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E não é que me fui esquecendo dos livros da minha vida?

 

Mas não importa. Avancemos para o quarto livro da minha lista de livros da vida:

 

 

Exacto. O Mundo de Sofia. Eu sei que é uma escolha muito adolescente, mas, enfim, não vou mentir: foi mesmo um dos livros da minha vida.

 

Quando li, foi como se me tivessem empurrado duma ribanceira abaixo, porque me senti sem chão, com as famosas crises existenciais em catadupa. Foi importante, porque me deu umas luzes sobre a história das ideias, sobre os debates filosóficos, sobre o pensamento crítico e por aí fora — e tudo com a intensidade emocional que qualquer adolescente precisa. 

 

Não me consigo esquecer de muitos episódios, de muitas explicações — por exemplo, os fracos que Sofia bebia alternadamente, mostrando-lhe o mundo visto pelos românticos ("é impossível imaginar como é ser outra pessoa!") e pelos realistas ("somos todos iguais e o mundo está em comunhão perpétua") — algo assim, porque lembro-me, mas não me lembro assim tão bem.

 

Na altura, li muitas críticas e recensões e lembro-me de ter lido uma crítica, num jornal qualquer, em que um filósofo-vedeta (o único em Portugal!) tirava importância ao livro, afirmando algo do género: "não é preciso divulgação em filosofia, é preciso é investigação". Ou seja, o que é preciso é mais pessoas a fazer filosofia encerradas nos departamentos das universidades, e menos filosofia na rua. 

 

Ora, se a filosofia é importante, e é, é exactamente porque não pode estar encerrada em sítios escuros, que também são importantes, claro, mas não são tudo.

 

Se não é importante conseguir que alguns miúdos leiam e fiquem maravilhados com aquilo...

 

Enfim, tudo para vos dizer que fiquei quase ofendido com essa opinião do filósofo-vedeta.

 

Ora, o certo é que, mesmo sendo um livro tão adolescente, não é para todos. Porquê? Porque para muitas pessoas, muitos jovens da minha idade de então, há a barreira intransponível da "seca". Tive uma colega muito inteligente e aplicada que, mesmo assim, achou aquilo "secante". 

 

É das coisas mais difíceis de combater: a forma como o medo do tédio mata a curiosidade que todos temos em nós.

 

E não se pode dizer que o autor deste livro maravilhoso não tenha feito tudo para não ser secante. 

 

Bem, para todos os que não tiverem medo de pensar, este livro é fundamental. A aventura começa depois de o lerem.

Ora, um dos livros que gostava de vos aconselhar é The Fabric of Reality, de David Deutsch. (O artigo da Wikipédia inglesa é bastante bom.)

 

 

Convém estarem preparados para uma jornada muito diferente do que é habitual. O livro não se fica por explicações académicas ou escolares, mas tenta juntar vários fios do conhecimento científico dos últimos séculos (principalmente, do último século) para apresentar uma hipótese (ainda vaga) de teoria do Tudo.

 

Estes fios são quatro: a física quântica (don't be afraid, my friends!), a teoria do conhecimento (com base, principalmente, em Popper), a teoria da computação e a teoria da evolução. 

 

Isto pode parecer tudo muito abstracto, mas garanto-vos que, se lerem o livro com algum espírito de aventura (intelectual), irão ter a vossa visão do mundo transformada de forma bastante radical. Fala-se de: o que é o real; o que é resolver problemas; qual é o significado da vida; como saber o que é real; etc., etc., etc. E nada de espiritualidades bacocas ou palavras bonitas sem qualquer significado real. Estamos a falar dum físico, não dum astrólogo...

 

O livro ajuda-nos ainda a perceber o que é uma boa explicação, o que ajuda muito, por vezes, a distinguir disparates de explicações mais acertadas do mundo. Vou tentar resumir, porque julgo ser algum muito útil para todos: uma má explicação é uma explicação que implica necessariamente uma outra explicação do mesmo fenómeno que, por si só, bastaria para explicar o mesmo. Ou seja, se a explicação A implica uma explicação B, mas B seria o suficiente para explicar o que quer que seja que estamos a tentar explicar, A é uma má explicação e B será uma melhor explicação do mesmo fenómeno.

 

Sim, imagino que neste momento a coisa não faça sentido nenhum.

 

Mas o exemplo dado pelo autor é bom: todos sabemos que há uma altura na vida de adolescente em que temos as chamadas crises existenciais. Pelo menos, aqueles de nós mais dados a esses disparates. Ora, uma das manifestações dessas crises é o chamado solipsismo. A certa altura, ficamos na dúvida se o universo existe ou se não será apenas invenção da nossa mente e a nossa é a única coisa realmente... real. 

 

Sim, eu sei, da altura dos nossos 25 ou 30 ou 40 ou 50 anos, isto parece um disparate pegado. Mas há teorias filosóficas inteiras fundadas nesta ideia de que é possível o universo ser uma ilusão...

 

Pois bem, segundo Deutsch, a explicação A (o universo é uma ilusão na nossa mente) implica necessariamente uma explicação B ([A] o universo é uma ilusão na nossa mente que dá a sensação que se comporta como se [B] fosse real, com regras que podemos apreender, com outros seres conscientes e autónomos, etc. e tal). A explicação [B] é melhor: o universo é real, com regras que podemos apreender, com outros seres conscientes e autónomos, etc. e tal. Não precisamos da explicação [A] para nada.

 

Isto assim não parece coisa importante, ou parece, aliás, demasiado esotérico para ter interesse.

 

Mas tem, ó se tem!...

 

Outra coisa muito curiosa que ele nos diz é que as explicações do mundo têm vindo, progressivamente, a ganhar simplicidade e profundidade. Os quatro elementos ou fios de explicação que ele nos apresenta são muito mais simples do que elaboradas teorias mais antigas, que explicavam muito menos. É, assim, possível saber muito mais e ter conhecimento muito mais profundo em muito menos tempo. 

 

É fácil compreender isto. Afinal, um miúdo do 8.º ano das nossas escolas sabe muito mais do que muitos cientistas do século XVII...

 

Bem, tenho a impressão que não fui muito convincente nesta minha tentativa de vos levar a ler o livro. É pena. Mas a perda é vossa, garanto-vos.

 

E, não se esqueçam, ele nem sequer é filósofo. É um físico. E escreve extraordinariamente bem.

publicado às 13:50

Não sei se conhecem Jorge Buescu. Se não conhecem, corram a conhecê-lo.

 

É um professor de Matemática, o que em certos ambientes é suficiente para matar o ambiente e deixá-lo com a reputação de rastos. Mas não tão quadrados. A matemática é, na realidade, muito interessante.

 

Leiam, para começar, este livrinho que já vai para 11 anos:

 

 

Com um estilo leve, mas rigoroso, o autor explica-nos alguns mistérios comuns, que são esclarecidos pela ciência, como o tal mistério do Bilhete de Identidade.

 

Não me vou alongar muito a puxar-vos para este livro, mas posso contar-vos que ele me deixou, há 10 anos, com a pulga atrás da orelha em relação a Karl Popper. Afinal, o filósofo da ciência é muito importante para perceber o que é a ciência:

 

 

Com este bocadinho de texto, tive de encomendar logo este calhamaço: 

 

 

O resumo do calhamaço é impossível de fazer, mas se quiserem ficar também com a pulga atrás da orelha, convém saber que a ciência não anda a tentar provar seja o que for, mas sim a testar teorias, ou seja, a tentar falsificá-las.

 

O conceito é complexo e não deixa de ter os seus problemas, mas está relacionado com um princípio mais genérico do pensamento racional: quando temos determinada ideia, se queremos mesmo chegar mais perto da realidade, em vez de procurar os casos que confirmam a nossa teoria, devemos procurar os casos contrários, para ver se as nossas ideias se aguentam. Devemos testar o que pensamos.

 

Já agora, para os mais intelectualmente maladros, vejam bem o que está por baixo do pobre Popper e digam lá se não está com umas companhias duvidosas em termos científicos...

publicado às 13:25

Ah, pois é...

Uma discussão foi tanto mais proveitosa quanto mais os participantes puderam aprender com ela. Significa isto que, quanto mais interessantes e difíceis tenham sido as questões levantadas, tanto mais eles foram induzidos a pensar em respostas novas, tanto mais terão sido abalados nas suas opiniões, pois foram levados a ver essas questões de forma diferente após a discussão – em resumo, os seus horizontes intelectuais alargaram-se. […]

 

Não devemos esperar que qualquer discussão crítica sobre um assunto sério, qualquer «confronto», alcance logo resultados decisivos. A verdade é difícil de alcançar. […]

 

As discussões sérias e críticas são sempre difíceis. […] Muitos participantes numa discussão racional, ou seja, crítica, consideram particularmente difícil ter de desaprender aquilo que os seus instintos lhe impõem (e aquilo que lhes é ensinado por todas as sociedades que debatem): ou seja, vencer. Pois o que têm de aprender é que uma vitória num debate não significa nada, ao passo que a mínima clarificação de um problema que se tenha – mesmo a mais pequena contribuição para uma compreensão mais clara da sua própria posição ou da de um opositor – constitui um grande sucesso. Uma discussão que se vence, mas que não ajuda na alteração ou na clarificação da vossa mente, nem que seja só um pouco, deverá ser considerada uma perda completa. […]

 

A discussão racional […] é modesta nas expectativas: é suficiente, mais do que suficiente, se sentirmos que conseguimos ver as coisas sob uma nova luz ou que até nos aproximámos um pouco mais da verdade.

 

K. Popper, O Mito do Contexto – Em Defesa da Ciência e da Racionalidade

Vou-vos confessar uma coisa. Espero que não me levem a mal. 

 

O que tenho a confessar é isto: houve um dia em que cheguei à conclusão que não devia continuar a fazer downloads ilegais de música e filmes pela Internet. 

 

Como cheguei a essa conclusão (pessoal!), não vale agora vir para aqui descrever. O que posso dizer é que isso me trouxe alguns dissabores. Tentei explicar junto de amigos o porquê dessa decisão, tentei argumentar, mas aquilo que encontrava era apenas irritação perante a minha impertinência.

 

Afinal, o download ilegal é uma prática tão comum na minha geração que alguém vir argumentar que pode não ser a melhor coisa do mundo só pode ser coisa de lunático ou armado em santinho.

 

Não estou, garanto, armado em santinho. Nem sequer me ponho com grandes moralismos perante quem faz o que eu já fiz. Simplesmente, discuto e argumento — e julgo que ninguém pode recusar-se a um bom debate, mesmo que (ou principalmente se) a conclusão do debate nos possa levar a mudar algum comportamento.

 

Ora, isso sim critico: não o descarregamento ilegal, em relação ao qual continuo com dúvidas, mas sim ao facto de haver pessoas que recusam alterar qualquer tipo de comportamento depois de reflectir. Primeiro faz-se, depois arranja-se os argumentos necessários para justificar o que se fez — e nunca por nunca se considera a vaga hipótese de podermos estar errados.

 

Se pensarem bem, isso é receita para o desastre... Mas o que posso fazer? Não só muita gente se recusa a alterar comportamentos, como se recusam a alterar uma mera opinião. As opiniões, para muitos, são como as jóias: arranjam-se e penduram-se ao pescoço — e nada mais há a dizer.

 

Adiante. Estou a arriscar muito com este post, parece-me. Espero que me perdoem esta impertinência toda.

 

Outra coisa que, nesses (poucos) debates que tive sobre os tais downloads, reparei na argumentação contrária foi o seguinte: como eu já tinha feito downloads ilegais, não podia argumentar contra os mesmos. Mais: certamente continuaria a fazê-los. Aliás, tive um colega que ficou radiante quando reparou que eu usava o YouTube: "isso também é ilegal! Estás a ver? Não tens razão!"

 

Bem. Quanto ao YouTube, a conversa é mais complicada. Mas não é essa a questão. A questão é esta: eu descarregar ou não seja o que for terá pouca relevância para a razão (ou falta dela) dos meus argumentos. Não sei se estão a perceber... Eu podia continuar a descarregar e não deixar de ter razão nos argumentos. Se o fizesse conscientemente, seria certamente hipócrita, mas tal defeito meu não tiraria razão aos argumentos, que são independentes aqui da minha pessoa...

 

Esta questão é subtil, mas enfim... É meia-noite e meia, a cabeça já não pensa como deve ser. O que gostava de vos deixar para este início de semana é isto: 

 

 

 

E é assim que introduzo Séneca aqui no blog. A Vida Feliz, traduzido por João Forte, editado num livrinho cinzento, que veio publicado num jornal há alguns anos, e que me parece ser uma preciosidade que foi quase gratuita. 

 

Quer isto dizer que me julgo virtuoso? Que defendo a virtude, essa coisa tão outré? Nem por isso. Afinal, acabei de copiar um pedaço dum livro para colar aqui no blog. Onde está a virtude disso?

 

No que toca aos downloads, o que me faz impressão é o facto de estarmos a prejudicar quem cria aquilo que queremos: a música, neste caso. É como se estivéssemos a matar a galinha dos ovos de ouro. (E se no caso dos músicos poderíamos sempre argumentar que eles ganham é com os concertos, o argumento já não se pode aplicar no caso dos ebooks, por isso não é mesmo nada bom andarmos a roubar os nossos queridos escritores...)

 

Já agora, aqui está esse livrinho de Séneca ao lado de outro, que comprei numa saborosa livraria londrina, em 2011:

 

 

Quem é este Michael J. Sandel? Podem ouvi-lo no YouTube. É uma celebridade, como poucas haverá no mundo da filosofia:

 

 

O que está a fazer aqui? Bem, tem tudo a ver com o que está escrito acima (mas o homem nem sequer fala de downloads). Leiam e oiçam e vejam, que mal não faz, e só as pessoas aborrecidas acham isto tudo muito aborrecido...

 

Perdoam-me? Perdoam-me toda esta filosofia numa segunda-feira? Espero que sim...

Bem, vamos ao segundo episódio do folhetim sobre a França e os EUA. A primeira parte tinha o título um pouco a dar para o grande de "Sobre livros na mala da minha mulher, policiais em francês, filósofos à solta nos EUA e um quarto dum primo que não conheço". Vamos continuar a falar de França e dos EUA.

 

Pensar nesses dois países transporta-me, nesse labirinto que são as memórias de cada um de nós (estas coisas serão o quê, no cérebro? neurónios todos enrolados uns nos outros?), para uma viagem que fiz, com 16 anos, a Paris, com os meus pais e irmãos. Fomos de carro, por aí fora, quais emigrantes que não emigram. 

 

1. A casa dos primos da França

 

Foi uma viagem diferente, porque não fomos para um hotel: fomos para casa duns primos afastados que estavam em Portugal nessas semanas. Estranhamente, não os conheço pessoalmente (até hoje). Ou seja, vivi numa casa de pessoas que para mim são perfeitos desconhecidos. 

Deu jeito. Assim ficámos num apartamento parisiense, perto da Place de la Nation. Fomos à mercearia do bairro, andámos de transportes, falámos com as pessoas da zona e, claro, usámos a casa: a cozinha, os quartos e as casas de banho — o que teve consequências curiosas mas que direi apenas no final do post para criar algum suspense. 

Fiquei no quarto do filho mais velho dessa família, que tinha mais ou menos a mesma idade que eu. Fiquei fascinado com aquilo. É como se, durante uns dias, estivesse a viver uma outra vida, a viver em Paris, a ser estudante numa escola francesa. Abri os livros da escola, que cheiravam a novos, esse cheiro magnífico e viciante, com as cores brilhantes. 

Lembro-me de ter aberto o manual de filosofia e de folhear, tentando perceber o que era parecido e o que era diferente com a filosofia que tinha na escola secundária em Portugal (tinha uma especial predilecção por essa disciplina, uma tendência muito minha para adorar as disciplinas que os meus colegas detestavam; na faculdade foi linguística…). 

 

2. Entre livros de filosofia franceses e o filme Aeroplano 

 

[Aviso: parágrafos extremamente aborrecidos para quem não gosta destas coisas. Podem saltar para o ponto 3.]


A certa altura, o livro escolar francês de filosofia tratava dessa paranóia francesa que é… a América. Explicava que a religiosidade americana não se cristaliza numa religião particular (como acontece com Portugal, França, etc.). É uma religiosidade mais difusa, ligada ao próprio conceito de Nação. Os americanos têm muitas denominações, mas acima de tudo são americanos e in God they trust. Sim, são também o país que inventou a separação entre a Igreja e o Estado, mas para eles a Igreja em si não é assim tão importante, o que interessa é a América, essa Nação escolhida por Deus (e tanto assim é que muitos radicais de extrema-direita norte-americana desconfiam dos católicos, esses perversos cristãos amarrados a um poder estrangeiro… Para eles, mais vale um judeu que um papista.)

Já não me lembro bem em que fase estava na montanha russa que era a minha evolução em termos políticos, mas esta explicação, simplista se quiserem, acabou por me fazer sentido na altura e ajudou-me a interpretar os nossos amigos do outro lado do oceano. Para eles, a devoção à América não é uma questão cultural, linguística ou étnica — é uma religião. Uma religião civil. Obviamente que este tipo de mentalidade é mais comum entre os republicanos e, entre estes, os republicanos dos square states, mas é esta mentalidade que muitos europeus vêem quando olham para a América e é esta mentalidade que até os democratas têm de assumir, pelo menos parcialmente, quando se candidatam a algum cargo nos EUA. Por algum motivo Barack Obama, um presidente considerado um perigoso radical de esquerda por muitos americanos, traz a religião para o discurso político de forma que seria considerada totalmente despropositada num contexto europeu (basta pensar na estranheza que foi ouvir Paulo Portas, há uns anos, referir Nossa Senhora num discurso…)


[Aviso: fim de parágrafos extremamente aborrecidos. A partir de agora são apenas aborrecidos.]

 

Mas chega de elucubrações intelectuais. Um americano que lesse este post estaria a rir-se com esta forma de escrever tão pretensiosa. Diria, com as suas botas e chapéu de cowboy:

Cowboy: "Surely, you have better things to do with your life!” 

Eu: “Yes, I have, but don’t call me Shirley”. 

 



Isto foi só para perceberem que posso gostar de folhear livros de filosofia como desporto de adolescente, mas também vi o Aeroplano. Não sou assim tão esquisito.

 

3. O barulho dos carros em Paris

 

O que é certo é que me lembro muito bem dessa viagem em que fomos em família, numa carrinha, para Paris, quais portugueses tontos.

 

Vimos pela primeira vez a reacção que alguém num carro de matrícula portuguesa sente em Paris: os imensos portugueses, com os seus carros franceses e carrinhas de várias pequenas empresas de todos os ramos, começam a apitar e a acenar. Foi estranho, até porque percebemos bem que são portugueses.

 

Vimos também franceses de bicicleta com o pão debaixo do braço e, do alto dos meus 16 anos, declarei aquilo uma barbaridade.

 

Vimos ainda uma bicicleta amarrada a um poste de que sobrava apenas o quadro — e nós, do alto da nossa vida de pacatos portugueses, declarámos Paris uma cidade perigosa. 

E o que se faz numa cidade perigosa? Anda-se de metro à 1 da manhã até que um gajo de mau aspecto se aproxima de nós e pergunta se queremos sair na próxima estação para nos ajudar a chegar a casa. Não, muito obrigado, porque somos portugueses mas não somos burros. 

E que o se faz numa cidade estrangeira? Claro que andamos de metro com meios-bilhetes para todos, porque a vida está cara e este país não é para turistas portugueses, isto tudo perante o meu horror de adolescente armado em moralista que exigiu comprar o bilhete inteiro nas primeiras viagens que fizemos — até que ao fim de vários dias os meus pais me convencem a não ser parvo e compramos meio-bilhete para todos e somos apanhados e, pronto, esquecemos todos a língua francesa num instante. Resultado: fiquei com ar pimpão de “eu não vos disse”, e hoje pergunto-me como é que os meus pais me aturavam. (Mas continuo a achar que devíamos comprar os bilhetes por completo!)


Lembro-me ainda de estar na cozinha muito urbana, com bancos de bar, tudo brilhante e limpo, à noite, com a luz apagada, só as luzes da cidade e o som dos carros a passar na avenida, esse sabor duma cidade à noite, os prédios de Paris pela janela. No ano seguinte, lembro-me de ter dado Bonjour Tristesse de Sagan (ainda se dará em Francês?) e o último parágrafo bateu-me como uma recordação desses nossos dias de Paris: 

 

Seulement quand je suis dans mon lit, à l’aube, avec le seul bruit des voitures dans Paris, ma mémoire parfois me trahit : l’été revient et tous mes souvenirs. Anne, Anne ! Je répète ce nom très bas et très longtemps dans le noir. Quelque chose monte alors en moi que j’accueille par son nom, les yeux fermés : Bonjour Tristesse.

 

Pronto, as minhas memórias não eram dum Verão na Côte d’Azur, mas sim duma viagem de tugas a França, e a viagem não foi triste, mas a literatura e a memória são assim: o bruit des voitures lembrou-me dessa outra vida que vivi durante uns dias, de adolescente francês, que nem por sombras prefiro, mas da qual sentia alguma nostalgia, que é uma coisa muito literária de se sentir. 

Não sei mesmo porquê, mas essa expressão do “barulho dos carros em Paris" deu-me um murro no estômago, o que prova que as emoções literárias às vezes estão acessíveis até a um pobre rapaz sem grandes enredos amorosos na sua pacata vida de adolescente de pequena cidade portuguesa que foi a Paris numa carrinha com os pais.

 

 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Paris_Night.jpg)

 

4. Sobre casas de banho à francesa (e Montaigne)

 

E chegamos, obviamente, a Montaigne e à questão das casas de banho que deixei pendurada lá em cima, há muito tempo, no início deste post (que já vai a caminho de ser um postão). Porquê? Por causa das casas de banho da casa dos meus primos. 

Não sei se sabem, mas muitas casas francesas (não sei se a maioria) têm uma divisão muito marcada entre o W.C. (santa e companhia) e a casa de banho propriamente dita (para banhos e outra abluções). Pois a coisa, vista a esta distância temporal depois do primeiro choque com esse hábito estranhíssimo, até parece fazer sentido: há um sítio, digamos, mais porco, e outro onde lavamos os dentes e tomamos banho — e devem estar bem separados. 

Mas, ó bárbaros franceses!, tinham de pôr o WC num lado da casa e a casa de banho no ponto mais distante possível?

Ainda me lembro do meu pai sair do WC: “mas pode saber-se onde é que eu lavo as mãos?” 

 

Todos nós corremos a analisar o WC. Depois fomos todos a correr analisar a casa de banho. Nada de lavatório num dos lados. Nada de sanita no outro. Ou seja, os franceses tinham mesmo de fazer o que há a fazer numa ponta da casa e percorrer toda a santa casa para lavar as mãos, arriscando-se a tocar nalguma coisa antes da sagrada lavagem. Que nojo!

O que tem Montaigne a ver com isto? Tem muito, meus amigos. Pois leiam o último ensaio do dito blogger do século XVI francês. Achamos sempre que os hábitos dos outros são muito estranhos e acabamos por achar os nossos incomparavelmente melhores, porque são nossos e sempre fizemos assim. Se para Montaigne o problema era o sistema de aquecimento usado na Alemanha em comparação com o sistema usado em França, para nós o problema é a colocação do WC. Enfim, cada época, seus problemas.

 

Já agora, para não acharem que me estou a armar (ah, e tal, até leio ensaios de franceses do século XVI), tenho de vos dizer: primeiro, Montaigne é um blogger. Depois, encontrei uma mastigação (muito middle-brow, eu sei) deste ensaio e de outros em The Consolations of Philosophy do inveterado filósofo do homem comum (alguns diriam "das classes médias em ascensão") que é Alain de Botton e foi por aí que cheguei a esta referência. Mas leia lá o Montaigne que é um blogger e tanto. 

 

E para verem como estas coisas são, quando estava a pensar neste post, a minha memória fez-me pensar que a referência a Montaigne estava noutro livro de Alain de Botton, The Art of Travel, que é um livro apetitoso como poucos, porque trata de uma das artes mais saborosas que por aí há, que é a arte de viajar. E é esse que me apetece pôr aqui...

 

 

 

5. É melhor parar por hoje, que se faz tarde  

 

São 23:53, e ainda tenho coisas para dizer. Porque nessa viagem fomos à Eurodisney (estávamos em 1996 e o parque Disney abrira há um ano) — e adorámos. Lembro-me de ter achado os Piratas das Caríbas uma experiência como nunca tinha tido.

 

Depois, repetimos, a família toda, essa visita à Eurodisney 16 anos depois, em 2012, e a coisa só podia ser um bocado diferente. Também aqui falamos de países diferentes: esse presente onde vivemos e esse passado que é um país estrangeiro.

 

Mas como já é tarde, fica para o terceiro episódio — que, prometo, irá trazer-vos um dos livros mais surpreendentes que li nos últimos anos, uma verdadeira pérola escondida nas prateleiras dos livros de viagens...

publicado às 23:19

Desculpem lá, mas isto é sobre livros, mas também é sobre outras manias. E uma das minhas outras manias é a ciência. Não sendo, obviamente, um cientista, tenho uma obsessão pela ciência, que julgo ser muito saudável. Mas lá voltarei. Hoje apetece-me dissertar sobre a diferença entre pensamento científico e pensamento mágico.

 

Pensamento científico: é o pensamento que tenta encontrar um método para ultrapassar as limitações da mente humana e para distinguir a verdade da falsidade, tentando combater as tendências ou enviesamentos do ser humano. Para isso, é preciso disciplina e é preciso contrariar, muitas vezes, a nossa própria natureza. É sempre um pensamento precário e incomodado, porque tem de estar sempre vigilante e a desconfiar de si próprio. Tem de perceber a própria racionalidade do ser humano para conseguir chegar ao conhecimento verdadeiramente científico: aquele que sabe o que é falso, porque já testou hipóteses, mas nunca pode dizer com certeza absoluta qual é a verdade (mas consegue chegar muito mais perto dessa mesma verdade do que qualquer outro tipo de pensamento exactamente por admitir que não é possível chegar lá em termos absolutos).

 

Pensamento mágico: um tipo de pensamento que pega na mais vaga alusão, palavra ou pensamento e cria uma ilusão sobre o real que se confunde com o real em si por ser tão confortável e por não estar sujeita a qualquer tipo de crítica ou tentativa de teste ou experiência. Ou seja, pegamos numa metáfora, numa palavra bonita (por exemplo, "energia") e criamos toda uma fantasia confortável, bonita, que não testamos, não contrariamos e usamos para "explicar" o mundo.

 

Exemplos de pensamento mágico: astrologia, homeopatia, teorias da conspiração, muitas das nossas ideias sobre os outros, etc.

 

Já o pensamento científico é uma ferramenta poderosa para qualquer pessoa: basta para isso compreender os seus fundamentos. Não é fácil, mas também não é algo reservado a génios da ciência....

 

Enfim, voltarei a isto. Desculpem lá, mas não consigo evitar.

publicado às 00:23


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