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Já estou de volta das férias há umas boas duas semanas — e que semanas, meu Deus! — e mesmo assim ainda tenho histórias para vos contar. É assim uma espécie de truque para parecer que ainda estou de pés na água e cabeça na areia…

 

Pois bem — esta história tem que se lhe diga.

 

Então é assim: a certa altura, lá nas férias, fomos almoçar em Santiago de la Ribera, uma pequena terreola que foi uma estância balnear que deve ter estado na moda ali por volta de Agosto de 1984. Enfim, não faz mal: foi uma espécie de viagem no tempo.

 

A praia é virada para o Mar Menor, uma lagoa de água um pouco turva por causa da areia que é de origem vulcânica (dizia um dos cartazes de aviso que por lá vi). Pois a verdade é que a água é tão quente, mas tão quente que ficamos com a sensação que o vulcão está prestes a entrar em erupção…

 

manga

 

Bem, a temperatura da água sentimo-la depois, quando fomos molhar os pés. Ao almoço, limitamo-nos a olhar para o mar, que ali estava, à nossa frente — e lá muito ao fundo, no horizonte, a chamada Manga del Mar Menor, uma pequena faixa de areia entre o Mar Menor e o Mediterrâneo que foi cilindrada sem piedade com prédios, prédios e mais prédios. No primeiro dia de férias tínhamos lá ido e fugido a sete pés… É daquelas paisagens que até são engraçadas vistas assim de muito longe. É como olhar para o mar e ver ao fundo um recorte citadino a surgir como uma miragem. Nada mal — mas à distância.

 

Pois bem, o certo é que descobrimos um barco ao pé do restaurante que fazia a ligação entre Santiago e uma zona da Manga que até tinha o seu quê: uma ponte levadiça, umas praias simpáticas — e acima de tudo uma festa com piratas no barco. Só que já estava mesmo em cima da hora, ainda não tínhamos almoçado e dissemos ao Simão que ficava para o dia seguinte.

 

Enquanto o barco se afastava, fiquei a olhar e a imaginar como seria essa singela viagem com crianças vestidas de piratas. Não demorei mais do que uns bons 10 segundos nesse sonho acordado: fiquei só a olhar, a ver o mar e, ao sol de Agosto, a imaginar-me no barco — porque não tinha mais nada em que pensar naquele momento e porque tinha acabado de dizer ao meu filho que no dia seguinte era isso mesmo que faríamos. O barco passa ao pé de ilhas, havia aviões a fazer acrobacias ali mesmo ao pé, o sol apetecia e sentia o sal na boca. Ah, as férias…

 

Pois, no dia seguinte não fomos. Ali perto havia praias menos turvas, areias mais douradas, sítios por descobrir. Ele não se importou, até porque acabámos por descobrir um barco bem maior, com piratas a sério e tudo (mas isso fica para outro dia).

 

Agora, o curioso é isto — e esta lengalenga toda serviu para chegar a esta conclusão: no fim das férias, comecei a pensar nos dias todos que ali passáramos e a memória misturou-se de forma perigosa: lembrava-me dos sítios onde realmente tinha ido — e da viagem de barco que nunca fiz! (Para não falar dos livros que li e dos filmes que vi — mas essas misturas já são bem menos estranhas e muito saborosas.)

 

Sim, é verdade. A memória é mesmo muito manhosa. Neste caso, não fez mal: eu sabia, conscientemente, que nunca tinha andado naquele barco e mesmo que de repente me convencesse que tinha mesmo viajado de barco naqueles dias não vinha mal ao mundo. Mas não deixa de ser perturbador: lembro-me de estar a afastar-me da costa com o meu filho vestido de pirata ao lado e a minha mulher a olhar para o horizonte. A sério que me lembro! Ora, mas não sou o único. Admitam lá: quantas vezes não confundimos tudo e inventamos memórias — e algumas delas bem mais consequentes que uma viagem numa tarde de Verão que nunca existiu? Se alguém me disser que nunca lhe aconteceu tal coisa é que por anda muito enganado por este mundo…

 

É outro dos temas que começa a ser recorrente neste blogue (mas nada posso fazer, estas ideias vêm até mim e eu tenho de lhes pegar pelos cornos): todas as maneiras como nos enganamos a nós próprios. Lembramo-nos do que nunca fizemos, esquecemo-nos do que nos aconteceu, imaginamos salpicos na cara que nunca sentimos. O antídoto é só um: perceber que somos muito falíveis, que nos enganamos todos os dias — e desconfiar um pouco da nossa cabeça.

 

Bem, se a memória é perigosa e a imaginação delirante, a verdade é que também é por isso que criamos livros, filmes, quadros e canções: a nossa cabeça não se limita ao que nos acontece. Vai sempre mais à frente. Aí temos a origem da arte e de tanto do que torna a vida bem mais interessante do que seria se vivêssemos apenas com o que temos à nossa frente. Mas aí temos também a origem de muitos dos enganos com que nos matamos uns aos outros…

 

Ui, que frase tão séria para um post de piratas e tardes de Verão, não é? Admito que sim. Fiquem com esta outra música, capaz de vos acordar as memórias lá bem escondidas nas catacumbas da nossa mente — e também estávamos num verão azul no Sul de Espanha:

 

publicado às 22:23

pogo-bal.jpg

 

Sim, as modas vêm e vão. Num dia, estamos todos a falar do Pokémon Go, amanhã ninguém se lembra. A semana passada estávamos todos de sorriso na cara e de bandeira na mão. Amanhã talvez não.

 

E, no entanto, as modas, as maluqueiras, as "crazes" do dia são o material de que se fazem as nossas boas memórias do futuro.

 

Sim, eu sei, temos todos medo do ridículo, medo de sermos mais uma Maria-vai-com-as-outras. Mas às vezes sabe bem. Não se esqueçam que quase tudo o que fazemos, visto a uma certa luz, é ridículo.

 

Daqui a muitos anos, vamos lembrar-nos daquilo que é muito nosso (o primeiro beijo, aquela noite sozinhos ao luar, uma conversa perfeita com alguém), mas também daquilo que fizemos com muita gente: dos concertos, das multidões, dos programas que todos víamos ou ouvíamos.

 

Hoje, já todos sentimos nostalgia daquilo que todos víamos ou fazíamos nos anos 80 e 90 (falo da minha geração, claro). Falo do Dartacão, dos hulahoops (ou lá como se chamava aquilo), do Fizz Limão, de tudo o que aparece na Caderneta de Cromos do Nuno Markl.

 

Não temos de todos gostar de tudo: muitas destas "crazes" passam-me ao lado. Mas fazem-me mal? Nem por isso. Vá: irritem-se menos, vivam mais.

 

E, sim, estas nossas manias de hoje são o material da nostalgia do futuro. Lembras-te do concerto que vimos no NOS Alive? Ou das piadas do Markl? Ou das filas para comprar o Harry Potter? Ou a festa do Euro 2016 na Alameda? Ou da noite em que fomos os cinco caçar Pokémons para Monsanto?

 

Sim, ainda assim prefiro os beijos e aquilo que é só nosso. Mas estas maluqueiras colectivas também fazem parte da felicidade.

publicado às 15:19

Talvez seja efeito secundário de alguns excessos que cometi quando era muito novo (aí por volta dos quatro, cinco anos), mas tenho recordações que não são minhas. Lembro-me, por exemplo, dum pátio ao cimo duma colina de Lisboa — pelo que sei hoje da cidade, localizo a paisagem dessa memória na Graça, no Castelo ou por aí. A recordação é duma manhã de sol (só pode ser de manhã porque o sol está atrás de mim e vejo a ponte 25 de Abril lá ao fundo). Os telhados são os que todos sabemos, dos quadros da Maluda, mas reais, ali mesmo. Há uma roupa estendida, uma criança a rir-se, um cão a olhar para mim com a língua de fora e um senhor vestido de preto que se aproxima para falar comigo — às vezes penso que ele é Fernando Pessoa, mas isso deve ser de ler demasiado Saramago.

 

 

Isto não tem lógica nenhuma. A sério. Não nasci em Lisboa. Venho cá desde que sou pequeno, algumas das minhas primeiras memórias são em Lisboa ou perto (na Estefânia e em Birre, para ser exacto) — mas esta recordação não pode ser minha. Talvez venha dum livro, dum filme, dum documentário, duma reportagem que vi quando era muito novo. Não faço ideia. Tanto quanto sei, pode ser doutra pessoa.

 

Enfim, gosto desta memória como se fosse minha, mas tenho a sensação não completamente desagradável de estar a lembrar-me doutra vida. No fundo, é como ler: apanhamos mais vidas do que aquela a que temos direito. É, talvez, perigoso — mas é muito bom.

 

Se alguém tiver perdido uma memória à Graça, já sabe onde a encontrar.

 

Referência do quadro: Maluda | Lisboa L | Óleo sobre tela, 73×92cm, 1996 | Colecção particular, Lisboa | Número atribuído: 232 | Fonte: http://maludablog.umnomundo.eu/wp-content/uploads/2008/06/232_lisboa_l.jpg

publicado às 09:01


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