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Há muitos anos (enfim, há oito), li uma crónica de Vasco Graça Moura com a qual não concordei. Armado aos cágados, escrevi-lhe um email a dizer o que pensava (era na altura em que os cronistas ainda punham os emails por baixo das crónicas do jornal). Confesso que não esperava resposta.

 

Pois, incrivelmente, Vasco Graça Moura respondeu-me, de forma muito simpática, descansando-me em relação ao ponto que eu não tinha compreendido, explicando os pontos da crónica que eu rebatia e desabafando por estar no meio duma sessão plenária do Parlamento e estar com pouco tempo para escrever muito mais, como quem diz é disto que eu gosto: escrever, discutir, pensar.

 

Isto pode parecer um pormenor: mas quantos de nós responderíamos a um perfeito desconhecido, imersos em tudo o que temos para fazer? E não somos um poeta como ele, um tradutor literário de primeira linha, um político famoso. Pois Vasco Graça Moura era o poeta que era, o tradutor que era, o político que era — e respondeu a um rapaz qualquer, que lhe escreveu sobre uma crónica, e fê-lo com todo o desprendimento de quem não se importa de conversar sem olhar com quem fala.

 

Esta é a minha forma de prestar uma pequena homenagem a este homem, que acabou por embater naquele muro em que todos, grandes e pequenos, acabamos. Mas ao contrário de nós outros, foi um poeta e os poetas, já sabemos, não morrem. Basta que alguém os leia.

Nos meus vintes e poucos tive aquilo que se poderia chamar de adolescência tardia, com direito a má poesia e tudo... Felizmente, não me deu a travadinha de muitos adolescentes que escrevem muito mais poemas do que aqueles que lêem: assim, lá ia eu, às vezes, procurar alimento, se bem me entendem.

 

Lembro-me de ter encontrado este livro perdido numa Fnac, que julgo ter sido a do Chiado, que era um local de peregrinação de novo lisboeta fascinado pela luz de Lisboa, sem deixar de querer livros, muitos livros, cada vez mais livros.

 

Mas, neste caso, não interesso mesmo nada. Fiquem com a beleza da capa e do primeiro poema — e leiam-no, já agora:

 

 

 

 

 

(Já agora, num aparte físico em relação aos livros — que isto dos livros de papel tem muitas vantagens — esta edição da Relógio de Água mantém-se perfeita ao fim de dez anos, papel imaculadamente branco, um livro inteiramente preto, que continua a apetecer como se fosse novo.)

Ora, enquanto a série de posts sobre a viagem a Andorra continua parada, vou-vos contar como encontrei um amigo que nunca vira, no meio de Barcelona, através dum balde de Chupa-Chups.

 

Por causa da maluqueira pela Catalunha que apanhei nessa viagem em 1993, acabei por conhecer um pouco mais a fundo a cultura catalã e aproveitei a moda dos IRCs e outras formas de conversa internética para falar com catalães — acabei por ficar amigo de alguns, incluindo o Ricard, um barcelonês que achava muito estranho o interesse dum adolescente pela sua cultura, e ainda uma polaca, a Joanna (não imaginem histórias mais interessantes do que geeks a falar de cultura catalã — era só isso, lamento).

 

Pois bem, em 2001, alguns anos depois de todas estas conversas, fui a Barcelona com os meus pais (uma história que merecerá só por si outros posts) e combinei com o Ricard para, finalmente, nos encontrarmos.

 

Como combinámos? Ora bem, ele iria estar à porta dum dos vários El Corte Inglés com um balde enorme de Chupa Chups. Exacto, um balde de chupa-chupas! Se não sabem, ficam a saber que a empresa foi fundada por um catalão, o logo foi desenhado pelo Dalí (um catalão) e o seu primeiro slogan foi uma frase muito catalã: És rodó i dura molt, Chupa Chups (vejam aqui o artigo wikipédico sobre a marca, na versão catalã).

 

Porquê esta forma estranha de nos encontrarmos? Porque ele trabalhava na empresa e podia, assim, oferecer-nos chupa-chupas para dar e vender. A minha irmã, que tinha 8 anos na altura, adorou a ideia e ainda hoje fala desse meu amigo que lhe ofereceu tantos chupas que duraram meses, dentro dum balde de metal que não sei por onde anda, mas era linda (os catalães não fazem mesmo por menos e até um balde de chupas é digno de admiração).

 

Lá nos encontrámos todos. Os meus pais ficaram maravilhados com o facto de as pessoas por trás das conversas na Internet serem reais (estávamos em 2001 e os meus pais não tinham email — hoje têm tudo, até conta de Facebook, claro). Conversámos um pouco, numa estranha cena em que portugueses e um catalão comunicam numa mistura estranha de línguas.

 

Depois, sentámo-nos num café e estivemos a conversar um pouco ao vivo, depois de anos de conversa online. Tentei usar o meu melhor catalão, e não correu muito mal. Hoje, julgo que não conseguiria, a não ser que tivesse bebido alguma coisa antes (há muitos anos, os meus amigos perceberam que, quando bebo um ou dois copos, começo a falar línguas estrangeiras muito melhor — mas essa história fica para depois).

 

Antes de nos despedirmos, o Ricard decidiu oferecer-me um livro. O livro que escolheu, na livraria do El Corte Inglés, foi este:

 

 

Tive direito a dedicatória e tudo:

 

 

Entretanto, o Ricard foi viver para a China, para Xangai (esteve anos a aprender chinês, o que é mais inteligente da parte dele do que, para um português, aprender catalão...). 

 

*

 

Já agora, não sei se conhecem o poeta. É um dos grandes poetas catalães (e, por curiosidade, avô de Pasqual Maragall, presidente de Barcelona durante os Jogos Olímpicos de 1992 e presidente do governo catalão anos mais tarde entre 2003 e 2006). 

 

O poema mais conhecido do poeta é este: 

 

Oda a Espanya (1898)

 

Escolta, Espanya, — la veu d’un fill
que et parla en llengua — no castellana:
parlo en la llengua — que m’ha donat
la terra aspra;
en ‘questa llengua — pocs t’han parlat;
en l’altra, massa.

 

T’han parlat massa — dels saguntins
i dels qui per la pàtria moren;
les teves glòries — i els teus records,
records i glòries — només de morts:
has viscut trista.

 

Jo vull parlar-te — molt altrament.
Per què vessar la sang inútil?
Dins de les venes — vida és la sang,
vida pels d’ara — i pels que vindran;
vessada, és morta.

 

Massa pensaves — en ton honor
i massa poc en el teu viure:
tràgica duies — a mort els fills,
te satisfeies — d’honres mortals
i eren tes festes — els funerals,
oh trista Espanya!

 

Jo he vist els barcos — marxar replens
dels fills que duies — a que morissin:
somrients marxaven — cap a l’atzar;
i tu cantaves — vora del mar
com una folla.

 

On són els barcos? — On són els fills?
Pregunta-ho al Ponent i a l’ona brava:
tot ho perderes, — no tens ningú.
Espanya, Espanya, — retorna en tu,
arrenca el plor de mare!

 

Salva’t, oh!, salva’t — de tant de mal;
que el plor et torni feconda, alegre i viva;
pensa en la vida que tens entorn:
aixeca el front,
somriu als set colors que hi ha en els núvols.

 

On ets, Espanya? — No et veig enlloc.
No sents la meva veu atronadora?
No entens aquesta llengua — que et parla entre perills?
Has desaprès d’entendre an els teus fills?
Adéu, Espanya!

publicado às 12:38

 

 

Alexandre O'Neill, "Portugal", neste livro:

 

(Encontrei este livro, baratíssimo, numa Fnac qualquer em 2000 ou 2001. Nunca dei por tão bem empregues 455$00...)

publicado às 09:10

Os manuais escolares têm má fama entre aqueles que dizem defender a verdadeira literatura. Afinal, que raio de literatura é essa que é partida aos bocados e entregue aos alunos em pedaços mastigáveis? Quem poderia alguma vez perceber o valor e o sabor da literatura lendo bocados de livros? 

 

Até concordo. Mas a coisa é, claro, mais complexa. E, na verdade, temos sempre os poemas, que são obras completas ali na página.

 

Há poemas que nos atingem sem percebermos bem como. No meu 10.º ano, tinha um manual cinzento (mesmo cinzento, em termos de cor, não em termos de conteúdo). Encontrei este poema, que acho que nunca cheguei a dar na aula, e não faço ideia porquê, fiquei agarrado:

 

Um Amor

 

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão, 
puxaste-me para os teus olhos 
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua, 
ainda apanhámos o crepúsculo. 
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar 
diferente inundava a cidade. Sentei-me 
nos degraus do cais, em silêncio. 
Lembro-me do som dos teus passos, 
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas, 
e a tua figura luminosa atravessando a praça 
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é, 
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali, 
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha 
essa doente sensação que 
me deixaste como amada 
recordação. 

Nuno Júdice, in "A Partilha dos Mitos"

 

Fosga-se, que ainda hoje fico afectado por este poema. Por algum motivo, isto batia certo com uma imagem qualquer que tinha do que era viver numa cidade e ter um grande amor numa cidade — e perder esse grande amor. Era como se eu já tivesse vivido aquilo, o que seria impossível.

 

Essas luzes dos autocarros no crespúsculo, os passos numa praça ou num cais — bolas, parece que até consigo ouvir os exactos autocarros da Carris a passar com as luzes a acenderem-se e achar isso bonito.

 

Enfim, anos depois, vim a ser aluno de Nuno Júdice, mas parece que as pessoas conseguem desdobrar-se e ali tinha um professor e não o poeta do poema que mais me tinha alterado. Nunca lhe cheguei a dizer.


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