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Às vezes (não devia, mas pronto) vou pequeno-almoçar perto do escritório, em vez do saudável pequeno-almoço matinal em casa, antes de sair. Mas não interessa. O problema é quando, por vezes, saio de casa com um livro e levo-o para o tal pequeno-almoço. Estou com a minha mulher à frente, mas todos sabem que um casamento saudável implica alguns momentos de silêncio comum, um folhear de revista ali, uma leitura acolá, um olhar para o telemóvel aqui, sob o olhar muito crítico de senhoras com um balão de pensamento por cima da cabeça onde vemos escrito "ai, estes jovens, sempre a olhar para o telemóvel". Portanto, estou com a minha mulher à frente, mas começo a folhear um livro (isto passou-se ontem).

 

Neste caso, o livro é o que vai abaixo, não nesta edição, mas sim noutra, de papelaria, que li há muitos anos. 

 

Começo a ler vagamente, e de repente, é como se tivesse caído num precipício. Endireito-me na cadeira, atento mais na página, começo a ler com atenção.

 

O raio do livro é mesmo muito bom. De repente, estou a sorrir perante as invectivas contra a "cidade branca" que um distraído cineasta julgou ver em Lisboa, estou a sorrir ainda mais com o tigre inexistência da Mauritânia, estou deliciado a percorrer as apertadas ruas resvés o caminho-de-ferro de Entrecampos, a olhar para um edifício duma fundação habituada a engenharias fiscais, com uma sede pós-modernista que muito deu que falar na Lisboa da altura, tudo salpicado com muita ironia e apartes que não me deixavam largar o livro.

 

Deixo o pequeno-almoço para trás. A minha mulher termina e olha para mim. Eu continuo a ler. Ela levanta-se e paga. Eu continuo a ler. Ela olha para mim com cara de preocupação.

 

Lá tenho de cortar com o vício e levantar-me. Há que trabalhar. E custa tanto, com o livro ali ao lado, a chamar por mim.

 

Por isso, amigos, vão por mim: não levem livros para o trabalho. A bem da produtividade nacional! 

 

Não sou regular, mas uma vez por outra lá compro a Ler. Desta feita, foi por causa de Mário de Carvalho, de quem gosto mesmo muito. Comprei-a na Fnac, no sábado passado, enquanto os meus pais (que nos tinham vindo visitar), andavam a tentar ver se o meu filho dava os primeiros passos no chão pouco perigoso da livraria (ainda se pode chamar a Fnac de livraria?). Bendita alcatifa!

 

O meu filho lá começa a dar as primeiras passadas, mas gosta mais de cantar e de folhear livros, o que até me parece adequado tendo os pais que tem (o cantar é todo dela, que eu quando abro a boca para a música, só sai tragédia).

 

(Já agora, lembram-se do post sobre como descobri um dos melhores autores portugueses num livro de Português do 8.º ano?)

 

Será que era só eu que adorava o cheiro dos livros da escola, as cores, os gráficos e aquela sensação de antecipação: "então é isto que vou aprender este ano?"

 

Se calhar era só eu... 

 

Duvido. Mas pronto. 


Neste post falei de manuais e literatura nos manuais e por via dum comentário duma ilustre leitora deste blog, lembrei-me que foi com um livro de português do 8.º ano que cheguei a Mário de Carvalho.

O livro tinha o conto integral "A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho”. Como não tenho aqui esse meu livro de Português, fiquem com uma edição mais actual (não a mais recente, que como sabem o mercado de transferências de escritores anda ao rubro):

 



Se já leram, sabem como é deliciosa essa história. Este conto mostrou-me o que pode fazer a literatura — e ainda me deu um gosto especial pelos nomes das avenidas de Lisboa. Afinal, aquela “Avenida Gago Coutinho” tinha todo um sabor de avenida cheia de carros, nos anos 80, onde chefes de polícia atrapalhados combatem tropas mouras. 

 

Desde então, tive uma paixão por esse autor que tenho por quase nenhum outro autor português. Mistura a aparente leveza da linguagem com uma riqueza de vocabulário e um gosto pelas histórias e pela língua que seduz um miúdo no oitavo ano dado a estas coisas. 

 

Algum tempo depois, fui a uma feira do livro na minha escola primária. Foi uma visita engraçada: lembro-me de ter achado que voltava a um sítio onde estivera quando era novo. Ou seja, do alto dos meus 16 anos, sentia-me mais velho, quase adulto, a visitar um local da infância. Que tolo!...

 

Encontrei por lá um livro na altura muito recente: Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Não é a obra mais típica do autor, mas é provavelmente a sua obra-prima. Ao lê-lo, esperando uma história ao estilo da Inaudita Guerra, fui ficando com um sabor diferente na boca, um sabor inicialmente metálico, depois calmo, ponderado, até que tudo aquilo começa a picar-me doutra forma e fiquei com o livro no palato durante muito mais tempo do que até então estava habituado nas minhas leituras de puto. 

 

 

Algo curioso: um romance supostamente histórico, passado no Império Romano, fez-me ver o que até então não tinha visto no que toca à questão das seitas, que nessa altura era a mania du jour dos opinadores nacionais (e ainda nem sequer havia blogs!). As seitas (IURD, etc.) eram a praxe da altura, se bem me entendem. 

 

Enfim, com o tempo, tornou-se num autor que quero ler logo que sai um livro. Já no início deste século, quando comecei um mestrado, li este outro livro, que já era uma espécie de Inaudita Guerra em ponto grande. 

 

 

Há um pormenor no livro que me faz abrir todas as edições que encontro, para ver se o editor não se esqueceu de fazer uma alteração ao texto. É este ponto:

 

 

O número de página tem de ser actualizado conforme a edição... E, normalmente, é isso que acontece.

 

É isto que Mário de Carvalho faz: brinca com os textos, as edições e os leitores. Muito pós-modernista, diriam alguns. Muito bom, digo-vos eu.


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