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Já aqui falei de como um livro fica ligado ao sítio onde o lemos.
Aliás, não propriamente um livro inteiro, mas por vezes o episódio ou o parágrafo que lemos em determinado sítio.
Anos depois, é possível reler o livro e ser transportado para esse sítio em particular, com os sons e cores da altura — e com as sensações que tínhamos no momento (se estávamos tristes ou alegres ou cansados ou nervosos ou o que quer que seja).
Ora, há uns anos, tive de ir a Madrid em trabalho, com a minha mulher (é uma das vantagens de trabalhar com a legítima esposa...).
Escolhemos um hotel barato que ficasse, mesmo assim, no meio de Madrid, para podermos passear um pouco e não ficarmos presos nos arrabaldes onde tínhamos de ir em trabalho.
Resultado: uma grande surpresa. O hotel onde ficámos não prima pela modernidade, mas não parece nada o preço que custou — no bom sentido.
Só para perceberem: no terraço havia uma piscina, algo que não tínhamos reparado na reserva — tivemos de ir arranjar fatos-de-banho em Madrid para poder aproveitar o calor de Julho com o sol em chapa...
Enfim, enquanto aproveitávamos os fins de tarde quentes no terraço do hotel, com o som do trânsito da Gran Vía lá em baixo e a vista do Palácio Real para o outro lado, fui lendo Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares.
O autor andava a intrigar-me. Acabei por pegar num dos livros de capa negra e comprar, para a viagem. O ambiente do livro é aquele que sabem: germânico, metálico, tudo arredondado com as boas palavras portuguesas. Uma espécie de Kafka a escrever directamente em português, e em bom.
Resultado, nesses fins de tarde de mergulhos, vistas urbanas entre reflexos de piscina e entardeceres quentes de Madrid, fui mastigando esse sabor de metal, sabendo que anos depois haveria de recuperar esses momentos ao reler o livro.
Se não fosse um bom livro, pelo menos teria valido por isso — mas ainda por cima é bom.
Acho mesmo que Gonçalo M. Tavares anda um pouco mais à frente de nós todos. Daqui a umas décadas será, certamente, o melhor escritor português (já o deve ser, mas ainda não chegámos lá, nós, os portugueses).
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