível escrever um texto neutro, ou seja, que possa ser usado dos dois lados do Atlântico sem acabar por ser considerado estranho por um dos lados.
Da mesma forma, contratar redactores ou tradutores brasileiros para escrever textos dirigidos aos portugueses é um erro de palmatória. O português é uma só língua — mas quem quer vender produtos num mercado não pode achar que essa língua é igual em todo o lado: nenhuma língua é uniforme, e no caso das línguas internacionais, é costume a própria norma da língua ter variantes marcadas (como é o caso do inglês, do espanhol, do francês...).
Isto são conselhos para as empresas. Não desvalorizem a relação emocional não só com a língua, mas também com a forma local de falar a língua: seja no Brasil, em Portugal, em Angola ou até numa parte específica de cada um desses países.
Para os utilizadores e para os leitores de literatura, o meu conselho é outro: tenham menos medo das outras versões da língua. Leiam mais, de tudo. (Vejam, a esse propósito, o post O português do Brasil aleija os portugueses?)
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