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A coisa começou simples: um blog, uns textos para os amigos. De repente, os amigos começaram a partilhar os posts. Pouco depois, alguns dos posts eram comentados por pessoas que nunca tinha visto ou de quem nunca ouvira falar. As pessoas pareciam gostar. Continuar a postar, a comentar, a sentir-se bem com toda aquela atenção.
Alguns meses depois, arranjou os primeiros ódios de estimação. Alguns amigos mais dados a estas coisas deram-lhe pancadinhas nas costas: passara a um nível superior da blogaria nacional. Nenhum blogger é blogger se não tiver ódios e se não tiver seguidores fiéis que o protegem dos ódios e desencam nesses outros que bem merecem.
Continuou a escrever. De repente, já só vivia para o blogue. Um incidente no trânsito? Uma queixa inflamada no blog e os amigos a partilharem, a dizerem "é isso mesmo!", a clicarem no gosto como se não houvesse amanhã.
Uma senhora mais antipática a atendê-lo ao pequeno-almoço? Blogue com ela, disfarçada só pela via das dúvidas.
Um problema burocrático sem aparente solução? Blog com ele!
Um fremitozinho de poder passava-lhe pelos dedos e gostava de escrever cada vez mais e dispor dos outros, sujeitos como estavam à sua opinião inflamada e, acima de tudo, lida e partilhada por tantos e tantos. Sem dúvida, era um blogger especial.
Até ao dia em que...
Em que o quê?
Cansou-se?
Não foi isso: até ao dia em que teve um acidente na estrada, o outro não se deu por culpado, e decidiu publicar tudo no blog e chamar nomes ao outro e explicar como o outro era uma besta que se atrevera a pôr-se à frente dum blogger de sucesso, com 5000 seguidores no Facebook, trinta comentadores residentes, vários ódios de estimação e um webdesigner a manter o blog. Onde é que já se viu? A verve era tremenda. O blogue tremia de desprezo e indignação pelo atrevimento desse fedenho mal amanhado que não era ninguém neste mundo. As claques gritavam como num estádio. O pobre diabo que se atreveu a fazer não se sabia bem o quê nesse acesso ao IC19 era o bobo da festa e não sabia.
Até que soube, porque o sobrinho era leitor do blog e avisou o tio. Que escreveu uma carta simples, a pedir desculpa, e a solicitar em poucas palavras para que o blogger da moda acabasse com a campanha de ódio, que estava a incomodar a filha de dez anos.
O blogger sorriu, sobranceiro.
Mas sentiu um frio, qualquer coisa estranha na espinha. Perdeu nesse dia o seu pequeno poder de blogger e foi de férias uns tempos.
Quando voltou, tinha ainda os 5000 seguidores no Facebook, mas tudo aquilo era uma brincadeira distante, como um jogo muito intenso e viciante que nos envolve durante umas horas até se desligar o computador uns minutos — momento em que vemos o nosso reflexo pálido no ecrã do computador e percebemos que nada daquilo é real.
O problema é o dia em que vemos também a imagem duma miúda de 10 anos a ler mensagens de ódio contra o pai que se tinha esquecido de fazer pisca.
Mas nada disto é real, pois não?
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