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Já pensaram donde é o Zorro? Não se esqueçam que o nome completo da personagem é Don Diego de la Vega...
Será mexicano?
Não, vivia na Califórnia. Afinal, há muito território dos Estados Unidos que já foi espanhol e, depois, mexicano, território esse onde ainda hoje vivem muitos hispânicos que não são imigrantes, mas sim membros duma comunidade que já vivia ali muito antes de passarem para os Estados Unidos.
Vejam aqui.
Se quiserem saber quem inventou a personagem, podem sempre ir à Wikipédia...
Nas generalizações absurdas, os europeus têm um prazer sibilino em generalizar a estupidez no caso dos americanos (como, aliás, já se disse por aqui).
Há uns tempos, descobriu-se que 25% dos americanos não sabiam bem se era a Terra que rodava à volta do Sol ou o contrário.
"Ai, esses ignorantes medievais" — apressaram-se logo a dizer alguns anti-americanos habituais.
Mas, vai-se a ver, na Europa ainda são mais os respondentes que não sabem bem à volta de que astro andamos todos...
Não fiquem já aí todos chocados com isto. Não comecem, acima de tudo, a acusar os jovens disto e daquilo. Não tenho os dados, mas se fôssemos destrinçar isto por gerações, tenho a certeza que não seriam os famosos jovens a sair-se mal na fotografia... Aliás, reparem lá nos números: estes europeus que não sabem nada de astronomia não serão os idosos perdidos pelas aldeias do interior dos 28 países, que não chegaram a tempo da explosão na formação científica e cultural dos últimos 50 anos (para lá das elites das grandes cidades, que sempre tiveram essa formação)?
Ai, não gosto de andar a dizer: "lá fora é que é bom", mas de facto, se olharmos para a nossa blogoesfera, os livros estão presentes em blogs amadores ou são então são blogs semi-profissionais de editoras, cujo principal objectivo não é o blog, mas vender livros — e fazem muito bem! Blogs profissionais de livros? Só o conceito é para rir!
Porquê? Porque o país é mau? Porque ninguém dá valor aos livros? Não, não, não — apenas porque é preciso quantidade para termos qualidade: um blog num país de 300 milhões, se for bom, pode tornar-se profissional e, assim, os bons são atraídos para esta actividade blogueiro-livresca. Até pode nem chamar-se blog, e armar-se em website.
Não se queixem. Num país de 10 milhões, em que não há multidões a ler, o que temos é muito bom!
Fiquem aqui com um blog/site americano sobre livros. Reparem que até tem staff:
Bolas, fiquei a sentir-me um bocado mal com o post anterior. Não quero que pensem que me andei a armar em chico-esperto com um senhor de 70 anos. Sim, às vezes ficava irritado com as opiniões dos meus avós, mas quem não fica? É normal. Eles também não parecem gostar por aí além de algumas opiniões "de agora". É mais do que natural.
O facto de ter um avô que me perguntava coisas só mostra a inteligência do avô, e diz pouco da esperteza do neto. Afinal, é melhor fazer boas perguntas do que balbuciar umas respostas mal amanhadas.
E o meu avô lá ia fazendo boas perguntas: porque não caem os astronautas cá em baixo, porque não falamos todos a mesma língua, etc. e tal. O que só mostra como era inadequada a educação "de antigamente" para responder à curiosidade dos alunos — e como essa curiosidade não morre mesmo 70 anos depois.
Ora, o meu avô, se faz perguntas, também conta imensas histórias. Já pensei, aliás, fazer um blog só com as histórias que o meu avô conta. Como não há tempo para tudo (nem para o que já se faz), vou aproveitando este canto dos livros para isso.
Uma das histórias mais deliciosas é esta (espero não estar a acrescentar muitos pontos — e espero ainda mais não estar a retirar muitas vírgulas):
Durante a II Guerra Mundial (sim, quando ouvimos os avós, até parece que estamos a mergulhar num filme), caíam por vezes alguns aviões americanos na costa portuguesa. Ora, numa dessas quedas, o piloto safou-se e foi resgatado pela população da freguesia do meu avô, que tem umas quantas praias. Levaram o americano, assustado (e provavelmente molhado) ao café mais próximo, para que pudesse comer.
Parece-me tipicamente português: o que se faz a um piloto americano que aparece numa praia? Leva-se para o café. Pode ser que até goste de dominó.
Enfim, dominó não jogaram, mas perguntaram-lhe o que queria. Imagino a cara do americano com um círculo de portugueses dos anos 40 a perguntarem-lhe: "mas o que é que o senhor quer?" "Apetece-lhe o quê?" "Vai um bagacinho?" "Isso o homem quer é um bife!" — e por aí fora.
Foram-lhe oferecendo coisas, que o americano, por uma razão ou outra, ia recusando. Não queria nada. Nem vinho, nem bife, nem água.
Até que aparece o doido da terra e diz: "o homem quer é um galão."
Todos se calam, o dono do café tira um galão, e o americano olha-o com olhos de agradecimento profundo, bebendo o leite com café bem quente como se fosse o maior desejo da vida dele.
É isto.
Pronto, o meu avô conta isto melhor do que eu.
Mas já perceberam o que se ganha em conversar muitas vezes com os nossos avós...
E agora, uma imagem para ilustrar o post.
O problema é que não encontrei uma imagem dum avião americano despenhado numa praia portuguesa durante a II Guerra Mundial.
Pela internet fora, só um avião alemão... Enfim, é melhor do que nada. Aqui fica:
Fonte: http://diasquevoam.blogspot.pt/2006/01/praias-e-guerra.html
Há quem diga por aí que no fundo a ciência é outra ficção. Lembro-me de estar num seminário na faculdade e o professor, que "até é amigo de muitos cientistas" (numa variação curiosa da confissão involuntária de qualquer racista: "eu não sou racista, porque até tenho amigos pretos"), dizer que a ciência (estamos a falar daquela ciência dura, a mecânica quântica, a teoria da relatividade, etc. e tal) é apenas um sistema ficcional, como a literatura, como a religião, porque no fundo não podemos saber nada.
Muito bem. Estas pessoas confundem um bocado as coisas. A ciência vai evoluindo. Muda de ideias. Não tem certezas por aí além. Mas vai aproximando-se da verdade, devagar, devagarinho. Porquê? Porque procura os próprios erros. Tão simples como isso.
Isto tudo porque vos queria falar dum livro empolgante como um qualquer policial, apesar de ser um livro de ciência.
The Greatest Show on Earth, de Richard Dawkins. Um livro que explica quais são as bases que permitem aos cientistas propor a Evolução como teoria explicativa do surgimento dos humanos.
Para um português, para quem a questão é pacífica mesmo se for religioso, a forma como o livro combate os criacionistas é divertida: bolas, é como se tivéssemos um cientista de craveira mundial a escrever um livro a explicar porque razão não acredita em fadas ou no Pai Natal.
O facto de haver esse movimento absurdo e anticientífico à solta pelos EUA só ajuda este tipo de autor, porque lhe dá a pica necessária para explicar a evolução. E nós só temos a ganhar com isso.
Quando li este livro, já lá vai algum tempo (não consigo lembrar-me quanto, mas aí uns dois anos), não conseguia parar de ler. Parava o carro enquanto a minha mulher ia buscar qualquer coisa, e punha-me a ler. Estava na cama e punha-me a ler. Estava no trabalho e fazia intervalos não para ir ao Facebook, mas para ler isto. Estive quase para ler no meio da Segunda Circular, mas não o fiz porque poria em perigo os meus colegas automobilistas (e se o fizesse teria de negar por aqui).
Garanto-vos que sabem muito menos do que pensam sobre o assunto. Vá, vão lá ler e desamparem-me a loja, que é fim-de-semana.
(Antes de terminar, a pergunta: se a ciência é apenas mais uma ficção, a Teoria da Evolução e a ideia de que Deus criou o Universo e os homens e todos os animais há aproximadamente 6000 anos são igualmente válidas, correcto?)
Bem, vamos ao segundo episódio do folhetim sobre a França e os EUA. A primeira parte tinha o título um pouco a dar para o grande de "Sobre livros na mala da minha mulher, policiais em francês, filósofos à solta nos EUA e um quarto dum primo que não conheço". Vamos continuar a falar de França e dos EUA.
Pensar nesses dois países transporta-me, nesse labirinto que são as memórias de cada um de nós (estas coisas serão o quê, no cérebro? neurónios todos enrolados uns nos outros?), para uma viagem que fiz, com 16 anos, a Paris, com os meus pais e irmãos. Fomos de carro, por aí fora, quais emigrantes que não emigram.
1. A casa dos primos da França
Foi uma viagem diferente, porque não fomos para um hotel: fomos para casa duns primos afastados que estavam em Portugal nessas semanas. Estranhamente, não os conheço pessoalmente (até hoje). Ou seja, vivi numa casa de pessoas que para mim são perfeitos desconhecidos.
Deu jeito. Assim ficámos num apartamento parisiense, perto da Place de la Nation. Fomos à mercearia do bairro, andámos de transportes, falámos com as pessoas da zona e, claro, usámos a casa: a cozinha, os quartos e as casas de banho — o que teve consequências curiosas mas que direi apenas no final do post para criar algum suspense.
Fiquei no quarto do filho mais velho dessa família, que tinha mais ou menos a mesma idade que eu. Fiquei fascinado com aquilo. É como se, durante uns dias, estivesse a viver uma outra vida, a viver em Paris, a ser estudante numa escola francesa. Abri os livros da escola, que cheiravam a novos, esse cheiro magnífico e viciante, com as cores brilhantes.
Lembro-me de ter aberto o manual de filosofia e de folhear, tentando perceber o que era parecido e o que era diferente com a filosofia que tinha na escola secundária em Portugal (tinha uma especial predilecção por essa disciplina, uma tendência muito minha para adorar as disciplinas que os meus colegas detestavam; na faculdade foi linguística…).
2. Entre livros de filosofia franceses e o filme Aeroplano
[Aviso: parágrafos extremamente aborrecidos para quem não gosta destas coisas. Podem saltar para o ponto 3.]
A certa altura, o livro escolar francês de filosofia tratava dessa paranóia francesa que é… a América. Explicava que a religiosidade americana não se cristaliza numa religião particular (como acontece com Portugal, França, etc.). É uma religiosidade mais difusa, ligada ao próprio conceito de Nação. Os americanos têm muitas denominações, mas acima de tudo são americanos e in God they trust. Sim, são também o país que inventou a separação entre a Igreja e o Estado, mas para eles a Igreja em si não é assim tão importante, o que interessa é a América, essa Nação escolhida por Deus (e tanto assim é que muitos radicais de extrema-direita norte-americana desconfiam dos católicos, esses perversos cristãos amarrados a um poder estrangeiro… Para eles, mais vale um judeu que um papista.)
Já não me lembro bem em que fase estava na montanha russa que era a minha evolução em termos políticos, mas esta explicação, simplista se quiserem, acabou por me fazer sentido na altura e ajudou-me a interpretar os nossos amigos do outro lado do oceano. Para eles, a devoção à América não é uma questão cultural, linguística ou étnica — é uma religião. Uma religião civil. Obviamente que este tipo de mentalidade é mais comum entre os republicanos e, entre estes, os republicanos dos square states, mas é esta mentalidade que muitos europeus vêem quando olham para a América e é esta mentalidade que até os democratas têm de assumir, pelo menos parcialmente, quando se candidatam a algum cargo nos EUA. Por algum motivo Barack Obama, um presidente considerado um perigoso radical de esquerda por muitos americanos, traz a religião para o discurso político de forma que seria considerada totalmente despropositada num contexto europeu (basta pensar na estranheza que foi ouvir Paulo Portas, há uns anos, referir Nossa Senhora num discurso…)
[Aviso: fim de parágrafos extremamente aborrecidos. A partir de agora são apenas aborrecidos.]
Mas chega de elucubrações intelectuais. Um americano que lesse este post estaria a rir-se com esta forma de escrever tão pretensiosa. Diria, com as suas botas e chapéu de cowboy:
Cowboy: "Surely, you have better things to do with your life!”
Eu: “Yes, I have, but don’t call me Shirley”.
Isto foi só para perceberem que posso gostar de folhear livros de filosofia como desporto de adolescente, mas também vi o Aeroplano. Não sou assim tão esquisito.
3. O barulho dos carros em Paris
O que é certo é que me lembro muito bem dessa viagem em que fomos em família, numa carrinha, para Paris, quais portugueses tontos.
Vimos pela primeira vez a reacção que alguém num carro de matrícula portuguesa sente em Paris: os imensos portugueses, com os seus carros franceses e carrinhas de várias pequenas empresas de todos os ramos, começam a apitar e a acenar. Foi estranho, até porque percebemos bem que são portugueses.
Vimos também franceses de bicicleta com o pão debaixo do braço e, do alto dos meus 16 anos, declarei aquilo uma barbaridade.
Vimos ainda uma bicicleta amarrada a um poste de que sobrava apenas o quadro — e nós, do alto da nossa vida de pacatos portugueses, declarámos Paris uma cidade perigosa.
E o que se faz numa cidade perigosa? Anda-se de metro à 1 da manhã até que um gajo de mau aspecto se aproxima de nós e pergunta se queremos sair na próxima estação para nos ajudar a chegar a casa. Não, muito obrigado, porque somos portugueses mas não somos burros.
E que o se faz numa cidade estrangeira? Claro que andamos de metro com meios-bilhetes para todos, porque a vida está cara e este país não é para turistas portugueses, isto tudo perante o meu horror de adolescente armado em moralista que exigiu comprar o bilhete inteiro nas primeiras viagens que fizemos — até que ao fim de vários dias os meus pais me convencem a não ser parvo e compramos meio-bilhete para todos e somos apanhados e, pronto, esquecemos todos a língua francesa num instante. Resultado: fiquei com ar pimpão de “eu não vos disse”, e hoje pergunto-me como é que os meus pais me aturavam. (Mas continuo a achar que devíamos comprar os bilhetes por completo!)
Lembro-me ainda de estar na cozinha muito urbana, com bancos de bar, tudo brilhante e limpo, à noite, com a luz apagada, só as luzes da cidade e o som dos carros a passar na avenida, esse sabor duma cidade à noite, os prédios de Paris pela janela. No ano seguinte, lembro-me de ter dado Bonjour Tristesse de Sagan (ainda se dará em Francês?) e o último parágrafo bateu-me como uma recordação desses nossos dias de Paris:
Seulement quand je suis dans mon lit, à l’aube, avec le seul bruit des voitures dans Paris, ma mémoire parfois me trahit : l’été revient et tous mes souvenirs. Anne, Anne ! Je répète ce nom très bas et très longtemps dans le noir. Quelque chose monte alors en moi que j’accueille par son nom, les yeux fermés : Bonjour Tristesse.
Pronto, as minhas memórias não eram dum Verão na Côte d’Azur, mas sim duma viagem de tugas a França, e a viagem não foi triste, mas a literatura e a memória são assim: o bruit des voitures lembrou-me dessa outra vida que vivi durante uns dias, de adolescente francês, que nem por sombras prefiro, mas da qual sentia alguma nostalgia, que é uma coisa muito literária de se sentir.
Não sei mesmo porquê, mas essa expressão do “barulho dos carros em Paris" deu-me um murro no estômago, o que prova que as emoções literárias às vezes estão acessíveis até a um pobre rapaz sem grandes enredos amorosos na sua pacata vida de adolescente de pequena cidade portuguesa que foi a Paris numa carrinha com os pais.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Paris_Night.jpg)
4. Sobre casas de banho à francesa (e Montaigne)
E chegamos, obviamente, a Montaigne e à questão das casas de banho que deixei pendurada lá em cima, há muito tempo, no início deste post (que já vai a caminho de ser um postão). Porquê? Por causa das casas de banho da casa dos meus primos.
Não sei se sabem, mas muitas casas francesas (não sei se a maioria) têm uma divisão muito marcada entre o W.C. (santa e companhia) e a casa de banho propriamente dita (para banhos e outra abluções). Pois a coisa, vista a esta distância temporal depois do primeiro choque com esse hábito estranhíssimo, até parece fazer sentido: há um sítio, digamos, mais porco, e outro onde lavamos os dentes e tomamos banho — e devem estar bem separados.
Mas, ó bárbaros franceses!, tinham de pôr o WC num lado da casa e a casa de banho no ponto mais distante possível?
Ainda me lembro do meu pai sair do WC: “mas pode saber-se onde é que eu lavo as mãos?”
Todos nós corremos a analisar o WC. Depois fomos todos a correr analisar a casa de banho. Nada de lavatório num dos lados. Nada de sanita no outro. Ou seja, os franceses tinham mesmo de fazer o que há a fazer numa ponta da casa e percorrer toda a santa casa para lavar as mãos, arriscando-se a tocar nalguma coisa antes da sagrada lavagem. Que nojo!
O que tem Montaigne a ver com isto? Tem muito, meus amigos. Pois leiam o último ensaio do dito blogger do século XVI francês. Achamos sempre que os hábitos dos outros são muito estranhos e acabamos por achar os nossos incomparavelmente melhores, porque são nossos e sempre fizemos assim. Se para Montaigne o problema era o sistema de aquecimento usado na Alemanha em comparação com o sistema usado em França, para nós o problema é a colocação do WC. Enfim, cada época, seus problemas.
Já agora, para não acharem que me estou a armar (ah, e tal, até leio ensaios de franceses do século XVI), tenho de vos dizer: primeiro, Montaigne é um blogger. Depois, encontrei uma mastigação (muito middle-brow, eu sei) deste ensaio e de outros em The Consolations of Philosophy do inveterado filósofo do homem comum (alguns diriam "das classes médias em ascensão") que é Alain de Botton e foi por aí que cheguei a esta referência. Mas leia lá o Montaigne que é um blogger e tanto.
E para verem como estas coisas são, quando estava a pensar neste post, a minha memória fez-me pensar que a referência a Montaigne estava noutro livro de Alain de Botton, The Art of Travel, que é um livro apetitoso como poucos, porque trata de uma das artes mais saborosas que por aí há, que é a arte de viajar. E é esse que me apetece pôr aqui...
5. É melhor parar por hoje, que se faz tarde
São 23:53, e ainda tenho coisas para dizer. Porque nessa viagem fomos à Eurodisney (estávamos em 1996 e o parque Disney abrira há um ano) — e adorámos. Lembro-me de ter achado os Piratas das Caríbas uma experiência como nunca tinha tido.
Depois, repetimos, a família toda, essa visita à Eurodisney 16 anos depois, em 2012, e a coisa só podia ser um bocado diferente. Também aqui falamos de países diferentes: esse presente onde vivemos e esse passado que é um país estrangeiro.
Mas como já é tarde, fica para o terceiro episódio — que, prometo, irá trazer-vos um dos livros mais surpreendentes que li nos últimos anos, uma verdadeira pérola escondida nas prateleiras dos livros de viagens...
Sim, confesso: às vezes peço à minha mulher para levar o livro que estou a ler na mala dela quando saímos de casa. E confesso também que raramente saio de casa sem um (ou mais) livros. Assola-me o terror de ficar mais do que cinco minutos parado, à espera de alguém ou numa fila ou em qualquer sítio aborrecido e encontrar-me sem livros — perdendo assim esses cinco minutos de leitura. Sim, isto é uma doença grave.
Mas, dizia eu, peço muitas vezes à ----- para me levar um livro na mala. E ela aceita, quase sempre. Afinal, conhece bem o bicho com quem casou.
Aceita quase sempre.
Quando lhe aparece um calhamaço destes à frente, a coisa pia mais fino:
(Ainda por cima em francês, que é língua que ela não gosta nem para carregar na mala.)
Isto explica que haja livros que leio de forma muito vagarosa, mesmo que tenha vontade de os ler a todo o momento. E este é um caso desses. Tanto assim é que, mesmo depois de ter comprado o dito calhamaço, procurei afincadamente a versão electrónica, pela qual pagaria, se a encontrasse. Mas presumo que o autor seja um ebookofóbico — e se o autor não autoriza, quem sou eu para descarregar uma qualquer versão electrónica dum livro?
E assim se percebe porque que estou ainda no início deste romance policial (La Verité sur l'Affaire Henry Quebert), cujo narrador é um jovem escritor americano, que se vê envolvido num caso de polícia, porque o seu melhor amigo, um escritor consagrado, se vê acusado de assassinar uma menor, 30 anos antes — isto quando o corpo da rapariga é encontrado no quintal do acusado, com o manuscrito da sua obra-prima entre os ossos.
Policial, livros, editores, manuscritos, amores proibidos... Tem tudo para ser um vício para um livrólico como eu. (Ou será bibliólico? Ou anglosaxonicamente bookalólico?)
E, sim, armado aos cágados, estou a ler em francês. Há uma tradução em português, mas gosto de, por vezes, treinar o músculo do francês — e, por alguma razão, não me custa nada ler policiais nessa língua (por intercessão de São Simenon, talvez).
Curiosamente, acabo por ter um certo prazer perverso em ler livros franceses com alguma relação com os EUA. É uma perversão intelectual minha, se quiserem. Estes dois povos, parte do trio fundador da democracia como a conhecemos hoje, gostam tanto um do outro como os portugueses gostam dos míticos castelhanos de Aljubarrota. E, no entanto, a relação franco-americana parece ser uma relação de amor-ódio ou talvez de ex-namorados… Afinal, se bem se lembram, no começo de vida dos Estados Unidos, a França era a namoradinha e o Reino Unido era o mau da fita. A França, qual amante enlevada, mandava estátuas da liberdade… Hoje, os franceses acham os americanos a origem de todo o mal cultural e político, uns parolos optimistas que andam aos tiros pelo mundo fora, num massacre cultural chamado de “mondalisation”, enquanto os americanos acham os franceses uns cobardes armados ao intelectual (1), fechados numa cultura decadente e imoral. Ai, que isto são dois simplismos. Mas não somos todos simplistas ao extremo ao olhar para os povos que consideramos estrangeiros?
. . . . . . . .
Alto e pára o baile. Reparo agora que este último parágrafo se baseia num erro de palmatória. Afinal, o autor do romance acima fotografado com amor e carinho não é francês. É suiço. Caraças, o parágrafo estava tão giro, o homem tinha mesmo de ter a nacionalidade errada. Portanto, agora posso apagar o parágrafo, ou continuar para bingo como se nada fosse.
Ponho o parágrafo em itálico e adiante.
Continuemos, pois. Outro livro em francês sobre os EUA que li há uns tempos (confesso: não o li na totalidade, nem sei se cheguei a metade, mas não interessa) é American Vertigo, de BHL:
Sobre este, não vou dizer grande coisa para já. Pode ser que volte um dia, quando já tiver dado outras voltas aqui às minhas estantes e tiver tempo de o ler até ao fim. O que me apetece dizer agora é que estes livros são interessantes e fazem-nos cócegas no cérebro porque nos dão cabo de dois preconceitos. Por um lado, estes franceses parecem compreender a América melhor do que muitos americanos (o que parece ser uma tradição antiga). Assim, ficamos a perceber que os franceses não são todos anti-americanos primários. E, olhando para a América com olhos franceses, lá vemos vendo que a América não é o que anti-americanismo caseiro também acha que é.
A leitura quebra-nos preconceitos e tal: também é para isso que serve...
Todo este arrazoado fez-me lembrar Paris e um livro que folhei num quarto dum primo francês (que nunca vi) nos idos de 1996... Primo francês esse que nunca conheci. O que estava eu a fazer no quarto dum primo francês que nunca vi na vida? Não perca o próximo episódio...
(continua...)
(Fonte aqui.)
(1) Já agora, este artigo do The Economist sobre o pessimismo francês é muito interessante.
A segunda parte deste post está aqui:
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