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Há um género jornalístico muito específico — e muito cretino. É a famosa entrevista ora-vamos-lá-ver-quão-estúpida-é-esta-gente. Normalmente, as “vítimas” são jovens, de preferência universitários, para que a geração que agora está no poleiro profissional possa ficar descansada: os que vêm a seguir são bem parvos.

Ora, a coisa é simples: é sempre possível encontrar pessoas que não sabem alguma coisa. Aliás, todos nós não sabemos coisas que os outros acham essenciais. Fazendo um número suficiente de perguntas, encontramos sempre ignorância. Depois, é uma questão de montar bem a coisa, mostrar só os piores momentos — e o resto é apenas aquela mania que temos de ligar apenas ao que confirma o que pensamos. Se a ideia geral é que os jovens são estúpidos, então chega mostrar um ou dois exemplos a favor do nosso preconceito.

Já fazer investigações a sério, isso dá muito trabalho. A questão certa será: as várias gerações têm melhorado os seus conhecimentos no âmbito da literacia e numeracia, ou estamos pior do que estávamos? Ficariam admirados com a resposta…

É tão fácil cair na tentação de bater na ciência. A Sábado publicou um artigo quase humorístico sobre estudos científicos que defendem teses opostas (Sábado, n.º 486, pp. 70-72). Ou seja, a jornalista pega numa ideia comum muito difundida ("os cientistas hoje dizem uma coisa, amanhã outra — logo, não podemos confiar na ciência") e quer confirmá-la, divertindo os leitores à custa dos doidos dos cientistas. Estes, para quem lê o artigo, parecem baratas-tontas à procura de respostas, sem nunca as encontrar (o que até tem um fundo de verdade, mas não da forma que a jornalista pensa). Bater na ciência é fácil, porque a ignorância científica fica reconfortada ("afinal, não sou ignorante; estes cientistas é que não percebem nada").

 

Sim, é verdade que é possível encontrar estudos para todos os gostos. Por isso é que a verdadeira ciência obriga a estudos replicáveis, nunca se baseia num só estudo para chegar a conclusões, exige uma série de estudos de confirmação para que uma nova teoria seja aceite pela comunidade científica, sabe que há sempre estudos atípicos, há estudos bem-feitos e estudos mal-feitos, e por aí fora.

 

O que um jornalista poderia fazer era pegar num dos tópicos referidos neste artigo e analisar os vários estudos, perceber quais são os melhores, que meta-análises se fizeram, quais são as conclusões mais sólidas a que podemos chegar neste momento (se as houver), o que diz a comunidade científica sobre o assunto, quais as razões para estes resultados díspares, terá havido problemas nas experiências contraditórias, etc.

 

Podia até escrever um artigo semelhante, com estes exemplos, mas que explicasse por que razão estes resultados contraditórios aparecem e que métodos usa a ciência para progredir neste emaranhado. Porque a ciência consegue progredir. Quem a ignora (e faz gala disso) é que não sabe o que perde.

 

publicado às 02:42


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