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Ora qualquer um de nós que vá nem que seja às vezes a um centro comercial conhece a praga dos vendedores de cartões de crédito. De vez em quando lá vêm, sorriso postiço armado, em direcção a casais incautos ou a homens e mulheres naquele limbo entre o demasiado jovem para poderem usar tais cartões e o adultos suficiente para saberem recusar só com o olhar. Ao longo do tempo lá fui desenvolvendo técnicas: olhar para as montras, olhar para o telemóvel, apressar o passo, pôr ar de mau ou (o meu favorito) pôr-me a ler um livro enquanto ando. Mesmo assim às vezes lá vêm com um bom dia ou boa noite ou com um irritantíssimo "jovem" (aos 33 pensava que isso já devia ter acabado, mas não...). Aí lá digo um não firme, e sigo. Mas é difícil. Pois uma vez ia distraído, um pouco cansado, estou a passar por um dos locais habituais de poiso destes caçadores e um vulto aproxima-se com o bom dia nos lábios que eu nem deixo pronunciar. Leva logo um não e nem olho. Metros à frente, caio na tentação de olhar para trás e percebo que acabara de dizer um valente não a uma instituição de apoio às crianças com cancro. Raios. Não que possa ajudar todas essas instituições, mas não merecem o não desenvolvido durante anos para combater os vendedores de cartões de crédito...

Sei que os centros comerciais têm muito má fama por entre quem gosta de ler Borges e outros que tais. Pois eu gosto de ler Borges — e muito mais — mas vou muitas vezes a um centro comercial. Defeito de fabrico, talvez, ou apenas comodismo. Ou o pior de todos os pecados para a gente da literatura: consumismo. Sim, sou um pouco consumista, e o que me salva será (ou nem isso me salve, talvez) que o meu grande consumo seja o de livros. Mas depois, ó meu Deus, sigo a minha mulher pelas lojas de roupa e fico à porta às vezes…

 

Mas não deixo de ser uma figura curiosa: sigo-a, claro está, às vezes a empurrar o carrinho de bebé — mas quantas vezes não o faço com um livro na mão. Hoje, por exemplo, fomos a um outlet ali para os lados de Vila do Conde (andamos cá por cima…), e no meio das famílias a aproveitar o sol de Agosto no meio do shopping (ai, que nem eu resisto à tentação de ser sarcástico), lá encontrei uma pequena feira do livro, cuja existência talvez seja desprezada pela turma literária, mas não deixa de ser sinal de que há mais coisas entre as quatro paredes do shopping do que sonha a tua vã filosofia, ó Horácio (ou lá quem és).

 

E foi assim que comprei dois livros: um livro sobre cidades, de Jacques Le Goff, e um livro de Jorge Luis BorgesEste Ofício de Poeta (traduzido por Telma Costa, para a Teorema — ai de mim desprezar os tradutores!).

 

Depois, lá andei por entre as lojas, as músicas, os bebés (um deles, o meu), a lei o primeiro dos ensaios — ou lições — do Grande. O primeiro ensaio chama-se O Enigma da Poesia e como diz Borges, encontramos poesia em todo o lado — às vezes, diz Borges, até nos grandes escritores. E por entre as linhas do argentino, que foi descrevendo como o “mar escuro como vinho” de Homero era, na altura do épico grego, uma mera metáfora batida, e hoje é outra coisa, são todos os séculos que nos separam de Homero nessa simples expressão — e como um poema em inglês antigo, uma simples descrição da natureza numa praia do mar do Norte no século IX hoje está enriquecida pelo tempo, talvez (acrescento eu) como o vinho que é como o mar da nossa imaginação homérica — dizia eu, por entre as linhas do argentino ia encontrando a tal poesia que não podemos descrever,  mas sabemos bem o que é.

 

Enfim, como vêem, há mesmo poesia em todo o lado, até num banal shopping em Vila do Conde, um outlet ainda por cima, e assim fui concordando automaticamente com as escolhas da minha mulher em termos de roupa, algo desligado do mundo, embora continuasse ali mesmo, no meio das lojas, com Borges na cabeça, a ler citações de poemas antigos, o livro nas mãos, sob o olhar curioso de quem não está habituado a andar no meio da multidão com um livro na mão.

 

publicado às 00:21


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