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Vamos imaginar o tempo de Galileu. Como sabem, Galileu defendia que a Terra girava à volta do Sol e, por causa de tal heresia, sofreu o que todos sabemos. Todos sabemos, hoje, que a Terra gira, de facto, à volta do Sol — e sabemos também que o Sol também não está parado, andando a percorrer uma órbita em redor da nossa galáxia, que por sua vez também não está propriamente parada.
Continuemos a imaginar que aterrámos no tempo de Galileu: perguntem a qualquer pessoa da rua e essa pessoa irá dizer, certamente, que a Terra está parada. Então não se vê? Olhamos em volta e reparamos: o mundo está parado, bem fixo no mesmo lugar. Os astro, lá em cima, é que andam à volta da Terra. Hoje já será mais difícil encontrar quem diga isso porque, ao fim de muitos séculos, o conhecimento científico lá conseguiu "infectar" o conhecimento comum.
Vamos continuar por esse tempo: se perguntarem a alguma pessoa da rua o que acha dessa história dum tal de Galileu defender que a Terra anda a girar em torno do Sol, o nosso entrevistado talvez dissesse que Galileu é um desses cientistas que se acha muito esperto, mas que não vê o que está à frente dos olhos de qualquer um: a Terra está bem parada, ponto final. Terá algumas ideias sobre esses cientistas: dirá, talvez, que andam a gastar dinheiro dos contribuintes, que andam ao serviço do demónio, que não sabem o que fazem, que andam a tentar desviar as crianças para o caminho do Mal (ou outra coisa qualquer).
Perguntem agora a um sacerdote: ele até poderá conhecer de forma mais profunda as ideias de Galileu e até perceber a sua coerência interna, mas também sabe das implicações de aceitar tais ideias. A sua recusa será mais intelectual, mas mais aguerrida: Galileu põe em causa tudo o que há de mais sagrado. Investigar o que ele diz não interessa e a própria investigação tem de ser considerada uma heresia.
Ora, o que temos aqui é o seguinte:
a) As ideias comuns sobre determinado fenómeno.
b) As ideias científicas (sempre em evolução e não necessariamente conformes às ideias comuns).
c) As ideias comuns sobre o que fazem os cientistas.
d) As ideias dos sacerdotes (aqueles a quem interessa defender as ideias comuns por terem algum interesse ou algum investimento emocional nessas ideias).
Quando falamos de línguas e linguagem, temos, muitas vezes, todos estes elementos de forma igualmente clara.
a) As línguas são objecto de muita curiosidade e muitas ideias — "há línguas melhores do que outras", "os brasileiros falam um português imperfeito", "os lisboetas não têm sotaque", "os jovens falam cada vez pior", etc.
b) Existem uns cientistas que estudam as línguas e a linguagem humana chamados "linguistas". Estes cientistas têm ideias que vão evoluindo, através do confronto entre teoria e realidade, confronto esse que permite refinar essas mesmas teorias. As ideias dos cientistas e a sua terminologia nem sempre estão de acordo com as ideias comuns sobres as línguas e linguagem. Como em todas as disciplinas científicas, há vários pontos de discórdia entre cientistas, mas todos acreditam que podem aproximar-se da realidade através do estudo científico das questões (sem nunca acreditarem que estão na posse de conclusões definitivas). Por outro lado, há um grande consenso sobre alguns pontos básicos relacionados com as línguas — pontos básicos esses que nem sempre estão de acordo com as ideias comuns sobre as línguas — ou seja, em muitos pontos os linguistas, no seu conjunto, sabem coisas que as pessoas em geral desconhecem (e isto por vários motivos).
c) A população em geral e os especialistas doutras áreas têm ideias sobre o que os linguistas fazem que nem sempre correspondem ao que os linguistas pensam, dizem ou fazem. Por exemplo, muitos acham que a linguística defende que tudo está certo e podemos falar como quisermos, quando, na realidade, a linguística não tem como objectivo prescrever normas ou a falta de normas. (Dito isto, o conhecimento linguístico leva, normalmente, os linguistas a terem opiniões diferentes em relação a estes pontos em comparação à população em geral — da mesma forma que será mais difícil encontrar um cientista na área da física ou da astronomia que acredite em fantasmas ou na astrologia...).
d) Também na área das línguas e da linguagem existem sacerdotes: professores, escritores, jornalistas, tradutores, etc. Todos estes sacerdotes têm um investimento emocional muito forte em certas ideias sobre as línguas e a linguagem e nem sempre gostam das conclusões científicas sobre essa mesma área.
Nesta comparação entre as ideias astronómicas científicas e comuns e as ideias linguísticas científicas e comums há uma diferença: ao contrário do que se passa com a Terra e o Sol e Galileu, os linguistas têm de tomar em consideração as ideias comuns sobre as línguas e a linguagem, porque essas ideias fazem parte do seu objecto de estudo. Ou seja, o que as pessoas acham que sabem sobre a língua que falam tem influência sobre essa mesma língua e é, por isso, objecto de estudo da linguística.
Mas, em grande medida, estamos a falar do mesmo fenómeno: a relação difícil entre o conhecimento comum e o conhecimento científico. É uma relação difícil por natureza, porque o conhecimento científico existe para podermos ultrapassar os enviesamentos, as generalizações e os erros do conhecimento comum. O que não quer dizer que o conhecimento comum esteja sempre errado: pode acertar, em alguns pontos (ou até, no limite, em todos) — mas tem de ser testado, integrado num sistema teórico coerente e válido (até mais ver), etc., etc. Não basta acreditar, é preciso testar...
Por outro lado, a todos os linguistas que desesperam por verem o conhecimento comum tão distante do conhecimento científico sobre as línguas e a linguagem, é preciso dizer: por vezes é preciso esperar séculos para que o conhecimento comum integre o que a ciência descobriu.
Não deixa de doer aos linguistas, no entanto, ter de levar com a arrogância típica de quem acha que sabe... E todos nós achamos que sabemos tudo e mais alguma coisa sobre línguas e linguagem. No entanto, só quem percebe o que não sabe consegue aprender. E temos tanto a aprender e a descobrir sobre estes assuntos...
Bem, já que andamos numa de línguas por este blog, proponho-vos este livro de Steven Pinker. Para quem tem das línguas e da linguagem humana uma visão convencional, este livro dá uma volta à cabeça parecida com a volta à cabeça de quem achava, há uns séculos, que a Terra era o centro do universo e, depois, vai-se a ver e descobre que não é bem assim.
A linguística — disciplina de que gosto especialmente, para horror de muitos meus amigos, que acham que mais valia dedicar-me às drogas duras — é encarada por muitos como uma heresia no espaço sagrado das Letras e muitos intelectuais acham-na tão perigosa como essa coisa da ciência no tempo da Inquisição. Mas vemos isso depois.
Pinker mostra como a linguística é uma ciência muito interessante. Ele próprio explica o seu estilo de escrita:
O que o livro faz é mostrar como muitas das ideias que as pessoas com educação avançada têm sobre a linguagem humana estão, simplesmente, erradas:
(...)
Já agora, se quiserem, tenham uma "pequena" aula sobre todos estes assuntos. Se não tiverem tempo, ficam pelo menos a saber qual o aspecto de Steven Pinker:
Tenho pena de não ler mais livros brasileiros. O pouco que li da literatura desse monstro além-Atlântico foi maravilhoso. Hei-de vos falar disso.
Agora, o que não percebo é o horror de alguns portugueses a ler em português do Brasil — ou sequer a aceder a sites em "brasileiro".
Ainda agora, li uma queixa duma gentil utilizadora facebookiana porque tinha acedido a um site norte-americano, que a tinha redireccionado para uma versão em português — ou melhor, em português do Brasil.
Sim, o site norte-americano devia ter, num mundo ideal, as duas versões: português europeu e português brasileiro. Mas, não tendo, decidiu que devia orientar os portugueses para a versão em português. Ai, o horror!
A portuguesa queixosa escreveu uma carta à dita empresa, alegando que:
a) É ofensivo para um português ser redireccionado para um site em português do Brasil.
b) O português do Brasil e o português de Portugal são muito mais diferentes do que o inglês americano vs. inglês britânico.
c) Tendo de escolher, o site devia ser sempre em português europeu, porque é a "raiz" e a "fonte" do outro português.
Compreendo a dor, mas deixem-se de lamúrias que, aos olhos dos estrangeiros, só mostram pequenez. Pois:
a) Percebo que queiramos uma versão na nossa própria variante e, se a empresa estivesse a agir directamente em Portugal, seria um erro crasso publicar textos em "brasileiro" (até porque os portugueses são, de facto, ultra-sensíveis a esta questão). Mas achar ofensivo (!) que uma empresa norte-americana nos redireccione para um site em português (mas não no exacto português que preferimos) é um pouco exagerado.
b) Em termos linguísticos, o português de Portugal e o português do Brasil são duas variantes da mesma língua, com diferenças que não são assim tão incomparáveis às diferenças entre o inglês britânico e o inglês americano. A grande diferença é que há muito mais contacto entre os dois ingleses. Aliás, as duas normas cultas (portuguesa e brasileira) estão muito mais próximas, na escrita, do que poderíamos pensar, como é fácil perceber lendo um livro de ciências sociais em português do Brasil, por exemplo (vejam o exemplo abaixo, dum livro brasileiro sobre, exactamente, as diferenças entre as duas variantes — se ignorarem os tremas, o blurb passaria por texto português de Portugal...).
c) Ora, nisto da raiz e da fonte... Tanto nós como os brasileiros partimos duma base comum, e ambos os lados mudaram a língua — há quem diga que nós até fomos mais longe nas mudanças: por exemplo, no som "chchch" na leitura do "s" final das sílabas, que Camões dizia "ssss". Andarmos a discutir onde está a fonte rapidamente descamba em discussões sobre a pureza e a propriedade da língua, e acabamos todos a ter de dizer que falamos galego.
Nós somos portugueses, falamos português — e a nossa língua é muito mais do que a nossa variante europeia. É tudo o que está dentro dessa grande língua, de que devemos estar orgulhosos. Não se ofendam tanto — e leiam mais, em português dum e doutro lado. Só temos a ganhar — e nada a perder.
Ainda no domingo passado um comentador deste blog ao vosso dispor escarnecia dos estrangeirismos, o que é normal e se calhar, vai-se a ver, até é saudável. Não sei. Por mim, acho interessante até fazer água na boca a forma como as línguas não viram as costas umas às outras e andam por aí a fazer o amor até em títulos de blog como, por exemplo, o magnífico híbrido anglo-francês (e, no fim de contas, português) Mood du Jour. Ah, bliss...
As pessoas passam a vida preocupadas com a língua portuguesa, mas em vez de arrancarem cabelos, mas vale ler e falar e ouvir e escrever — e a língua, esse bicho safado, lá se há-de safar.
Nisso, estou como o Stephen Fry (vejam o vídeo, por favor).
Agora, ando a ler o livro Txtng — The gr8 db8, do divertidísismo David Crystal. Este autor explica bem como a linguagem SMS não é nenhum drama, usa mecanismos que já existiam na língua (neste caso, inglesa) e não está a ter impacto negativo no conhecimento linguístico dos jovens.
Antes de começarem aos gritos, experimentem ler o senhor Crystal. É que ele, se calhar, até tem razão.
"Ah, então quer dizer que agora podem escrever assim nos testes?"
Não, claro que não podem. E só o fazem por distracção. Desde sempre a língua teve vários registos e não saber usá-los nas situações apropriadas é que é falta de conhecimento linguístico. Tanto erra o aluno que escreve num teste "Ñ sei q resposta dar" como o jovem que escreve uma SMS a uma amiga: "Ex.ma Sr.ª, gostaria de se encontrar comigo depois de amanhã à porta do botequim? Poderá haver possibilidade de contacto físico, se V. Ex.ª assim o entender."
Ora, como alguns já saberão, tenho várias manias. Aliás, o título aqui do V. humilde blog lembra essa característica minha, que pode ser muito irritante para quem me conhece sem o filtro do Sapo. Ora, uma das manias é essa coisa das línguas.
Não só tive a suprema desfaçatez de gostar de linguística ao longo do curso — e quem andou por essas negras lides dos cursos de Humanidades sabe como a linguística é o horror dos pobres letrinos, que gostam pouco daqueles ares de matemática ou de ciência dura (pronto, não exactamente dura, mas um pouco mais rígida, se quiserem) no meio das Sagradas Letras — dizia eu, não só gostei de linguística, como fazia coisas estranhas desde pequeno. Inventei línguas (quem não o fez?), aprendi palavras em várias línguas — e derretia-me com as pequenas diferenças linguísticas que encontrava pelos meus caminhos: desde os sotaques, às palavras tão sólidas e suevas lá para o Norte e tão árabes lá para o sul, até aos "acentos nas consoantes", como chamei aí com uns 10 anos ao "ñ" na palavra España, ali na fronteira. As línguas e a linguagem e a escrita e tudo isso eram uma fonte de prazer curioso — e não sei mesmo donde vem esta mania.
Pois esta mania minha acabou por me levar a tentar aprender um pouco de basco. Pois. Essa mesma língua falada ali para o norte da Península, numa região encavalitada entre Espanha e França e que todos conhecemos nem que seja pela acção dos etarras, que é coisa pouco recomendável como forma de divulgação duma região.
Confesso que tentei, mas não avancei muito. Tinha muito para fazer. Aprendi a dizer o meu nome, ou seja, a dizer "Chamo-me X" — e pouco mais. É algo assim: Nire izena João da. (Já agora, não me chamo João, mas vocês percebem.) Mesmo isto, já tive de ir verificar.
A língua basca é estranha. Parece inventada. Não é indo-europeia e não se sabe muito bem donde vem (nem para onde vai, de facto).
Se quiserem mais um pouco de basquices, têm aqui um pequeno excerto dum texto em espanhol e basco. O basco é a letra pequenina...
Tudo isto para vos dizer que essas minhas maluqueiras de juventude (bolas, mais valia ter saído mais à noite...) levaram-me a conseguir responder a este post do blogueiro internacional Jerry Coyne logo à primeira. Estou contente!
Afinal, o pobre autor não sabia por que línguas andava o seu livro... Tinha de o ajudar!
Se este post não servir para mais nada, sirva, pelo menos, para vos levar a conhecer Jerry Coyne e o seu blog sobre biologia, que se dedica a defender a Evolução (essa do Darwin) nos E.U.A., o que não é pêra doce. É um blog de livro, ou seja, criado para acompanhar o livro Why Evolution Is True, que até tem edição portuguesa, da maravilhosa Tinta da China!
http://whyevolutionistrue.wordpress.com/
Ora, esta sugestão do Sapo é muito curiosa, mas como estou no escritório e não em casa e apetece-me responder agora, que é hora de almoço (para quê comer, quando se pode blogar?), envio uma fotografia de livros de mesa de... escritório.
Então, aqui na minha secretária na empresa onde trabalho, tenho estes dois livros:
Ora, o que está por baixo é a The Cambridge Encyclopedia of Language, de David Crystal. Mandei-o vir da Amazon há uns tempos, e lá vou folheando e consultando. É sempre um bom passatempo. Para quem gosta de línguas e linguagem, é magnífico. Se quer saber porque existem tantas línguas, o que são famílias de línguas, o que quer dizer uma "norma", por que razão as pessoas falam de forma tão diferente de região para região, por que razão não se pode dizer que haja línguas melhores ou piores que outras, etc. — este livro ajuda a responder a (quase) tudo. O autor é um linguista inglês cujas obras são conhecidas por serem divertidas, o que poucos associam à linguística.
Já o segundo... Ora bem, confesso a minha ignorância, mas não conhecia a autora (Anna Banti) até um dia ter recebido uma encomenda da Amazon com este livro. Que nunca tinha encomendado.
Exacto, a Amazon mandou-me um livro que não encomendei.
Depois percebi que veio em substituição duma outra encomenda que tinha feito, e que não chegou. Depois de reclamar, lá me enviaram a encomenda original — e acabei por ficar com este também, por oferta generosa.
Posso dizer, a bem da verdade, que de todas as encomendas que fiz na Amazon — e já foram muitas —, esta foi a única falha. E sempre fiquei com um livro a mais...
(Hei-de vos contar um dia como foi a minha primeira encomenda na Amazon. Foi uma encomenda feita a 0 euros!... Ah, pois é...)
O rato por cima da enciclopédia é só para disfarçar...
Gosto muito de línguas, tenho a dizer. Ficam avisados: se quiserem continuar a ler este blog, vão ter de levar com esta minha outra mania.
Gosto de línguas, de saber o que se fala e como se fala nos vários sítios por onde vou passando, quais são os meandros dessas línguas, a intrigante variedade das formas de falar, casos como norueguês em que os políticos falam "como na terrinha" e praticamente não há norma culta no que toca à fala e duas normas separadas no que toca à escrita, casos como famílias onde se misturam línguas e vai-se a ver miúdos até saem mais desenvoltos do que puros monolingues (que surpresa!) — depois gosto de (fiquem bem, todos aqueles que vão desligar-se deste blog neste momento) linguística e de ver como funciona de facto a linguagem humana (e a forma absurda como muitas pessoas pensam que funciona…).
Para lá da língua falada, gosto da escrita, aquilo que aparece pelas paredes, nas placas da estrada, nos papéis que temos na mesa, nas folhas dos livros. Pois, nos livros. Afinal, quem gosta de ler, tem de gostar de palavras, de línguas, de linguagem...
E gosto da linguagem duma forma descomplexada, meus amigos. Estou com o Stephen Fry, um purista arrependido, porque não há nada mais assassino da língua do que os puristas obtusos que andam a armar-se em polícia em vez de perceberem que a língua é para se usar e abusar e não para se patrulhar como se fosse um cristal prestes a partir-se.
Não facilitem, sejam exigentes: não reduzam a língua a umas quantas regras, que a língua e as línguas são muito mais do que isso. São para se saborear com a língua, com os olhos e com o corpo.
Vejam o filme, que é muito bom:
Neste post do blog Pais de Quatro, comentei a agradecer a referência com uma banalidade imperdoável: que isto dos filhos "não vem nos livros".
Enfim, depois pus-me a pensar. Será que não vem mesmo? Os livros descrevem tanta história, tanta emoção, tantas horas de vida e tanta coisa diferente, que obviamente os filhos hão-de lá estar.
Depois, quem é que pode dizer que alguma coisa não vem nos livros? Já alguém leu os livros todos? Já alguém leu 1% dos livros todos que há para ler? Já alguém leu 0,1% dos livros todos que há para ler?
Bem me parecia.
Mas, mesmo assim, depois de ter passado pela experiência de ter um filho (não tê-lo fisicamente, que isso ficou para a minha mulher, por imperativo legal que devia ser alterado urgentemente em sede de orçamento rectificativo) — dizia eu, depois de ter tido o primeiro filho, fiquei com a sensação que nunca tinha lido aquilo em lado nenhum, nem sequer de forma vaga.
Os livros, muitas vezes, tornam-nos atentos às coisas que não notávamos antes, antecipando aquilo que vivemos e dando-nos um quadro de referências onde inserimos a nossa vida real. Um pouco, por exemplo, como quando vamos a uma cidade que nunca visitámos e de repente sentimo-nos em casa, porque aquela cidade vem nos livros que lemos. Se calhar, até a visitámos bem melhor antes de lá pormos os pés do que depois de a vermos com olhos sem livros, que são olhos menos atentos.
Ora, para ter um filho não houve livro que me preparasse. De muitos livros (provavelmente sou eu que não leio o que devia), tiro que os filhos são uma parte dessa nuvem de coisas chatas, a casa, a família, aquilo que não faz parte da vida a sério, a horrorosa rotina (ai, qu'horror!). Os bebés até são muito giros, mas também são muito kitsch, não são? Tanta fraldinha, tanto paninho, tanto beijinhos... Não são material literário, a não ser que seja para fazer sofrer alguém.
Porquê? Talvez porque a felicidade seja desinteressante como tema literário, porque a infelicidade é o que nos distingue uns nos outros, à la Tolstoi? Ou será porque a literatura não deixa de ser actividade das horas infelizes, onde escrever é a forma de sublimar a miséria de certos momentos noutra coisa melhor, que nos "salve"? Quem tem filhos escreve pouca literatura? Bom tema para um estudo estatístico, daqueles que irritam alguns sacerdotes da literatice.
Perdoem-me a imodéstia, mas acho que acabei de dizer uma série de lindos disparates. Mas ficam ditos, pode ser que ajudem alguém a destrinçar isto.
O que me apetece dizer é que essas horas em que um filho nasce, em que o vemos ao colo da mãe cansada, mas a sorrir, nessas outras horas em que mudamos fraldas, damos banho, vemos o primeiro sorriso e parece que é a primeira vez no universo em que isso acontece, quando começamos a perceber como ele é, quando percebemos que ele nos reconhece e quando pegamos ao colo, nada disso vem nos livros, porque não tem de vir e não é fácil que venha. As palavras são rombas e não conseguem transmitir as emoções e razões destes dias. Reparem, tudo isto soa a cliché — primeiro, porque não tenho talento para mais; segundo, porque as palavras não são uma matéria que se molde facilmente. Por isso caímos todos tão facilmente no vício da fotografia. Pelo menos, parece fácil agarrar aquele momento. É uma ilusão, claro, porque a própria dificuldade das palavras dá-lhes o sopro, por vezes, para capturar, de facto um certo momento, muito melhor do que qualquer fotografia.
Adiante: não sei se os filhos vêm nos livros. O meu, certamente não vem.
Já agora, quando a literatura tenta falar da felicidade, como em Saturday, de Ian McEwan, os críticos não costumam ser meigos. McEwan tornou-se complacente, instalou-se, aburguesou-se. Mas, não, simplesmente descreveu uma família feliz — e descreveu aquele medo que está por baixo de toda a felicidade.
Enfim, é um óptimo romance. Que vai muito além da felicidade familiar do protagonista neurocirurgião: temos a tensão entre ciência e literatura; temos a guerra do Iraque; temos o prazer de fazer um bom trabalho; e temos a gravidez e a poesia e a forma como as palavras nos podem salvar (literalmente).
Mas havemos de voltar a este senhor.
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