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Entreabro a porta do quarto do meu filho à noite e fico a olhar um pouco para ele, a dormir. É difícil escrever o que sinto. É qualquer coisa de físico, inscrito em mim depois de milhões de anos de evolução da nossa espécie. Mas isto, claro, são pensamentos abstractos que tenho depois desse momento, em que entro, vejo se está tudo bem, olho só mais um bocadinho, e depois saio, encostando a porta devagarinho. O que sinto é uma mistura de emoções: felicidade (palavra tão banal), medo (palavra demasiado simples), alguma força — e ainda qualquer coisa parecida com contemplação. Ou melhor, se calhar é melhor dizer doutra forma: quando estamos em contemplação ou sentimos felicidade noutros contextos, talvez isso seja, na realidade, uma imitação do sentimento bem mais primordial que nos aparece quando olhamos para o nosso filho a dormir sossegado. E pronto, um parágrafo inteiro e não disse nada que reflectisse um terço que fosse do que senti quando espreitei o meu filho a dormir e logo fechei a porta.

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Hoje fui à Bertrand dum centro comercial qualquer. A Bertrand é uma rede de livrarias simpática, mas, enfim, para mim tem um defeito grande: a secção de livros estrangeiros parece uma daquelas estantes nos hotéis com livros muito usados e muito maus para os clientes estrangeiros poderem pegar, ler à beira da piscina e voltar a pôr no sítio (e os estrangeiros, claro, fazem isso mesmo). 

Ia com o meu filho e, curiosamente, foi a mesma Bertrand onde há uns meses encontrei uma galdéria que me deu uns bons meses de diversão e um livro num passatempo do Sapo (quem só agora encontrou este blog, peço encarecidamente que siga o link, para não ficar a achar o pior aqui do vosso blogueiro).

 

Desta vez, ia com o carrinho de bebé à frente e acabei por não conseguir ver nada, porque o S., normalmente muito bem comportado, decidiu começar num berreiro, que talvez tivesse a ver com o facto de não lhe ter dado um livro para a mão. Mas não podia... Só faria uma coisa dessas se fosse comprar o livro, e hoje não queria comprar nada. 

Portanto, entrei e sai com o miúdo aos berros. Mas, como era a mesma loja da tal galdéria, pus-me a matutar no blog. É coisa que, agora que ando nestas más vidas, me acontece às vezes. Resultado, lembrei-me dum episódio de há alguns anos, na Bertrand do Vasco da Gama, quando ainda não havia Fnac e a Bertrand ficava onde é hoje o Gato Preto. Fui a essa Bertrand tantas vezes que me lembro da disposição da loja como se ainda existisse...

Pois, estava eu a folhear livros quando entra uma rapariga com um rapaz atrás, que diz alto e bom som: "não me faças vir aqui, que eu nem com o cheiro posso!"

Que cheiro era esse? O dos livros, claro. O rapaz não podia nem com o cheiro desses objectos maléficos.

 

Olhei para cima por reflexo para ver o casal. Ela gostaria alguma coisa de livros, para arrastar o namorado até ali, e tinha aquele ar paciente de quem não era a primeira vez que passava por aquela vergonha. O rapaz parecia perfeitamente normal, mas bastante divertido em ser um blasfemo naquele tempo da livralhada. Sorri. Ali estavam duas personagens dum romance qualquer: "O Rapaz que não gostava de livros" ou algo assim... Seria uma vingança simpática: "Ai não gostas do cheiro? Então vou-te enfiar num livro que até andas de roda." Claro que não tinha nem tempo nem talento para tal empreendimento, mas a ideia fez-me, de facto sorrir.

 

Imaginei as cenas complicadas com inúmeros professores de português a tentarem enfiar literatura naquela cabeça. Imaginei discussões com a namorada, a tentar chantangeá-lo para que ele lesse o que é bom. Imaginei enredos de comédia romântica, com encantos e desencantos, tudo regado com boa literatura. Enfim, estive ali a delirar um bocado. 

 

Olhei em redor. Não tinha sido o único a ouvir o dislate. Algumas pessoas folheavam livros, passavam os dedos pelas lombadas, estavam com aquela cara série de devotos, e viam-se os lábios mordidos, os olhos com um brilho de horror, uma tremideira nos dedos, como se estivessem a conter um gesto obsceno.

 

Vou ter de fazer uma confissão muito séria para um gajo com pretensões a ter um blog de livros: naquele momento achei o rapaz mais simpático do que aquelas pessoas um pouco atrapalhadas, a murmurarem uns quantos insultos àquela gentinha que não gosta de ler.

 

Porque, meus amigos, isto dos livros não é para nos andar a separar entre os bons e os maus. É para muita coisa, mas não devia ser para isso. Os rituais próprios da literarice, os lançamentos, a seriedade com que andamos a ouvir os escritores, quais sacerdotes, a forma muito triste como a nossa gente (a dos livros) fala do mundo como se o mundo fosse algo porco de que nos devíamos separar, porque o nosso reino não é, lá está, deste mundo — tudo isso faz muito pior à literatura do que o alegre rapaz que entra por uma livraria a dentro a declarar que nem do cheiro dos livros gosta.

 

Porque gosto demasiado de livros para andar a venerá-los. 

 

Não sei se fui claro. Seja como for, o rapaz merecia, de facto, o supremo castigo de ser enfiado num livro, como personagem. Tenho dito. Alguém que com engenho e arte faça o favor de me arranjar essa vingança, que agora não tenho tempo.

 


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