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Bolas, fiquei a sentir-me um bocado mal com o post anterior. Não quero que pensem que me andei a armar em chico-esperto com um senhor de 70 anos. Sim, às vezes ficava irritado com as opiniões dos meus avós, mas quem não fica? É normal. Eles também não parecem gostar por aí além de algumas opiniões "de agora". É mais do que natural.

 

O facto de ter um avô que me perguntava coisas só mostra a inteligência do avô, e diz pouco da esperteza do neto. Afinal, é melhor fazer boas perguntas do que balbuciar umas respostas mal amanhadas. 

 

E o meu avô lá ia fazendo boas perguntas: porque não caem os astronautas cá em baixo, porque não falamos todos a mesma língua, etc. e tal. O que só mostra como era inadequada a educação "de antigamente" para responder à curiosidade dos alunos — e como essa curiosidade não morre mesmo 70 anos depois. 

 

Ora, o meu avô, se faz perguntas, também conta imensas histórias. Já pensei, aliás, fazer um blog só com as histórias que o meu avô conta. Como não há tempo para tudo (nem para o que já se faz), vou aproveitando este canto dos livros para isso.

 

Uma das histórias mais deliciosas é esta (espero não estar a acrescentar muitos pontos — e espero ainda mais não estar a retirar muitas vírgulas):

 

Durante a II Guerra Mundial (sim, quando ouvimos os avós, até parece que estamos a mergulhar num filme), caíam por vezes alguns aviões americanos na costa portuguesa. Ora, numa dessas quedas, o piloto safou-se e foi resgatado pela população da freguesia do meu avô, que tem umas quantas praias. Levaram o americano, assustado (e provavelmente molhado) ao café mais próximo, para que pudesse comer. 

 

Parece-me tipicamente português: o que se faz a um piloto americano que aparece numa praia? Leva-se para o café. Pode ser que até goste de dominó.

 

Enfim, dominó não jogaram, mas perguntaram-lhe o que queria. Imagino a cara do americano com um círculo de portugueses dos anos 40 a perguntarem-lhe: "mas o que é que o senhor quer?" "Apetece-lhe o quê?" "Vai um bagacinho?" "Isso o homem quer é um bife!" — e por aí fora.

 

Foram-lhe oferecendo coisas, que o americano, por uma razão ou outra, ia recusando. Não queria nada. Nem vinho, nem bife, nem água.

 

Até que aparece o doido da terra e diz: "o homem quer é um galão." 

 

Todos se calam, o dono do café tira um galão, e o americano olha-o com olhos de agradecimento profundo, bebendo o leite com café bem quente como se fosse o maior desejo da vida dele.

 

É isto.

 

Pronto, o meu avô conta isto melhor do que eu. 

 

Mas já perceberam o que se ganha em conversar muitas vezes com os nossos avós...

 


 

E agora, uma imagem para ilustrar o post.

 

O problema é que não encontrei uma imagem dum avião americano despenhado numa praia portuguesa durante a II Guerra Mundial.

 

Pela internet fora, só um avião alemão... Enfim, é melhor do que nada. Aqui fica:

 

Fonte: http://diasquevoam.blogspot.pt/2006/01/praias-e-guerra.html

 

publicado às 18:01

Uma vez fui visitar Conímbriga com o meu avô e os meus pais. A viagem foi curiosa, mas já sabemos que visitar ruínas romanas exige sempre alguma concentração: é preciso um trabalho de imaginação para reconstruir na nossa cabeça o que ali estava — e o que ali estava era uma civilização de há 2000 anos (ia dizer "atrás", mas ainda levava uma traulitada). Uma viagem em família não é o ambiente ideal para essa reconstrução mental e para chegarmos àquele clique em que pensamos, bolas, havia aqui gente que tinha uma sociedade inteira e sólida e, entretanto, tudo acabou e veio a Idade Média e tudo e tudo...

 

(Isto faz-me lembrar a viagem de finalistas da faculdade, à Tunísia, em que fui com uma turma que não era formalmente a minha, por razões que agora não vêm ao caso, e, na visita a Cartago, ficámos boquiabertos com aquilo — porque aquilo era quase nada... Talvez volte um dia a falar dessa mítica viagem.)

 

Portanto, lá fomos até Conímbriga. Lembro-me de pouco mais, mas lembro-me duma conversa com o meu avô, que devia ter uns 70 anos por essa altura.

 

Perguntava-me o meu avô como era possível aos historiadores saberem seja o que for sobre aquela gente que por ali andava — afinal, como ele explicava, na vila dele nem a geração dos avós dele (meus tetravós) tinha registos completos... Perguntava-me a mim, porque, supostamente, eu era um gajo muito sabido de História (o meu sonho entre os 10 e os 17 anos era ser historiador). Lá balbuciei umas explicações, mas era difícil em poucos minutos dizer fosse o que fosse sobre o método da História, sobre o Império Romano, etc. e tal.

 

Agora, não me interpretem mal: o meu avô é uma pessoa inteligentíssima. E com esta pergunta mostra um cepticismo bastante saudável. Mas fez a escola primária nos anos 30, e não me venham com histórias: antigamente é que não era bom.

 

(Não me interpretem mal também noutra coisa: hei-de vos contar várias conversas com o meu avô em que parece que ele pergunta e eu tento responder. Mas, não se esqueçam, a questão é que eu tive a oportunidade de seguir pela escola fora, também por causa do meu avô, e há coisas um pouco mais teóricas em que me sinto mais à vontade. Mas nem por sombras sinto que sei mais do que o meu avô que tem hoje 85 anos. É impossível. Podemos não saber das mesmas coisas, mas 85 anos são melhores do que muitos anos de leituras para se saber coisas que só nessa altura saberemos o quão importantes são.)

 

Ora bem, isto agora enrolei-me um bocadinho, mas vocês percebem. Adiante.

 

Na mesma viagem, mas já de regresso, falamos sobre as idades das pessoas. Digo ao meu avô que hoje vive-se, em média, mais anos do que "antigamente", seja lá isso quando for.

 

O meu avô franze a testa: "Então, mas na Bíblia falam de pessoas com 800 e 900 anos."

 

Ups.

 

Eis-me perante o Grande Choque de Gerações. 

 

Tento dizer que isso seria simbólico, ou algo assim. Quase que me atrevo a dizer que o Adão, se calhar, vamos lá ver, pois bem... Se calhar é uma espécie de história. Resposta do meu avô: ou se acredita ou não se acredita. A Bíblia é para se acreditar, ponto final.

 

Fiquei calado, confesso. Em Portugal, ao contrário dos E.U.A., nunca me pareceu que a religião fosse impeditiva de as pessoas acreditarem nos factos científicos. Afinal, lembro-me de ter Religião e Moral na escola e de ter uma professora que nos explicou a evolução darwiniana não para "dizer mal", mas para provar que o Antigo Testamento só podia ser metafórico, mas nunca literal, porque a ciência já tinha demonstrado que a Bíblia não era uma descrição literalmente verdadeira.

 

Com esses professores assim tão desempoeirados (se calhar fui eu que tive sorte), esqueci-me que, do fundo do sistema de ensino do Estado Novo, foram educadas gerações habituadas a um ambiente em que a Bíblia era uma Verdade absoluta e sagrada. Antigamente não era mesmo nada bom... (Também, há que dizer em abono da verdade, aprenderam outras coisas válidas. Mas isso agora não vem ao caso.)

 

Reparem: o meu avô tem o instinto céptico que o leva a duvidar dos achados arqueológicos de Conímbriga. Mas há ideias que são sagradas, também porque estão envolvidas numa série de recordações (as missas, a catequese, a escola de há muitos anos) que implicam uma ligação emocional forte a essas ideias. 

 

Não pensem, aliás, que esse problema é exclusivo da geração dos nossos avós. É muito fácil todos nós cairmos em certos engodos: a astrologia, a homeopatia e essas interpretações literais de textos religiosos (e um grande et caetera). É tão fácil porque estamos pouco alerta para os erros dessas ideias. São ideias que sabem bem, são confortáveis, parecem fazer sentido e as pessoas que nos explicam estas coisas são muito simpáticas e, por vezes, importantes para a nossa vida. Confiamos nelas. Toda a vida acreditámos e, por vezes, parece que não acreditar é trair não essas ideias mas as pessoas que no-las transmitiram.

 

Já a ciência parece ser uma coisa mais fria e um pouco desmancha-prazeres. (Ah, mas pode não ser...)

 

Enfim, não há muito a dizer nem a fazer quanto a estes desencontros geracionais. O meu avô de 85 anos há-de ter mais sabedoria do que eu para lidar com situações como estas — e o certo é que nunca deixámos de falar, mesmo com esta barreira que outros acham intransponível.

 

(E se estão a rir-se da ingenuidade do meu avô, pensem em quantos amigos vossos acreditam nos horóscopos e parem lá de rir, se faz favor.)

 

E lembrem-se que teremos todos muita sorte se, aos 85 anos, ainda tivermos vontade de aprender.

 

 

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Conimbriga.jpg

 

publicado às 15:20

Os vossos filhos gostam de ler?

 

Os vossos pais gostam de ler?

 

Sim, ia eu no carro, a ler António Lobo Antunes, com o meu avô ao lado. 

 

O meu avô é uma pessoa muito curiosa. Julgo mesmo que muita da minha curiosidade insaciável vem dele (não sei se somos montagens dos nossos avós, mas às vezes parece).

 

Ora, diga-se o que se disser de António Lobo Antunes, do que não podemos acusá-lo é de inventar títulos que não chamam a atenção.


Assim, logo que parei de ler por momentos, o meu avô pega no livro e abre numa página qualquer.

Deve ter encontrado algo assim:



Ora, para quem foi educado pelo sólido ensino primário do Estado Novo, isto só podia ser coisa esquisita

 

(que nem português parece!)


Mas o meu avô não disse nada, porque respeita os gostos dos netos, mesmo quando são gostos tão degenerados que confundem esta pasta estranha com literatura.

publicado às 14:17

Depois da animação que foi este blog durante o dia de ontem, hoje estou numa de nostalgia, por isso desculpem lá a lamechiche pegada que vai ser este post, mas o que passa é que por algum motivo (talvez a chuva, talvez conversas com colegas que vão ser pais, talvez ter deixado o meu filho no infantário há pouco) estou a pensar nos filhos e no que eles nos trazem para a vida, que é muito mais do que qualquer pessoa prevê antes de se meter nisso, e muito diferente de tudo o que se pensa antes de nos metermos nisso, e o certo é que — se não vêm nos livros — parece que os blogs têm sido uma forma de expressão do que é ser pai e mãe (e tio e tia e amigo e tudo o mais), porque se calhar o blog até será um género literário (?) mais propenso à lamechiche paternal, porque, enfim, algum género teria de haver para isso — e tudo isto para vos dizer que aquilo que mais custa quando se tem um filho é mesmo perceber que de repente aterra em nós um medo difuso e estranho, um medo que também sabe a outra coisa bem melhor, a amor, ou ligação, ou seja lá o que for esta coisa estranha que nos acontece a nós e aos filhos (o raio das palavras servem para muito pouco nestes campos que são muito carnais, no sentido menos comum dessa palavra) — um medo que nos estraga a vida, estraga a vida mas não nos importamos, estraga a vida porque ela tem mesmo de ser estragada, um medo absurdo que começa quando sabemos que estamos grávidos (e digo assim no masculino se não se importarem, mas se se importarem, a caixa de reclamações é mesmo aqui em baixo) e pensamos que vai passar quando nascer o bebé, e depois não passa, pensamos que vai passar quando ele tiver aí uns dois meses, e claro que não passa, talvez passe ao primeiro ano, e não passou, e sinceramente quando vejo o meu avô de 85 anos preocupadíssimo com a minha mãe de 53, acho que se calhar não passa nunca, e isto será para todo o sempre, amen, embora saibamos que não é para todo o sempre e, no fundo, é esse mesmo o medo, um medo que sabemos nunca terá um final feliz, porque isto mais tarde ou mais cedo acaba, mas, enfim, no medo de tudo isto percebemos que já não queremos finais felizes, o que queremos é um princípio feliz, um filho feliz nesse começo de vida, que nunca por nunca será fácil, mas é dele, e no meio disto tudo já me perdi, mas o medo continua cá, e também um aperto qualquer no esófago quando vejo o meu filho a rir-se, feliz, neste começo de vida que será o que ele quiser e o mundo deixar, e o mundo vai ter de deixar, porque estamos cá para o que der e vier. Portanto, tenham medo, mas sejam felizes.

image.jpeg

1. Uma família feliz

2. Bons amigos

3. Livros e mais livros para ler

4. Muita pressão de água no duche

publicado às 14:17

Ora, vamos lá ver uma coisa: somos um país de emigrantes, e sempre fomos, pelo menos se considerarmos "sempre" uma palavra que abarca as últimas cinco décadas. Mas há diferenças, não só entre as gerações de emigrantes, como também entre as famílias que emigram e os interesses das famílias que emigram e as maluqueiras das famílias que emigram.

Pois se tive primos e tios que foram para as franças e canadás desta vida há uns quarenta anos, tenho agora um irmão que foi para as inglaterras de agora há uns cinco anos. O que se passa agora é que o pobre do emigrante nem sempre se consegue escapar a que às duas por três apareça a família toda à porta. Os meus pais já chegaram a fazer surpresa ao meu irmão, aparecendo por lá sem dizer nada. Isto já não é mesmo como antigamente.

Ora, numa dessas viagens em família a visitar o emigra privado cá de casa e sua esposa (já agora, um dia pode ser que conte a forma estranha como se casaram; fica para depois) — dizia, numa dessas viagens, que já foram muitas, fomos de carrinha de nove lugares por essa Europa acima, para os visitar em Cambridge e para, depois, irmos com eles a Paris. Há coisas piores na vida do que viagens destas — embora a gente duvide um pouco quando, já cansados, depois duma longa viagem até à fronteira entre Espanha e França, ali mesmo no meio do País Basco, aparece uma placa a dizer "Paris - 800 km", e sabemos que depois de Paris ainda temos muito até Cambridge, incluindo um canal inteiro da Mancha. O entusiasmo da viagem, nesse momento, é um aperto e um aconchegar do rabo ao banco, que isto ainda vai demorar. Muitos livros, muitos livros, e muito olhar pela paisagem fora.

 

Fonte: Google Maps

Adiante, portanto, que se faz tarde.

 

Fomos a Cambridge, lá estivemos algum tempo, dei as minhas voltas pelas livrarias da cidade (ah, bliss) e, sabendo que ia a Paris, chamou-me a atenção este livrinho, sujo autor não conhecia, mas que me aparecia recomendando com grande destaque na Waterstone's lá do sítio. Pego nele e compro.

 

Parisians, de Graham Robb. Garanto-vos que o livro é muito melhor do que possam imaginar antes de o ter lido. Garanto que vale a pena, mesmo para quem não gosta de livros sobre cidades e mesmo para quem não gosta de Paris.

 



Ainda antes de chegar a casa do meu irmão, estava agarrado ao raio do livro. Continuei agarrado enquanto púnhamos as malas no carro, continuei agarrado enquanto íamos pelas estradas inglesas fora e só não terminei o livro ainda antes de chegar à Mancha porque entretanto fez-se noite.

Foi nessa viagem de Cambridge para Paris que ficámos cinco horas à espera de lugar nos comboios do túnel da Mancha. Não nos lembrámos que, nas férias da Páscoa os ingleses invadem o Continente, e lá ficámos entretidos na carrinha, a amassar o tempo até podermos entrar no comboio.

 

Pois, com o atraso, só chegámos a França aí por volta das quatro da manhã e acertámos a chegada a Paris mesmo com a hora de ponta, com o sono a escorrer-nos nos olhos, o que me custou especialmente a mim, que me calhou a sorte de atravessar Paris a conduzir até chegar ao hotel marcado no dia anterior, que, digamos, não era exactamente no centro de Paris, mas numa estação de serviço numa auto-estrada lá por perto; é o que dá marcar coisas à última hora (quem conhecer as estações de serviço francesas há-de saber que a coisa não é tão escabrosa como possa parecer; poucos hotéis haverá em Portugal tão bem integrados num jardim maravilhoso como aquele hotelito de estação de serviço).

Portanto, lá fomos nós passear por Paris, e eu com o livro. Fomos encontrar-nos com um amigo do meu irmão para jantar em Montmartre, num restaurante de comida típica do sul de França, onde comi a melhor salada da minha vida, e eu com o livro (que tentei não sujar de salada). Subimos a Montmartre, e livro na mão — e vi-me a intercalar a leitura desta "comédia humana" parisiense com as vistas da própria cidade, ao entardecer. 

Vista de Paris de Montmartre, Vincent van Gogh

Passeámos por Paris, de noite, de dia, por metro, durante uns dois dias inesquecíveis. E foram inesquecíveis também porque fomos à Eurodisney e eu tinha aquele livro na mão...

 

Ora bem. Eu sei que o Louvre e tudo o resto é um milhão de vezes mais significativo do que a Eurodisney. Mas isto merece ser contado. Como vos disse anteriormente, tínhamos ido a Paris quando eu tinha 16 anos. Fomos, também nessa altura, à Eurodisney. Foi um espanto. Fiquei maravilhado com aquilo. Mas entre 1996 e 2011 muita coisa aconteceu, incluindo a passagem dum século e metade da minha vida até então (em 1996, nunca tinha ido à Fnac; não sabia para que faculdade iria estudar; pensava que ia estudar história, quando terminei noutras lides; o bairro onde vivo não existia; etc.). E, o que na altura foi um espanto, algo que nunca víramos, era agora uma série de filas intermináveis (férias da Páscoa, meus senhores!) para ver uma espécie de carrinhos de choque da Disney ou algo do género. Por exemplo, em 1996, achei os Piratas das Caraíbas uma coisa do outro mundo. Parecia mesmo que estávamos nas Caraíbas, à noite, quando lá fora ainda era dia. Agora, achei a coisa fraquinha, principalmente depois de passar duas horas numa bicha. Outro exemplo: a Casa Assombrada fez-me medo em 1996 e fez-me rir em 2011. Estão a ver a ideia...

 

Mas pronto, deu para estarmos todos, a falar como qualquer português, a discutir como qualquer família em viagem, e a ler, como qualquer família com um bibliólico no seu seio.

E, claro, no meio de milhares e milhares de turistas em filas absurdas, fui lendo o livro inglês sobre Paris, uma coisa magnífica como nunca pensei encontrar num livro sobre uma cidade. 

Começa com um jovem que descobre algumas verdades sobre a vida no Palais-Royal, às mãos duma prostituta, que nunca adivinharia que estava a mostrar o mundo ao futuro imperador dos franceses. Continua com a história da rua que se afundou nas profundezas de Paris e do homem que salvou a cidade de implodir. Há rainhas perdidas pelas ruas em tempos de revolução, pedras da calçada que são parte da história, as primeiras fotografias da cidade, que nos transportam para um amanhecer do século XIX, grandes engarrafamentos de dois ou três carros num boulevard, e muito mais. Temos Marcel Proust no o metro, Sarkozy nos subúrbios, de Gaulle a escapar a assassinos, o TGV e muito mais que não cabe num resumo perdido num humilde blog de livros em Portugal — é um livro de história, ou de viagens, ou sobre pessoas, um livro de "não ficção" que usa todos os recursos da ficção, para nos prender a uma cidade sem percebermos bem como. 

Este livro surpreendeu-me e deixou-me apaixonado por uma Paris que encontrei numa livraria de Cambridge, lida em inglês. Isto das purezas culturo-linguísticas nunca foi para mim... 

Portanto, em comparação à viagem de há quase vinte anos, nesta outra viagem, Paris teve outro sabor, não só porque tinham passado tantos anos, mas porque nós éramos outras pessoas, e, no meu caso, porque tinha aquele livro na mão — e também, já agora, porque levava a minha mulher comigo, e Paris em casal (mesmo com a família em redor) é muito diferente do que Paris vista por um adolescente solitário (mesmo com a família em redor). Ou seja, nesta Eurodisney do século XXI, já com sabor de coisa velha, enquanto famílias e famílias continuavam parados numa fila interminável, eu passeava por Paris, entre várias épocas, visitando Paris como nunca o poderia fazer passeando pelas próprias ruas. 


Meus amigos que dizem que gostam mais de viver do que de ler — vejam lá se compreendem isto duma vez por todas: quem anda sempre com um livro atrás vive mais, porque preenche esses vazios que encontramos todos os dias com mais vida, mais ruas, mais histórias, mais pessoas. Não sei se os livros nos fazem viver melhor; mas fazem-nos, certamente, viver mais.


O meu irmão e a minha cunhada voltaram para Cambridge e nós seguimos para sul. Esse foi o momento mais complicado. Muitas pessoas choram essas separações regulares nos aeroportos. Nesse dia, foi num bairro indistinto das franjas de Paris, perto do metro (o metro mais perto do hotel), onde os deixámos, para seguirem até à estação de comboio e partir para Inglaterra. Talvez aquela rua nunca tenha visto uma cena dessas: uma família portuguesa a despedir-se num "até à próxima" que cada vez mais portugueses sabem quanto custa. Mas, pronto, Paris sempre foi muito portuguesa e também sempre foi um pouco da nossa família. Limpas as lágrimas, lá seguimos, para os nossos respectivos países, uma família portuguesa, com certeza.

Neste post do blog Pais de Quatro, comentei a agradecer a referência com uma banalidade imperdoável: que isto dos filhos "não vem nos livros".

 

Enfim, depois pus-me a pensar. Será que não vem mesmo? Os livros descrevem tanta história, tanta emoção, tantas horas de vida e tanta coisa diferente, que obviamente os filhos hão-de lá estar.

 

Depois, quem é que pode dizer que alguma coisa não vem nos livros? Já alguém leu os livros todos? Já alguém leu 1% dos livros todos que há para ler? Já alguém leu 0,1% dos livros todos que há para ler?

 

Bem me parecia.

 

Mas, mesmo assim, depois de ter passado pela experiência de ter um filho (não tê-lo fisicamente, que isso ficou para a minha mulher, por imperativo legal que devia ser alterado urgentemente em sede de orçamento rectificativo) — dizia eu, depois de ter tido o primeiro filho, fiquei com a sensação que nunca tinha lido aquilo em lado nenhum, nem sequer de forma vaga.

 

Os livros, muitas vezes, tornam-nos atentos às coisas que não notávamos antes, antecipando aquilo que vivemos e dando-nos um quadro de referências onde inserimos a nossa vida real. Um pouco, por exemplo, como quando vamos a uma cidade que nunca visitámos e de repente sentimo-nos em casa, porque aquela cidade vem nos livros que lemos. Se calhar, até a visitámos bem melhor antes de lá pormos os pés do que depois de a vermos com olhos sem livros, que são olhos menos atentos.

 

Ora, para ter um filho não houve livro que me preparasse. De muitos livros (provavelmente sou eu que não leio o que devia), tiro que os filhos são uma parte dessa nuvem de coisas chatas, a casa, a família, aquilo que não faz parte da vida a sério, a horrorosa rotina (ai, qu'horror!). Os bebés até são muito giros, mas também são muito kitsch, não são? Tanta fraldinha, tanto paninho, tanto beijinhos... Não são material literário, a não ser que seja para fazer sofrer alguém. 

 

Porquê? Talvez porque a felicidade seja desinteressante como tema literário, porque a infelicidade é o que nos distingue uns nos outros, à la Tolstoi? Ou será porque a literatura não deixa de ser actividade das horas infelizes, onde escrever é a forma de sublimar a miséria de certos momentos noutra coisa melhor, que nos "salve"? Quem tem filhos escreve pouca literatura? Bom tema para um estudo estatístico, daqueles que irritam alguns sacerdotes da literatice. 

 

Perdoem-me a imodéstia, mas acho que acabei de dizer uma série de lindos disparates. Mas ficam ditos, pode ser que ajudem alguém a destrinçar isto.

 

O que me apetece dizer é que essas horas em que um filho nasce, em que o vemos ao colo da mãe cansada, mas a sorrir, nessas outras horas em que mudamos fraldas, damos banho, vemos o primeiro sorriso e parece que é a primeira vez no universo em que isso acontece, quando começamos a perceber como ele é, quando percebemos que ele nos reconhece e quando pegamos ao colo, nada disso vem nos livros, porque não tem de vir e não é fácil que venha. As palavras são rombas e não conseguem transmitir as emoções e razões destes dias. Reparem, tudo isto soa a cliché — primeiro, porque não tenho talento para mais; segundo, porque as palavras não são uma matéria que se molde facilmente. Por isso caímos todos tão facilmente no vício da fotografia. Pelo menos, parece fácil agarrar aquele momento. É uma ilusão, claro, porque a própria dificuldade das palavras dá-lhes o sopro, por vezes, para capturar, de facto um certo momento, muito melhor do que qualquer fotografia.

 

Adiante: não sei se os filhos vêm nos livros. O meu, certamente não vem.

 

 

Já agora, quando a literatura tenta falar da felicidade, como em Saturday, de Ian McEwan, os críticos não costumam ser meigos. McEwan tornou-se complacente, instalou-se, aburguesou-se. Mas, não, simplesmente descreveu uma família feliz — e descreveu aquele medo que está por baixo de toda a felicidade.

 

Enfim, é um óptimo romance. Que vai muito além da felicidade familiar do protagonista neurocirurgião: temos a tensão entre ciência e literatura; temos a guerra do Iraque; temos o prazer de fazer um bom trabalho; e temos a gravidez e a poesia e a forma como as palavras nos podem salvar (literalmente).

 

Mas havemos de voltar a este senhor.

Bem, vamos ao segundo episódio do folhetim sobre a França e os EUA. A primeira parte tinha o título um pouco a dar para o grande de "Sobre livros na mala da minha mulher, policiais em francês, filósofos à solta nos EUA e um quarto dum primo que não conheço". Vamos continuar a falar de França e dos EUA.

 

Pensar nesses dois países transporta-me, nesse labirinto que são as memórias de cada um de nós (estas coisas serão o quê, no cérebro? neurónios todos enrolados uns nos outros?), para uma viagem que fiz, com 16 anos, a Paris, com os meus pais e irmãos. Fomos de carro, por aí fora, quais emigrantes que não emigram. 

 

1. A casa dos primos da França

 

Foi uma viagem diferente, porque não fomos para um hotel: fomos para casa duns primos afastados que estavam em Portugal nessas semanas. Estranhamente, não os conheço pessoalmente (até hoje). Ou seja, vivi numa casa de pessoas que para mim são perfeitos desconhecidos. 

Deu jeito. Assim ficámos num apartamento parisiense, perto da Place de la Nation. Fomos à mercearia do bairro, andámos de transportes, falámos com as pessoas da zona e, claro, usámos a casa: a cozinha, os quartos e as casas de banho — o que teve consequências curiosas mas que direi apenas no final do post para criar algum suspense. 

Fiquei no quarto do filho mais velho dessa família, que tinha mais ou menos a mesma idade que eu. Fiquei fascinado com aquilo. É como se, durante uns dias, estivesse a viver uma outra vida, a viver em Paris, a ser estudante numa escola francesa. Abri os livros da escola, que cheiravam a novos, esse cheiro magnífico e viciante, com as cores brilhantes. 

Lembro-me de ter aberto o manual de filosofia e de folhear, tentando perceber o que era parecido e o que era diferente com a filosofia que tinha na escola secundária em Portugal (tinha uma especial predilecção por essa disciplina, uma tendência muito minha para adorar as disciplinas que os meus colegas detestavam; na faculdade foi linguística…). 

 

2. Entre livros de filosofia franceses e o filme Aeroplano 

 

[Aviso: parágrafos extremamente aborrecidos para quem não gosta destas coisas. Podem saltar para o ponto 3.]


A certa altura, o livro escolar francês de filosofia tratava dessa paranóia francesa que é… a América. Explicava que a religiosidade americana não se cristaliza numa religião particular (como acontece com Portugal, França, etc.). É uma religiosidade mais difusa, ligada ao próprio conceito de Nação. Os americanos têm muitas denominações, mas acima de tudo são americanos e in God they trust. Sim, são também o país que inventou a separação entre a Igreja e o Estado, mas para eles a Igreja em si não é assim tão importante, o que interessa é a América, essa Nação escolhida por Deus (e tanto assim é que muitos radicais de extrema-direita norte-americana desconfiam dos católicos, esses perversos cristãos amarrados a um poder estrangeiro… Para eles, mais vale um judeu que um papista.)

Já não me lembro bem em que fase estava na montanha russa que era a minha evolução em termos políticos, mas esta explicação, simplista se quiserem, acabou por me fazer sentido na altura e ajudou-me a interpretar os nossos amigos do outro lado do oceano. Para eles, a devoção à América não é uma questão cultural, linguística ou étnica — é uma religião. Uma religião civil. Obviamente que este tipo de mentalidade é mais comum entre os republicanos e, entre estes, os republicanos dos square states, mas é esta mentalidade que muitos europeus vêem quando olham para a América e é esta mentalidade que até os democratas têm de assumir, pelo menos parcialmente, quando se candidatam a algum cargo nos EUA. Por algum motivo Barack Obama, um presidente considerado um perigoso radical de esquerda por muitos americanos, traz a religião para o discurso político de forma que seria considerada totalmente despropositada num contexto europeu (basta pensar na estranheza que foi ouvir Paulo Portas, há uns anos, referir Nossa Senhora num discurso…)


[Aviso: fim de parágrafos extremamente aborrecidos. A partir de agora são apenas aborrecidos.]

 

Mas chega de elucubrações intelectuais. Um americano que lesse este post estaria a rir-se com esta forma de escrever tão pretensiosa. Diria, com as suas botas e chapéu de cowboy:

Cowboy: "Surely, you have better things to do with your life!” 

Eu: “Yes, I have, but don’t call me Shirley”. 

 



Isto foi só para perceberem que posso gostar de folhear livros de filosofia como desporto de adolescente, mas também vi o Aeroplano. Não sou assim tão esquisito.

 

3. O barulho dos carros em Paris

 

O que é certo é que me lembro muito bem dessa viagem em que fomos em família, numa carrinha, para Paris, quais portugueses tontos.

 

Vimos pela primeira vez a reacção que alguém num carro de matrícula portuguesa sente em Paris: os imensos portugueses, com os seus carros franceses e carrinhas de várias pequenas empresas de todos os ramos, começam a apitar e a acenar. Foi estranho, até porque percebemos bem que são portugueses.

 

Vimos também franceses de bicicleta com o pão debaixo do braço e, do alto dos meus 16 anos, declarei aquilo uma barbaridade.

 

Vimos ainda uma bicicleta amarrada a um poste de que sobrava apenas o quadro — e nós, do alto da nossa vida de pacatos portugueses, declarámos Paris uma cidade perigosa. 

E o que se faz numa cidade perigosa? Anda-se de metro à 1 da manhã até que um gajo de mau aspecto se aproxima de nós e pergunta se queremos sair na próxima estação para nos ajudar a chegar a casa. Não, muito obrigado, porque somos portugueses mas não somos burros. 

E que o se faz numa cidade estrangeira? Claro que andamos de metro com meios-bilhetes para todos, porque a vida está cara e este país não é para turistas portugueses, isto tudo perante o meu horror de adolescente armado em moralista que exigiu comprar o bilhete inteiro nas primeiras viagens que fizemos — até que ao fim de vários dias os meus pais me convencem a não ser parvo e compramos meio-bilhete para todos e somos apanhados e, pronto, esquecemos todos a língua francesa num instante. Resultado: fiquei com ar pimpão de “eu não vos disse”, e hoje pergunto-me como é que os meus pais me aturavam. (Mas continuo a achar que devíamos comprar os bilhetes por completo!)


Lembro-me ainda de estar na cozinha muito urbana, com bancos de bar, tudo brilhante e limpo, à noite, com a luz apagada, só as luzes da cidade e o som dos carros a passar na avenida, esse sabor duma cidade à noite, os prédios de Paris pela janela. No ano seguinte, lembro-me de ter dado Bonjour Tristesse de Sagan (ainda se dará em Francês?) e o último parágrafo bateu-me como uma recordação desses nossos dias de Paris: 

 

Seulement quand je suis dans mon lit, à l’aube, avec le seul bruit des voitures dans Paris, ma mémoire parfois me trahit : l’été revient et tous mes souvenirs. Anne, Anne ! Je répète ce nom très bas et très longtemps dans le noir. Quelque chose monte alors en moi que j’accueille par son nom, les yeux fermés : Bonjour Tristesse.

 

Pronto, as minhas memórias não eram dum Verão na Côte d’Azur, mas sim duma viagem de tugas a França, e a viagem não foi triste, mas a literatura e a memória são assim: o bruit des voitures lembrou-me dessa outra vida que vivi durante uns dias, de adolescente francês, que nem por sombras prefiro, mas da qual sentia alguma nostalgia, que é uma coisa muito literária de se sentir. 

Não sei mesmo porquê, mas essa expressão do “barulho dos carros em Paris" deu-me um murro no estômago, o que prova que as emoções literárias às vezes estão acessíveis até a um pobre rapaz sem grandes enredos amorosos na sua pacata vida de adolescente de pequena cidade portuguesa que foi a Paris numa carrinha com os pais.

 

 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Paris_Night.jpg)

 

4. Sobre casas de banho à francesa (e Montaigne)

 

E chegamos, obviamente, a Montaigne e à questão das casas de banho que deixei pendurada lá em cima, há muito tempo, no início deste post (que já vai a caminho de ser um postão). Porquê? Por causa das casas de banho da casa dos meus primos. 

Não sei se sabem, mas muitas casas francesas (não sei se a maioria) têm uma divisão muito marcada entre o W.C. (santa e companhia) e a casa de banho propriamente dita (para banhos e outra abluções). Pois a coisa, vista a esta distância temporal depois do primeiro choque com esse hábito estranhíssimo, até parece fazer sentido: há um sítio, digamos, mais porco, e outro onde lavamos os dentes e tomamos banho — e devem estar bem separados. 

Mas, ó bárbaros franceses!, tinham de pôr o WC num lado da casa e a casa de banho no ponto mais distante possível?

Ainda me lembro do meu pai sair do WC: “mas pode saber-se onde é que eu lavo as mãos?” 

 

Todos nós corremos a analisar o WC. Depois fomos todos a correr analisar a casa de banho. Nada de lavatório num dos lados. Nada de sanita no outro. Ou seja, os franceses tinham mesmo de fazer o que há a fazer numa ponta da casa e percorrer toda a santa casa para lavar as mãos, arriscando-se a tocar nalguma coisa antes da sagrada lavagem. Que nojo!

O que tem Montaigne a ver com isto? Tem muito, meus amigos. Pois leiam o último ensaio do dito blogger do século XVI francês. Achamos sempre que os hábitos dos outros são muito estranhos e acabamos por achar os nossos incomparavelmente melhores, porque são nossos e sempre fizemos assim. Se para Montaigne o problema era o sistema de aquecimento usado na Alemanha em comparação com o sistema usado em França, para nós o problema é a colocação do WC. Enfim, cada época, seus problemas.

 

Já agora, para não acharem que me estou a armar (ah, e tal, até leio ensaios de franceses do século XVI), tenho de vos dizer: primeiro, Montaigne é um blogger. Depois, encontrei uma mastigação (muito middle-brow, eu sei) deste ensaio e de outros em The Consolations of Philosophy do inveterado filósofo do homem comum (alguns diriam "das classes médias em ascensão") que é Alain de Botton e foi por aí que cheguei a esta referência. Mas leia lá o Montaigne que é um blogger e tanto. 

 

E para verem como estas coisas são, quando estava a pensar neste post, a minha memória fez-me pensar que a referência a Montaigne estava noutro livro de Alain de Botton, The Art of Travel, que é um livro apetitoso como poucos, porque trata de uma das artes mais saborosas que por aí há, que é a arte de viajar. E é esse que me apetece pôr aqui...

 

 

 

5. É melhor parar por hoje, que se faz tarde  

 

São 23:53, e ainda tenho coisas para dizer. Porque nessa viagem fomos à Eurodisney (estávamos em 1996 e o parque Disney abrira há um ano) — e adorámos. Lembro-me de ter achado os Piratas das Caríbas uma experiência como nunca tinha tido.

 

Depois, repetimos, a família toda, essa visita à Eurodisney 16 anos depois, em 2012, e a coisa só podia ser um bocado diferente. Também aqui falamos de países diferentes: esse presente onde vivemos e esse passado que é um país estrangeiro.

 

Mas como já é tarde, fica para o terceiro episódio — que, prometo, irá trazer-vos um dos livros mais surpreendentes que li nos últimos anos, uma verdadeira pérola escondida nas prateleiras dos livros de viagens...

publicado às 23:19


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