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Caiu-me no colo uma história que está mesmo a pedir para ser transformada numa daquelas séries exageradas e tremendas, com tesouros, espadachins e gente escondida numa esquina. É uma autêntica tentação e calhou-me na rifa logo a mim, que sempre quis escrever um folhetim — não um romance, uma novela ou um conto, mas precisamente um folhetim, com mortos, pancada, segredos e amores delirantes. Nunca tive tempo ou desculpa — ou assunto, para dizer a verdade. Até hoje.
Pois é: não consigo resistir em transformar num folhetim aquilo que a Sara me contou este fim-de-semana. Um telefonema fora de horas mudou-lhe a vida toda e acabou à procura duma arca numa ilha perdida na fronteira entre Portugal e Espanha.
Quem foi o primeiro falante de português? Qual era a língua de D. Afonso Henriques? Como seria o sotaque de Luís de Camões? Qual terá sido o primeiro livro impresso em Portugal? Como seria a voz de Eça de Queirós?
Algumas destas perguntas não têm resposta, mas foi a partir delas que me pus a escrever a história secreta da nossa língua. O livro é um convite aos leitores para usar a imaginação, numa viagem pelas origens da nossa língua.
Pelo caminho, encontramos algumas surpresas e muitas aventuras: um rei aos murros numa estalagem do Porto, Gil Vicente a perseguir um frade pelas ruas de Lisboa, uma lisboeta que colecciona livros perigosos, Camões atrás duma dama da corte, um brasileiro que perde a família e a língua e vagueia pelo mundo...
O lançamento d'A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa será na próxima quarta-feira, na Bertrand de Picoas, às 18h30. O evento está no Facebook. A campanha de pré-lançamento acaba esta semana. Assim, se quiser aproveitar o preço especial de 11,55 euros (com portes de envio gratuitos), faça a encomenda no formulário abaixo. Em breve, receberá os dados para pagamento e o livro por correio. Espero que goste!
Sobre quando tanta gente se juntava para ver televisão que a casa quase vinha abaixo. Sobre o dia em que a minha avó foi ao primeiro concurso da RTP. Sobre quando fui ver o 1, 2, 3 ao vivo. Sobre o homem na Lua, o 25 de Abril, o dia em que nasceu a SIC, como deixei uma escola em polvorosa num dia de Setembro — e mais umas quantas coisas. Tudo à volta desse ecrã da nossa vida.
As histórias da televisão ouvimo-las quase sempre da boca de quem lá estava, dentro da pequena caixa. Mas também há o outro lado: as histórias daqueles que viam esses programas — sim, todos nós que vivemos estas últimas décadas com essa caixa na sala.
Já é difícil imaginar que houve uma altura em que ver imagens de pessoas em movimento numa pequena caixa era qualquer coisa de extraordinário. O meu avô conta-me que a sua mãe, a minha bisavó Manuela, pedia por vezes para desligarem a televisão para que as pessoas que lá estavam dentro descansassem um pouco. Rimo-nos hoje, mas haverá o dia em que os nossos bisnetos se rirão dos disparates que diremos sobre tecnologias que hoje ainda nem existem…
Pois essa caixa onde pessoas em ponto pequeno se esforçavam para nos oferecer teatro, música, notícias, humor e tanto mais — essa caixa tem muito que contar.
Sempre ouvi as histórias do meu avô sobre tanta coisa e uma dessas histórias é sobre a primeira televisão da Atouguia. Foi comprada, para venda, por um daqueles comerciantes que iam mudando de ramo ao sabor do vento. O meu avô e uns amigos, de vez em quando, lá iam ver aquela grande novidade.
Perante aquele espanto e perante o grupo de gente que começava a juntar-se para ver televisão na loja, o meu avô virou-se para um amigo e disse-lhe: se comprássemos isto e vendêssemos bilhetes, se calhar tínhamos negócio. Entusiasmaram-se e depressa tinham uma sala onde todos podiam assistir ao que passava durante a noite, desde que pagasse 10 tostões. Imaginem o velho televisor a preto-e-branco e bancos para a assistência. Hoje, temos a televisão no bolso. Nessa altura, ver televisão era um espectáculo com a sua própria sala.
Ora, a certa altura, o meu avô começa a ter algum receio: talvez aparecesse por lá a Inspecção dos Espectáculos e tinham o caldo entornado. Decidiram passar o negócio para quem estava livre de chatices com inspecções: montaram a televisão num primeiro andar duma casa junto à igreja e todo o lucro ia para a paróquia. A terra continuou a ver televisão em conjunto e ninguém se chateava.
Ora, um certo dia, Maria Helena, uma das locutoras da RTP, anuncia para o dia seguinte a transmissão do filme português Rosa do Adro. Pois depressa todos na terra já sabiam da novidade e todos lá estariam, dez tostões na mão, para ver o filme.
Seria uma enchente de deitar a casa abaixo! Literalmente: o meu avô temia pelo chão de madeira daquele primeiro andar. Ele e o amigo lá andaram o dia todo a pôr estacas — o meu avó lembra-se, aliás, do número exacto: 27 estacas. Não, não seria nessa noite que a televisão seria o motivo duma tragédia nacional.
À hora marcada, lá estava a terra em peso. Sentados, em pé, pendurados na janela, todos esperavam pela Rosa do Adro.
Esperam e esperaram — e nada.
Por fim, aparece Maria Helena a informar o país que, por motivos imprevistos, não seria possível transmitir o filme.
A sala em peso fez um «ohhh». Mas ninguém arredou pé: lá ficaram a ver o que deu nessa noite — o meu avô é que não se lembra o que foi. Imagino que estivesse atarefado a ver se o chão aguentava…
Parece que estas salas do televisor eram comuns a muitas terras. Poucos quilómetros ao lado, os meus avós Leonor e Faustino trabalhavam no Stella Maris de Peniche e garante-me o meu pais que por lá também havia a Sala da Televisão, onde se via televisão como hoje vemos cinema.
O ano de 1957 foi um ano especial para mim: não só me nasceu o pai, como tive uma avó na televisão. Conta o meu avô que a minha avó Gisela foi ao primeiro concurso da RTP. Estive à procura do nome e ou bem que é Quem Sabe, Sabe ou Veja se Adivinha. Ambos foram apresentados por Artur Agostinho. (Por curiosidade, encontro pelos labirintos da Internet a curiosa informação que do concurso Quem Sabe, Sabe saiu um concorrente que viria a ser famoso com outro programa: o Pe. Raúl Machado, das Charlas Linguísticas. A televisão estava a dar os primeiros passos e até ir a um concurso era maneira de entrar no meio…)
A minha avó chegou quase até ao fim, mas saiu de lá sem nada — porque não sabia donde era o famoso presunto. Não sabia ela e não sei eu: para mim, presunto é de toda a península! O meu avô lá me explicou que presunto que é presunto só pode ser de Chaves. A minha avó foi à televisão no primeiro ano de vida deste novo mundo e saiu de lá a saber donde vinha o bom presunto — mas sem o prémio.
Ah, os concursos televisivos… Uma das minhas primeiras recordações é ver o 1, 2, 3. Não só na televisão, mas também ao vivo: ali por volta de 1985, fui com os meus pais assistir à gravação do mais famoso concurso da televisão portuguesa.
Lembro-me pouco da gravação. Lembro-me muito mais de estar a assistir em casa à emissão e de ficarmos todos contentes quando a câmara nos mostra, a um canto, a bater palmas — o que andámos a fazer durante uns minutos antes de começar a gravação, para depois a pós-produção poder encher chouriços sempre que necessário.
(Mas também me lembro de andar no metro escuro de Lisboa, de olhar para uma cidade bem mais suja do que hoje, provavelmente por causa dos tubos de escape sem catalisador…)
Os meus pais lembram-se de ver o Homem a chegar à lua. A minha mãe tinha 9 anos quando Neil Armstrong chegou à Lua e deu o tal pequeno passo que no fundo era um passo de gigante para toda a Humanidade (disse ele). Conta-me ela que, lá na Atouguia da Baleia, viu vários velhotes a vir para a rua olhar para o céu, a ver se viam os americanos vestidos de astronautas a dar saltos na cara da Lua. Como não viam nada, muitos declararam imediatamente que aquilo era tudo uma grande tanga.
Pois, se o Homem na Lua marcou a época para quem olha para os livros de história, sempre que falo com alguém sobre esses anos, quase todos referem o Zip, Zip. Diz-me o meu avô que nessa altura já havia mais televisões: nas tabernas e mesmo em muitas casas. A tal Sala da Televisão ao lado da igreja continuava a existir e a ter gente a aparecer, todos os dias, às transmissões, mas devagar esse hábito comunitário começou a desaparecer e a televisão invadiu a privacidade dos serões das casas portuguesas.
Mas reparem: se virem bem, a televisão uniu-nos. O país todo viveu uma revolução em directo. O 25 de Abril terá sido o primeiro acontecimento da nossa História que os Portugueses viveram ao mesmo tempo, sem esperar pela chegada de notícias pelo telégrafo. Sim, porque a televisão uniu a nação como nada até então tinha conseguido. No século XIX e durante muitas décadas do século XX, muita gente vivia sem ter grandes notícias do que se passava na capital. Pois a televisão trouxe-nos a política para dentro de casa — e os Portugueses, como poucos, assumiram o telejornal e as notícias como hábito e mesmo, diga-se, como vício. Ficámos cara a cara com os políticos, começámos a ralhar com eles, a indignar-nos com o que ouvíamos. Lembro-me de ver o meu avô Faustino a reclamar com o que alguma personagem da vida nacional estava a dizer. Imaginem isso um século antes… No festim de desaguisados partidários em que entrávamos com entusiasmo, a televisão pôs-nos a todos na mesma sala — e apesar de acabarmos a ralhar uns com os outros, estávamos todos juntos a olhar para o ecrã, pelo menos durante o telejornal. E, claro, víamos as mesmas séries, os mesmos concursos e, pela primeira vez, começámos a ouvir as mesmas palavras, com o mesmo sotaque, todos os dias.
Não me posso lembrar da revolução, claro está, mas já vi as gravações tantas vezes que é quase como se me lembrasse. Ali por volta de 1997, fiz um trabalho escolar de muitas páginas sobre o acontecimento e fui com uma amiga minha aceder à internet no Instituto Superior Técnico (onde estudavam umas primas dela), para conseguirmos descarregar vídeos, imagens e documentos — sim, mas isto já pertence à história da Internet, não da televisão. Fica para outros festivais de nostalgia, em que entra o barulho dos modems…
Do que me lembro bem, isso sim, foi de ver a reconstituição que a SIC fez pelos 25 anos da Revolução, em 1999, transmitindo os episódios à hora exacta em que aconteceram.
Foi um tempo de história, de paixão, de humor, de canções e paredes escritas. E eu acabei por ficar com memórias desse tempo que não vivi muito por culpa da televisão.
A mercearia da minha avó Leonor e do meu avô Faustino foi um dos sítios onde cresci: ia para lá enquanto os meus pais iam trabalhar e, quando já podia ir sozinho para a escola, passava por lá muitas vezes — e brincava no largo à frente da mercearia, com um chafariz que ainda hoje me deixa enternecido. A mercearia em si foi mudando ao sabor dos hábitos do país e das regras inscritas nas leis — quando eu era pequeno tinha um ar bem mais antigo, de mercearia a sério. Hoje em dia é um mini-mercado.
Todos almoçávamos lá muitas vezes, numa cozinha que a minha avó ainda tem. Pois cheguei lá um dia, e na televisão que estava em cima do frigorífico, uma coluna de fumo a subir pelos telhados de Lisboa — o Incêndio do Chiado. A minha família olhava para a televisão em silêncio. Lembro-me de ir visitar o Chiado algum tempo depois (não sei quanto) e ver aquilo através dum passadiço de ferro que foi instalado — aquela ferida na cidade está-me marcada na memória.
E, com isto, lembro outro facto curioso: por via da televisão (e também, claro, da rádio) todos os Portugueses conhecem Lisboa — ouvimos os nomes das ruas e avenidas, conhecemos os bairros, sentimos esta cidade como nossa — nem que seja por ouvirmos as notícias do trânsito de manhã. A alguns lisboetas mais ciosos da sua aldeia, isto faz confusão: mas é o que acontece com as capitais — fazem parte da paisagem mental de todos, não só de alguns.
Entre a medalha de ouro de Rosa Mota e a medalha de ouro seguinte passaram oito anos. Para mim, foram esses os anos em que comecei a reparar nas coisas. Quando, em 1992, vi os meus primeiros jogos olímpicos (que tiveram alguma responsabilidade na pancada catalã de que sofro), na minha cabeça a última medalha de ouro portuguesa era coisa muito antiga: tinha sido na década passada, em 1988!
Em 1996 já eu tinha 16 anos. Estava no secundário. Estava no quarto e lembro-me de ficar banzado com aquela ultrapassagem final, a Fernanda Ribeiro a ultrapassar a atleta chinesa (que momentos antes parecia ter aquilo ganho). Saltei da cama (sim, tinha televisão no quarto) e fui ter com os meus pais que estavam também felizes a olhar para o ecrã — são estranhas alegrias irracionais, mas alegrias, seja como for. Tal como também foi um pouco irracional a alegria com que em 1994 tínhamos saudado o falhanço de Baggio, que deu o Mundial de 1994 ao Brasil. Na altura, tinha as cadernetas e olhava para aquilo como um jogo de cromos. Portugal? Ah, eu sabia que Portugal nunca ia a esses campeonatos. Tinha de me contentar com o Brasil.
A voz do apresentador por telefone, as palmas, as canções em línguas estranhas… O grande Festival Eurovisão da Canção! Só o nome cheira a Anos 60, mas ele lá anda, a cambalear, mas ainda vivo.
Aquilo é tudo uma grande infantilidade, mas era muito nosso. Víamos aquilo em dois momentos: a canção portuguesa e a votação. Lembro-me muito bem do Quando Cai a Noite na Cidade e, depois, da Lúcia Moniz e seu cavaquinho. É um pouco ridículo e também comovente pensar no entusiasmo que este país sentiu por ficar em sexto lugar num concurso europeu de más canções e piores fatiotas. Mas, que querem?, a vida é assim.
Pelo menos os Jogos Sem Fronteiras assumiam a brincadeira muito a sério: aquilo eram jogos de gente adulta vestida de bonecos. Era mesmo assim — e era muito bom. Tinham coisas estranhas — como o facto de Portugal ganhar muitas vezes. E também havia isto: o País de Gales participava e a Amadora estava sempre lá. E Peniche, vejam bem.
Diga-se que, apesar da bonecada, era um jogo com muita classe porque tinha o Eládio Clímaco a apresentar e andava a mostrar cidades do centro da Europa aos portugueses. Foi assim que soube que havia terra com nomes como Brno. Ora, eu sempre quis ir a Brno!
Parece que ficámos mais velhos, todos: hoje ninguém ficaria assim muito contente por passar uma noite a ver galeses vestidos de galinha a saltar para dentro de piscinas. Já nem aguentamos a Eurovisão, vejam lá bem! Parece que o país saiu da adolescência — ou se calhar fui eu.
Ora, ali por volta de 1992… Não, não foi por volta coisa nenhuma: foi mesmo no dia 6 de Outubro de 1992. Lembro-me do dia porque tinha trazido para casa um recado na caderneta e estava com medo de mostrar aos meus pais.
E, assim, às quatro da tarde estava eu sentado na cama dos meus pais, nervoso, e decidi distrair-me vendo a primeira emissão da SIC. A Alberta Marques Fernandes lá apareceu e o mundo mudou. A SIC trouxe muita coisa, incluindo portentos de qualidade como o Big Show SIC e ainda os primeiros seios da televisão portuguesa com o famoso Água na Boca. Ah, para os miúdos entre os 12 e os 16 anos, foi uma revelação. Mas não sejamos mauzinhos: também trouxe tanta coisa de bom…
Meses depois, foi a vez da TVI, mas dessa não me lembro. Não tinha recado na caderneta. Mas lembro-me que, anos depois, nos primeiros tempos da faculdade, vivi uns meses na casa da prima Raquel, uma senhora familiar do meu avô que tinha sido telefonista na RTP. Ela contava-me histórias imensas e para ela as televisões privadas eram clubes inimigos. Vestiu a camisola da RTP até morrer. Ela contava-me que adorava o Herman José — até ao dia em que ele se passou para a SIC e ela nunca mais mais o perdoou.
As telenovelas, claro. Vejo um clipe qualquer do Roque Santeiro e cai-me a infância toda em cima. Mas não posso ver durante muito tempo, porque vejo como as coisas eram bem diferentes na altura e não necessariamente para melhor. Pois experimentem procurar vídeos de telenovelas portuguesas dos anos 80. Preparem-se para uma grande surpresa.
Roque Santeiro… Tieta… A certa altura os meus pais fizeram o desmame das telenovelas brasileiras e mudaram-nos a todos lá em casa de armas e bagagens para a ficção nacional. Assim, lembro-me bem da telenovela Pedra Sobre Pedra, mas já não vi clássicos como o Rei do Gado ou aquela telenovela meio italiana em que uma actriz que fazia as delícias dos adolescentes nacionais andava sempre a chamar pelo seu Matteo.
Enfim, essas memórias acabam por ser acima de tudo das músicas dos genéricos: como a música da telenovela Palavras Cruzadas. Ou então de séries como Duarte & Companhia. Esta última, diga-se, aguenta-se à bronca do tempo bem melhor que as telenovelas.
O YouTube e a RTP Memória são um perigo: não convém andar muito por lá. Podem muito bem destruir doces ilusões. Para quem acha que antigamente é que os programas eram bons, sugiro algumas experiências. Por exemplo, vejam a transmissão do primeiro programa a cores (um dos Festivais da Canção). Reparem no público a reclamar porque alguém se enganara nas contas, os apresentadores a hesitar, deslizes saborosos mas que hoje seriam aproveitados para milhentas repetições no YouTube e para queixas infindas no Facebook sobre como esta gente não sabe apresentar um programa de televisão…
Sobre este efeito psicológico que nos leva a crer que antigamente é que era bom, ainda há uns tempos li um artigo que não consigo recuperar em que um jornalista explicava de forma muito concreta que os musicais de hoje da Broadway são incomparavelmente melhores do que os musicais de há umas décadas. Mas a memória melhora tudo e não reparamos. O mesmo se aplica a tanta coisa do que víamos, que nos parece muito bom porque nos apareceu à frente dos olhos nos melhores anos (que, aliás, se bem me lembro, é o nome duma qualquer série juvenil de há umas décadas — uma espécie de Riscos antes dos Riscos, que por sua vez foram um Morangos com Açúcar antes dos Morangos com Açúcar, mas com mais «problemas da vida real»).
Sim, a nostalgia é perigosa. Mas também é bom cair nesse pecado de vez em quando. Quem trabalhava na televisão fazia o melhor que sabia com meios muito diferentes dos de hoje. Acho que temos todos de agradecer a actores, apresentadores, guionistas. Eu, por mim, declaro: nunca teria visto tanta coisa (tanto filme, tanta peça, tanto debate) sem a televisão. Desde telenovelas a programas como Acontece… (Sim, às vezes via coisas dessas para matar a fome de livros…) A televisão foi muito importante para um rapaz ensimesmado como eu. Sim, não foi só a televisão, nem foi principalmente a televisão. Foram os livros, os jornais, a escola, as conversas — disso falaremos noutro dia. Agora, o que quero sublinhar é que também foi a televisão que me mostrou a mim o mundo — a mim e a todos, arrisco dizer.
Não posso deixar de falar das séries do fim da adolescência da minha geração: séries como Quantum Leap, o Bocas, a Ally McBeal, o HR, o Seinfeld e outras que tais… No primeiro dia da faculdade, um puto a olhar para os alunos mais velhos sem saber o que fazer, lembro-me de ouvir umas alunas do último ano a falar do último episódio da Ally McBeal. E eu a pensar: ah, então é disso que falam os estudantes universitários!
Note-se: muito do que vimos ao longo destas décadas foi legendado. Por isso, vá lá, façam-me um favor e agradeçam também aos tradutores e legendadores…
Na faculdade, por vias da Marta, uma prima que trabalhava na SIC, conseguia por vezes convites para ir com os meus amigos assistir às gravações do Herman SIC. E lá íamos, todos contentes, até Paço d’Arcos, onde nos maravilhávamos com todo o ambiente das gravações de televisão.
Em Agosto de 2001, telefonei à Marta para saber se podíamos ir assistir à gravação da semana seguinte. Ela diz-me que não podia falar, porque tinha a redacção toda de pantanas por causa dum acidente nas obras da construção da A8, em que morreram alguns trabalhadores. Eu que lhe telefonasse na semana seguinte.
Deixei passar umas semanas. Decidi telefonar-lhe de novo numa bela manhã de Setembro, mas cá para mim, meio a sério meio a brincar, pensei: é melhor ligar a televisão para saber se houve mais algum acidente ou algo do género.
Pois, ligo a televisão e vejo uma das Torres Gémeas a deitar fumo. E, pouco depois, um avião a lançar-se contra a outra torre.
Deixei o Herman para depois.
Estava em casa. Quando as torres caem, recebo uma chamada do meu pai: «Tu estás a ver isto?» — e desligou. Na loja de electrodomésticos dele, os aviões batiam repetidamente contra as torres, multiplicados pelas dezenas de televisões em cima umas das outras — enquanto toda a gente, parada, olhava pela montra ou dentro da loja.
Telefono para a escola da minha mãe e peço para falar com ela. «Mãe, a América está a ser atacada!» Sim, fui um pouco alarmista, mas naquele momento era o que me apetecia dizer. Os medos da Guerra Fria voltaram todos e ela vai pela escola a chamar toda a gente, deixando-me com o telefone pendurado a ouvir as conversas nos corredores, onde professores e alunos se juntavam, sem saber se vinha aí a III Guerra Mundial.
O Herman… Sim, o humor sempre foi das razões para nos agarrarmos ao pequeno ecrã — e o Herman é o gigante incontornável. Lembro-me de ouvir a música do Casino Royal, de me rir com as piadas dos programas dele dos Anos 80, de assistir, bem mais velho, ao Herman Enciclopédia e gostar muito daquilo, uma bela amostra da explosão do humor nacional que veio depois. E recordo uma certa passagem de ano apenas e só por causa do Crime da Pensão Estrelinha.
O Herman também dividiu as gerações: os meus avós nunca foram muito de gostar daquele humor, mas os meus pais tinham-no como ídolo nos Anos 80. Já nos Anos 90, com a tal Enciclopédia, foi a minha geração a assumi-lo como seu. Não tínhamos ainda séries como o Paraíso Filmes nem o Gato Fedorento — agora, a verdade é que estes já pertencem mais à história da Internet, se virmos bem. Mas começaram na televisão, pois então.
Hoje, claro, vemos todos canais diferentes. E temos a internet, o YouTube, o Netflix, os blogues, o Facebook, as mensagens de telemóvel. Mas, de vez em quando, lá nos juntamos todos, como ainda há poucos meses, para assistirmos à improvável vitória de Portugal no Euro 2016. Foi assim que ouvi todo o meu prédio a gritar e a Zélia, eu e o Simão nos pusemos aos saltos os três, ridículos e felizes, como todo esse país que por um dia se uniu de novo à volta da televisão para ver um feliz jogador desengonçado a atirar uma bola para dentro da baliza. E depois desligámos todos as televisões e viemos para a rua.
Mas, é verdade: hoje, ligo pouco aos nossos velhos canais de televisão. Gosto mais de andar a escrever por aqui ou a navegar nos vídeos do YouTube — ou, claro, a ler um livro ou a trabalhar, que é um passatempo bastante intensivo — e há as séries e os filmes que podemos ver sem ligar a horários.
Às vezes, noto: havia quem reclamasse que a televisão era um meio de comunicação com pouca interacção, que nos iria deixar a todos estúpidos. Enfim, hoje têm à frente um mundo onde as pessoas comentam, interagem, ouvem e reclamam e os mesmíssimos reclamadores lá vêm dizer que isto com tanta interacção não vai lá, toda a gente comenta, toda a gente escreve no Facebook, toda a gente fala e diz o que lhe apetece — que horror! Enfim, há quem nunca esteja contente — e há quem ache que o mundo ou é perfeito ou não vale a pena.
Convém não menosprezar o poder da nostalgia, do que passa e não volta. Há quem confunda a emoção que sentimos ao olhar para trás com o valor absoluto das coisas, como se o passado fosse necessariamente mais genuíno e melhor. O meu filho dá-de ter memórias do que havia no tempo dele e também há-de chorar o fim de uma ou outra tradição. Como será no dia em que acabar o canal Panda? E talvez um dia ele escreva um texto num qualquer sistema que ainda não há, com saudade dos dias em que ouvia as músicas dos Caricas, que agora irritam os ouvidos dos pais…
A televisão lá continua, com muitos canais, em muitos ecrãs — e venha ou não a acabar, estilhace-se ou não em mil canais, faz parte das nossas memórias, faz parte das vidas de todas as gerações que por cá andam: o meu avô lembra-se do dia em que a minha avó foi à televisão, os meus pais recordam enternecidos o Zip, Zip e o Tal Canal e eu lembro-me do Vitinho a mandar-me dormir, da música do 1, 2, 3, do arranque da SIC com medo de mostrar o recado à minha mãe, do Dartacão — que por acaso o meu filho também vê e de tudo o resto que vivemos a olhar para um ecrã. E essa gente da televisão lá continua, nessa caixa que intrigava a minha bisavó, a fazer-nos um pouco mais felizes nem que seja por uns minutos e nem que seja à força dum golo marcado nos últimos minutos dum jogo contra a França.
O meu avô Manel janta em casa dos meus pais quase todos os dias desde o final do século XX. A razão não é das mais felizes, mas a vida é assim e às vezes daquilo que nos dói nascem as histórias que gostamos de ouvir.
Assim, desde os meus 15 anos que todos os dias oiço as histórias da vida dele — e acabo por ter recordações de todas essas décadas que não vivi.
Pois esta semana, talvez por algum arrepio de calor nesta Lisboa de Junho, enquanto seguia, obediente, numa lenta linha de carros, veio-me à ideia viajar no tempo, com o DeLorean que são as histórias dos meus avós.
Lembro-me de muitas das coisas que o meu avô Manuel me contou: soldados ingleses a pedir leite num café de Peniche, a PIDE atrás de emigrantes ilegais, hinos soviéticos na banda da terra, histórias de bêbados e telefones, a minha avó no primeiro concurso de televisão — enfim, fica aqui decidido: vou tentar contar o melhor que souber essas histórias que os meus avós me foram contando ao longo dos anos. Foram contando e ainda hão-de contar, que agora vou perguntar-lhes se não têm mais histórias. Porque a meada de que comecei agora a puxar o fio parece não ter fim. E ainda bem.
Não sei quanto tempo isto vai demorar. Mas o truque é começar.
Já agora, esta é a loja onde o meu avô trabalhou entre os anos 40 e os anos 80 do século XX:
Mas as histórias que vos hei-de contar não são só desta loja na Atouguia. Também a mercearia da minha Avó Leonor, em Peniche, tem umas histórias engraçadas.
As lojas das pequenas terras têm muito que se lhes diga…
Não começo pelo início do século XX — pois os meus avós nem sequer tinham nascido nessa altura — mas antes ali no meio, nos anos 40, durante a Segunda Guerra Mundial. Havemos de voltar atrás, até às primeiras décadas, mas para já caímos de pára-quedas nos anos da guerra.
A verdade é que uma das histórias mais deliciosas que o meu avô me contou é esta (espero não estar a acrescentar muitos pontos a este conto).
Durante a Segunda Guerra Mundial, de vez em quando lá caíam aviões dos combatentes na costa portuguesa.
Ora, lembra-se o meu avô disto: numa madrugada fria do início dos anos 40, um avião inglês cai numa praia perto de Peniche.
Os tripulantes ingleses foram resgatados pela população da freguesia, que os levou, assustados (e provavelmente molhados) ao café mais próximo, para que pudessem comer.
O café ainda hoje existe (é o Avis, em Peniche).
Parece-me muito português, isto: o que se faz a soldados ingleses que aparecem numa praia? Pega-se neles e toca de ir para o café.
Enfim, foram para o café e fizeram muito bem. A gente que estava no café, admirada com aquelas aparições, perguntou-lhes se havia alguma coisa que quisessem.
Imagino a cara dos ingleses com um círculo de portugueses dos anos 40 a perguntarem-lhes:
— Mas o que é que os senhores querem?
— Que tal um cafezinho?
— Vai um bagacinho?
— Isso os homens querem é um bife!
Foram-lhes oferecendo coisas, mas eles, por uma razão ou outra, iam recusando. Não queriam nada. Nem vinho, nem bife, nem água.
Diz o meu avô que, por esta altura chega ali perto um analfabeto, trabalhador da Quinta da Granja, que todos os dias ia entregar vinho ao café de carroça.
O nome dele? O meu avô não se lembra. Mas lembra-se que o analfabeto percebe que se passa alguma coisa, olha para os ingleses assustados e a suplicar alguma coisa que ninguém percebia — e declara, confiante:
— Os homens querem é leite com café!
Todos se calam, o dono do café, já por tudo, arranja o leite com café e os ingleses olham-no com olhos de agradecimento profundo.
Bebem o leite bem quente como se fosse a bebida mais saborosa que alguma vez tivessem provado.
Como perceberam que o seu salvador fora o tal trabalhador analfabeto, rodearam-no felizes da vida, atirando-lhe com perguntas em inglês em catadupa. Finalmente ali estava quem sabia a sua língua!
Como diz o meu avô, o homem mal sabia português, quanto mais inglês. Logo que viu uma abertura por entre os soldados, saltou para a carroça do vinho e pisgou-se dali para fora, antes que ficasse nomeado intérprete oficial da terra.
Ah, o gosto que é pegar neste fio e ir puxando. Por causa disto, fui investigar e descobri que as quedas de aviões eram tantas que até há um site para as contabilizar a todas. Há um site e um livro:Aterrem em Portugal!, de Carlos Guerreiro. (Já está na lista para comprar.)
Procurei nesse site por quedas de aviões na zona de Peniche. Apareceram-me três. Será que alguma delas é aquela de que o meu avô se lembra?
Há pouco, perguntei ao meu avô que avião era.
Disse-me ele que se lembra dum avião caído num pinhal e dum planador amarado ao largo da praia, mas não sabe se caíram no mesmo dia ou em qual deles vinham os tais ingleses do leite com café.
Ora, um dos incidentes registados é a queda do Handley Page Halifax EB178 da Royal Air Force, na zona de Peniche. A descrição do incidente, no site que referi acima, diz o seguinte:
Rebocava um planador para o Norte de África quando um dos motores se incendiou. Dirigiu-se para Portugal e largou o planador que aterrou numa praia próxima. O avião despenhou-se num pinhal e incendiou-se. Os tripulantes escaparam mas alguns sofreram ferimentos. Reed, Treleaven e Saunders foram assistidos por médicos e enviados para Hospital Inglês em Lisboa. Nenhum tinha ferimentos graves. Participavam na missão “Beggar/Turkey Buzzard”, com objectivo de transportar planadores para bases africanas. Estes aparelhos iriam participar na Invasão da Sicília.
Serão estes os ingleses do meu avô? Será que eles se lembram do que aconteceu?
Pergunto-me ainda isto: o que terão pensado eles? Será que contaram à família da queda em Portugal? O que terão dito aos filhos? Talvez sejam as histórias duma família inglesa, que se entretém a ouvir o avô a contar a história do dia em que caiu numa praia do sul da Europa e foi levado para um café, onde bebeu um belo leitinho quente?
Andei à procura de imagens de aviões caídos na Internet para ilustrar estepost. Pelos vistos, todos vinham cá parar, não só os ingleses ou americanos:
Uns ganham, outros perdem. Todos suspiramos de alívio por ter ganho quem ganhou (até os alemães dão esse suspiro — imagino).
Nós olhamos para trás e vemos claramente o que se passou: a Guerra, com o princípio, meio e fim, os vencedores, o mundo que veio depois.
Mas como seria viver naquele momento exacto? As notícias confundiam-se, haveria simpatizantes dos alemães e outros dos ingleses — e o dia-a-dia, no fundo, estava longe dessa história de aviões e guerreiros, que existiam nas páginas dos jornais ou passavam lá em cima — isto quando não caíam na praia.
A guerra, essa, podia não ter fim… Ninguém sabia o que viria a ser o futuro. Sei que é óbvio — ou mesmo muito banal —, mas quando olhamos para o passado esquecemo-nos de que, para quem lá vivia, aquele era o presente, com todas as cores, todas as dores e todas as rotinas do dia-a-dia: e o futuro ainda não tinha acontecido. (Às vezes, acho que até nos é difícil a nós, habitantes doutros tempos, perceber que os dias não eram a preto e branco…)
Será que as pessoas liam o jornal? Do que se falaria no café ou na loja? Isto sou eu a apontar para perguntar ao meu avô…
A vida do dia-a-dia a cores e com som bem nítido — e a história ao fundo, imprecisa. Para nós, que estudámos a época na escola, é ao contrário: a história aparece-nos em letras garrafais e a vida do dia-a-dia desaparece, esbatida, escondida nas memórias de cada pessoa.
O mesmo acontecerá com o nosso presente: o que se passa com a vida de cada um em cada dia aparece-nos nítido e tremendo — em contraste, a História que aparecerá nos livros de amanhã ainda é difícil de adivinhar no rodopio de notícias. Daqui a umas boas dezenas de anos, as nossas vidas já terão passado e andará por aí uma narrativa mais clara sobre a História deste início do século XXI — narrativa que nós não conhecemos (ou mal intuímos).
Só por curiosidade, fui procurar um ou outro jornal da época para me ambientar. Fui à Hemeroteca virtual da Câmara Municipal de Lisboa e encontrei um número de Janeiro de 1943 da revista Mundo Gráfico (quem chamaria isto a uma revista hoje em dia?).
A capa não mostra, mas havia muito da guerra lá por dentro:
Será que se lia esta revista na Atouguia da Baleia?
Perguntei ao meu avô e, por lá, só o Diário de Notícias.
Pois hoje não tenho tempo de ir à procura destas notícias no velhinho DN. Fica para depois, para passeios na Hemeroteca menos virtual, passeios esses que já não faço há uns anos e que sabem sempre bem.
Hoje fico-me por aqui, com esta história de ingleses caídos entre a praia e o pinhal da Atouguia da Baleia. Mas não se preocupem, que há mais: só por ter perguntado sobre alguns pormenores desta história ao meu avô, já ouvi muito mais histórias, entre galegos que vinham fugidos da guerra e não podiam falar em público, o dia em que a minha avó participou no primeiro concurso da televisão portuguesa, como era ver as pessoas a habituarem-se a falar ao telefone (havia horas marcadas para atender chamadas) — e muito, muito mais.
Serão estas as viagens pelo século dos meus avós.
Marco Neves
O leitor Paulo Vieira enviou-me esta mensagem:
Ouvi-o na Prova Oral afirmar que a nossa língua vem do galego e estava agora a ler uma notícia do Público sobre os Lusíadas, a que fez referência no artigo da língua bastarda, e nessa notícia é dito que a obra tem uma forte influência do castelhano, língua que aparentemente era muito usada na corte.
Fiquei interessado e gostava de esclarecer quais as origens da nossa língua. Recomenda algum livro sobre o tema?
No final deste artigo, deixo algumas sugestões de leitura.
Mas antes, porque esta compulsão para escrever parece não ter cura, vou tentar explicar aquilo que sei (ou penso saber). Mas tenho de avisar: não sou linguista histórico. Sou um tradutor e professor que estuda linguística por motivos práticos e junta a isso uma paixão pela disciplina.
Pois bem: a verdade é que gosto muito da história da língua — e julgo ser este um tema que nos interessa a todos. Com base no que fui aprendendo ao longo dos anos, mas também com base na leitura dos livros e artigos que refiro no final, aqui fica o meu resumo (os erros, claro, serão meus e não dos livros e artigos — ressalve-se!).
Enfim: todos nós que dizemos falar português e todos os que dizem falar galego falamos qualquer coisa que teve origem nos falares da Galécia, ali no noroeste da Península. Durante séculos, o latim trazido pelos soldados e colonos romanos e adquirido por toda a população foi sofrendo transformações — não as podemos ver em tempo real, porque ninguém as registava ou escrevia, mas, muitos séculos depois, quando finalmente a língua começou a ser escrita, havia nesse território uma língua já formada, com verbos próprios, com formas próprias, com características que a identificam e a distinguem das outras línguas em redor.
Quando Portugal se tornou independente, começámos a usar a língua que existia no território, que era ainda apenas o Norte. Não a escolhemos de imediato, pois nos primeiros tempos o latim ainda foi a língua oficial. Mas, devagar, a língua que era de facto falada começou a infiltrar-se nos textos escritos, às vezes de forma imperceptível, outras vezes de forma mais clara.
O país expandiu-se para sul e, com ele, veio a língua, claro. O português nasceu nesse canto noroeste e expandiu-se até ao Algarve (e, mais tarde, até além-mar). Por alturas de D. Dinis era já a língua oficial.
Depois, no final do século XIV, temos revoluções, a batalha de Aljubarrota… — a nobreza nortenha perde influência, a burguesia lisboeta alça-se à posição de classe dominante (e tudo o mais que faz parte da História). Lisboa é agora a capital e a nação esquece-se que a língua veio do norte, não foi criada em todo o território nacional. O que se falava em Lisboa seria esse galego-português que viera para sul com a Reconquista. Houve, claro, algumas intrusões do moçárabe, a linguagem latina do sul (com muitos arabismos). Mas, nas suas estruturas e características principais, a língua que Portugal assumiu como sua é a língua criada na Galécia: não houve um ponto em que o galego e o português se tivessem separado claramente.
Não houve um ponto em que o galego e o português se separassem claramente. Mas há, isso sim, algum afastamento da língua padrão em relação ao que se fala mais a norte. Muito desse afastamento fez-se também por causa das influências externas. Com a corte em Lisboa, e durante muitos séculos (na época de Camões, por exemplo), o castelhano teve uma influência que hoje poucos imaginam. Os escritores portugueses também escreviam, muitos deles, em castelhano. Liam em castelhano. A igreja usava muito o castelhano. A corte também usava o castelhano. Era a língua de prestígio. As misturas eram inevitáveis…
Ora, o português popular de todo o país não sofreu estas influências de forma tão marcada. Assim, arrisco-me a dizer que o português popular manteve durante mais tempo uma maior grau de semelhança com o galego do que o português-padrão — talvez por não ter tanta influência castelhana. Principalmente no Norte, o português e o galego mantiveram-se tão próximos que a fronteira era difícil de traçar. Mais a sul, na Corte, na capital, a língua “desgaleguizava-se” (ver artigos de Fernando Venâncio citados abaixo). Para as elites lisboetas, o galego e o português do Norte começaram a soar a português da província. E, no entanto, era de lá que tinha vindo a língua…
Depois, o castelhano deixou de ser uma influência forte no português (aí por volta do século XVIII); vieram então as influências francesas e, já bem entrado o século XX, começamos a olhar para o inglês.
Sim, sempre fomos uma língua que sofreu influências fortes de outras culturas. Podemos não gostar do facto, mas é isso mesmo: um facto. Não fiquem horrorizados: o castelhano também teve vagas dessas, o francês idem — então o inglês nem se fala. Não percam muitas horas de sono com isso — e, depois, a língua vai atrás da cultura, neste ponto: se quisermos uma língua pura, temos de fechar a cultura a influências exteriores. As línguas mais puras são as mais isoladas, as menos importantes.
Para terminar este resumo muito resumido, diga-se que o português-padrão se expandiu de forma fenomenal durante o século XX, com a escola, a televisão, a rádio, a imprensa. Aí, as formas do sul começaram a suplantar as outras formas, que subsistem, mas com menos força. O português começou a tornar-se mais homogéneo (e menos nortenho/galego) — mas tudo isto já é história das últimas décadas…
Bem, quanto ao galego, lá em cima, num país sem corte, uma sociedade rural, não sofreu tanta influência castelhana até muito tarde, embora essa aparente pureza seja apenas reflexo do isolamento da sociedade. Grande parte da população galega, aliás, só terá começado a sentir a invasão da sua língua pelo castelhano quando a escolaridade obrigatória apareceu no horizonte — e a televisão, jornais, etc. Ou seja, para muitos galegos, o castelhano tornou-se influência no século XX (nas elites terá sido antes, claro). Apesar de tardia, a influência do espanhol é avassaladora, claro está. Aliás, chamar-lhe influência será um eufemismo cruel. O espanhol não influenciou o galego: o espanhol começou a substituir o galego. Afinal, o Estado é o espanhol e a escolaridade da população foi em castelhano até muito tarde. Ou seja, nos séculos XIX e XX, o galego levou uma coça de que ainda não se levantou, apesar de, desde os anos 70, o governo autónomo ter, oficialmente, uma política de defesa da língua.
Alguns galegos tentam aproximar a sua língua do português para assim melhor se defenderem do peso do castelhano; outros apostam num galego autónomo tanto do castelhano como do português. Mas que o galego e o português ainda estão mais próximos do que imaginamos, isso é indesmentível: então quando começamos a olhar para o vocabulário popular, aquele que muitos desprezam injustamente, começamos a ver como falamos uma língua que não deixa de ser muito galega.
… o português tem origem no latim popular falado no noroeste da Península, na Galécia Magna, língua essa a que podemos chamar galego por ser uma língua da zona do Reino da Galiza, uma língua já com características muito próprias séculos antes da existência de Portugal. Ao tornar-se a língua dum estado independente a sul, chamado Portugal, a língua passou a chamar-se português — e com esse nome foi transplantada para os outros países que a falam. Apesar das mudanças a sul, a língua mantém uma forte proximidade com o que se fala a norte da fronteira. Essa língua portuguesa, como é típico duma língua dum país de cultura aberta a outros povos, sofreu grandes influências exteriores: do castelhano, do francês, do inglês… Até hoje. Também nos dias de hoje as formas mais padronizadas do português começam a suplantar as formas mais populares entre a população em geral — enquanto na Galiza, o castelhano avança.
Isto é uma explicação simplificada, claro está. É ainda a minha forma de o explicar: outros dariam ênfases a outras partes ou acrescentariam pontos talvez importantes… Se alguém quiser corrigir, matizar, completar, os comentários estão abertos!
(Proponho ainda que dê uma vista de olhos pelas histórias romanceadas que escrevi e que tentam dar uma ideia do que foi o percurso do idioma nesses primeiros séculos: «História Secreta da Língua Portuguesa».)
Bem, mas a pergunta era outra: que livros de especialistas podemos ler sobre o assunto?
Proponho dois livros breves, recentes, sobre a História da língua:
Proponho também três artigos de Fernando Venâncio sobre o assunto (convém dizer que as aulas que o autor deu na FCSH, este ano, permitiram-me aprender muito sobre as origens da língua):
Sim, é verdade: olhem bem para uma piscina no Algarve. Olhem para as várias nacionalidades (facilmente distinguíveis pelo nível de encarnado da pele) e olhem para o que têm na mão. Quanto mais vermelha a pele, mais livros na mão. Até avós têm o seu Kindle. Quanto aos bronzeados conterrâneos, para quê ler, se o sol da nossa terra é assim? Será essa a lógica?
Aproxima-se o Mundial e, com ele, algumas bocas ou reflexões mais ou menos indignadas sobre o que significa mesmo ser português. Isto porque a selecção, de há uns anos para cá, tem integrado alguns jogadores que se naturalizaram portugueses.
Muitos ficam chocadíssimos com isto, porque acham que não são portugueses mesmo a sério. Outras pessoas não querem saber disso e só se preocupam se a selecção joga bem ou não. Podemos não gostar, mas a questão existe e convém falar dela.
Tudo isto radica em visões diferentes do que é a nacionalidade de cada um. Algumas dessas visões são francamente perigosas e, quanto a mim, erradas. Por exemplo, há quem junte à discussão alguns toques (quase sempre disfarçados) duma visão racial da nacionalidade: não pode ser português porque nem sequer é filho de portugueses. Para estes, mesmo que Pepe tivesse nascido em Portugal, não seria português. Para outros, o que conta é ter nascido em Portugal. Mas há filhos de emigrantes que chamamos portugueses e não nasceram cá. O lugar do nascimento define a nossa identidade de forma tão marcada? Porquê? Outros dizem que é necessário ter crescido em Portugal: ora, se crescer em Portugal garante uma relação com o país, não torna uma pessoa portuguesa. Basta perguntar ao (ainda) rei de Espanha. Sendo assim, o Pepe não pode ser português? Se não pode, por que razão não pode?
Tentemos pensar de cabeça fria (o que é dificílimo nestas questões).
Primeiro, Pepe ganhou a nacionalidade portuguesa de forma perfeitamente legal. Quando falo aqui de "nacionalidade", estou a falar do conceito jurídico de nacionalidade, ou seja, da relação de determinada pessoa com um Estado. De acordo com as leis portuguesas, Pepe é português. Pode votar em Portugal, pode ser eleito para tudo (excepto para Presidente da República, único cargo com uma restrição mais específica do que a nacionalidade: o Presidente tem de ser originário de Portugal, seja lá o que isso quer dizer). Se não concordamos com essas leis, podemos defender a sua alteração: mas ninguém pode negar que Pepe é, em termos jurídicos, português. Sendo assim, porque deveria ser excluído da selecção? Além disso, ao entrar na selecção portuguesa, escolhe conscientemente nunca poder vir a fazer parte da selecção brasileira. O critério para fazer parte da selecção é mais apertado do que o critério da nacionalidade, pois a lei não impede que um português mantenha uma outra nacionalidade. Pepe tornou-se português de forma legal e rejeitou a possibilidade de jogar na selecção do seu outro país. Nada a apontar em termos formais.
Agora, todos sentimos que ser português é mais do que aquilo que aparece no registo civil. O Estado é uma estrutura política, mas tem — ou pelo menos quer ter (e em Portugal certamente que tem) — uma ligação profunda a determinada nação, ou seja, a um conjunto de pessoas que se identificam com uma comunidade nacional (se a definição parece circular, é porque o é). Poucos portugueses concordarão a 100% com o que significa fazer parte dessa "comunidade nacional", mas quase todos dirão: significa falar português, significa ter uma ligação forte ao território português, significa qualquer coisa de indefenível. (Alguns serão mais tribais e obrigam a uma relação étnica com Portugal...)
A verdade é que tudo isto é importante e não podemos escapar a essa necessidade de fazermos parte dum grupo com características com as quais estabelecemos uma relação emocional (chame-se tribo ou nação). Mas digo-vos: ser demasiado rigoroso nestas definições só pode dar mau resultado. Não é por termos um jogador que nasceu no Brasil a jogar na selecção que vamos ter problemas. Estas misturas são boas, mesmo que o nosso sentimento tribal fique um pouco magoado.
Ao contrário do que possam pensar, o caminho da civilização implica reduzir a identidade baseada em critérios tribais, vagos e potencialmente perigosos, e ancorá-la antes a critérios mais legais, mais definidos e menos emocionais. É um caminho difícil, mas um caminho em que o Estado-Nação é já uma etapa mais avançada que a tribo ou a relação feudal. Ser português significa acima de tudo ter uma relação com o Estado português e não recusar activamente essa relação. Tudo o resto tem de vir por acrescento, mesmo que cada um de nós encontre nesse "resto" o sentido da nossa relação com o nosso país. O "resto" é importante, é talvez o mais importante, mas não podemos garantir que todos o partilhem. Os direitos e deveres dos portugueses existem colocando-nos em pé de igualdade perante um Estado e as suas leis. Sim, a relação emocional com o Estado baseia-se na nossa necessidade de identificação com um grupo, mas não se esqueçam de tudo o que já aconteceu quando se levou tal emoção às últimas consequências.
No caso do Pepe, a vontade de jogar na selecção foi o "resto" que o levou a querer ser português. Terá sido por interesse? Sim, interesse em jogar na selecção. E será talvez mais — não sei, não o conheço pessoalmente. Mas andamos todos pela rua a perguntar a cada um o que o leva a querer ser português? Somos portugueses porque crescemos cá, somos portugueses porque queremos trabalhar cá, somos portugueses por várias razões. Uma sociedade civilizada não pode importar-se com as características de cada um ou com a origem de cada um, desde que cada um aceite alguns pontos essenciais: falar a língua, aceitar as leis, defender o país (cada um à sua maneira). O Pepe falha algum destes testes?
Prefiro um país complicado, aberto, indefindo se preciso for do que um país que se esforça por ser puro, o que só pode dar muito mau resultado. A pureza nacional é um fétiche que já matou muita gente e que não nos traz nenhuma vantagem. Portugal devia ser mais do que uma ideia antiga de pureza, que de qualquer forma quase ninguém sabe definir muito bem. Vamos descontrair, aceitar que há portugueses com uns restos de sotaque divertidos — e que, já agora, a selecção jogue bem!
Tenho um fascínio antigo por Oeiras, Cascais e Sintra (e não, não sou um menino da Linha). Esse fascínio tem várias razões, muitas delas comuns a tanta gente (Cascais é de facto lindo, a zona é especial, escolhida por reis e rainhas ao longo de décadas), mas algumas só minhas. Uma delas é ter lido, há muitos anos, este livro de Alice Vieira:
Pois hoje encontrei-me a passear por Cascais, depois a fazer a Estrada do Guincho, a subir até Colares, a olhar para Sintra — tudo sob o sol de Maio que nos obriga a concluir que as palavras não chegam para explicar a beleza daquelas terras encavalitadas na Serra de Sintra, ao sol, enquanto, por entre curvas e canaviais, vemos a costa lá em baixo, o Cabo da Roca, o Palácio da Pena mesmo ali — e tudo o mais. Bem, vou deixar-me de tentativas vãs e pôr fotos, que é o que se quer (não são minhas, infelizmente).
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