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Já agora, vou explicar-vos como conheci Steven Pinker, de quem vos falei há bocado. Não no sentido de já ter falado com ele, mas no sentido de ter encontrado o primeiro livro dele.
Ora bem, tudo começou quando o meu irmão foi convidado para uma entrevista de emprego em Inglaterra. Isto em 2008…
Antes disso, tinha ido à Inglaterra uma única vez, no ano anterior, na lua-de-mel. Antes que ponham as mãos na cabeça (“mas quem é que vai de lua de mel para a Inglaterra, por amor dos santinhos e da minha rica praia?”), digo-vos já que antes disso fomos de lua-de-mel para outro lado, mais quentinho. Mas disso falo depois. Antes disso, Inglaterra...
Portanto, só lá tinha ido uma vez, o que era estranho, porque sempre fora um apaixonado pelo país (ou países, aliás). Aliás, estudei a cultura e a língua na faculdade — mas ir lá, mesmo, só aos 27 anos (se descontarmos duas idas a Gibraltar, que é uma espécie de Reino Unido concentrado, empacotado e enviado para o sul de Espanha).
Nesse tal ano de 2008 o meu irmão é convidado a ir a uma entrevista numa grande empresa e fica contentíssimo — e algo nervoso. Acabei por ir com ele, não só para ele não ir sozinho, como para servir de treino para uma entrevista em inglês.
A entrevista era em Cambridge. Lá fomos, de avião, campos ingleses a aparecer lá em baixo, aterragem magnífica, comboios para a frente e para trás, telefonemas para a minha mulher, que tinha ficado com o trabalho entre mãos (e, confesso, não estávamos — e não estamos — habituados a estar longe um do outro)——
Espera lá. Eu já vos falei disto. Aqui. Vão lá ler e depois voltem, se faz favor.
Bem, estávamos em Cambridge. A entrevista era à tarde. O meu irmão lá foi, às três da tarde e eu fiquei a vaguear pelas ruas.
Ora bem, o que acontece por volta das três e meia duma tarde de Novembro, em Inglaterra?
Pois, fica de noite.
Tantos anos a estudar o país, e ninguém me tinha dito que ficava de noite às três da tarde! Isso teria explicado tanta coisa…
Bem, lá vaguei por essa noite profunda, apaixonado pela cidade, que se não conhecem deviam conhecer.
Não conhecia quase nada e hoje, que já conheço bastante melhor, depois de várias oportunidades para vaguear, conduzir, correr e andar por lá, sei que nessa tarde percorri aquela vila toda — e quando digo vila, estou a ser irónico, porque a população é comparável à do Porto.
A certa altura vi-me num relvado imenso, à noite, com bicicletas a passar, os edifícios neo-góticos ao fundo, o ar inglês de tudo aquilo a fazer-me crer num livro ou num filme ou na minha imaginação de anos antes. Lembro-me de ter pensado no Clube dos Poetas Mortos — e, sim, eu sei que o filme se passava nos Estados Unidos, mas por algum motivo a região se chama Nova Inglaterra.
Foi uma tarde magnífica, de delicioso frio e chuva bem ingleses. Pois, chuva (isto ainda antes da neve que contei no outro post). Começa a chover. E eu sem guarda-chuva. Na zona da Quay, a olhar para os barcos. Estudantes a passar, em animadas conversas. Eu maravilhado — mas à chuva!
Onde posso abrigar-me?
Obviamente que numa livraria, ou não fosse eu o viciado que sou.
Na Waterstone’s, que para um inglês parecerá tão massificada e pouco tradicional como a nós nos parecem as Fnacs, mas para mim era uma livraria inglesa deliciosa, quentinha e cheia de livros.
Entrei e fiquei maravilhado. Nem vou conseguir explicar bem porquê, mas sair duma rua onde passavam guarda-chuvas e bicicletas e estudantes a caminho dos pubs, tudo encharcado de chuva, para entrar numa luminosa livraria com livros em inglês ficou-me marcado como um especial momento de felicidade.
Ora, o primeiro livro que encontrei e que quis levar de imediato foi este:
Peguei nele, vaguei durante muito tempo, sem pressas nem ninguém à minha espera, pelos quatro ou cinco andares daquele monstro de livraria, fui beber um chocolate quente ao Costa Caffé do último andar...
...e acabei a comprar o livro, numa dessas interacções sem grandes palavras, em que o rapaz da caixa, num inglês muito sumido, me pergunta se quero o cartão de fidelização da Waterstone’s e eu por pouco não digo que sim, só para sentir que iria ali muito mais vezes.
E a verdade é que fui, mas isso são outras histórias.
Lembro-me de estar a ler o livro no resto da viagem, de estar a ler no avião para cá, de estar a ler em casa e de estar a ler em casa dos meus sogros. Não parei até acabar. E o livro é divertidíssimo, principalmente a parte em que Steven Pinker explica porque existem palavrões e quais os mecanismos cerebrais que estão por trás dessas palavras malandras.
Já agora, querem saber se o meu irmão ficou por lá? Hei-de vos contar, mas é fácil de adivinhar, se vos disser que hão-de aparecer mais posts sobre Inglaterra, muito em breve.
(Continua, portanto...)
Fontes das fotos:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Magdalene_College_Cambridge_night.JPG
http://www.jesus.cam.ac.uk/about-jesus-college/college-images/
http://www.librarything.com/venue/25853/Waterstones-Cambridge
Já aqui falei de Stephen Fry, esse génio do humor inglês. Há uns tempos, li esta autobiografia magnífica, que nos transporta pelos bastidores de alguns programas que todos nós adoramos — e de repente também nós nos sentimos a estudar em Cambridge, a humorar em Edimburgo, a falar descontraidamente com Emma Thompson, a participar nas gravações de Chariots of Fire.
Por falar em Emma Thompson, e já que estamos quase nos óscares, fiquem com este episódio, em que um jornalista pergunta a Kim, um amigo comum, o que acha do óscar de Emma (em 1992):
Bolas, tenho vários posts começados e várias ideias que quero trazer para aqui, mas os dias são todos diferentes, e os assuntos aparecem e passam para a frente da fila, deixando os outros posts em estado de rascunho e a murmurarem "isto só neste país!", enquanto o post novinho em folha faz de conta que não é nada com ele e chega-se à frente para ser publicado.
Pois, o certo é que hoje não posso deixar de falar de neve. Não porque tenha visto neve a cair, porque não vi (aliás, como vou explicar, nunca vi tal coisa em Portugal). Hoje foi dia de granizo, que deixou Lisboa com uma cobertura branca que parece fazer mal aos dentes.
A coisa é estranha: chove, e todos resmungam. Cai qualquer coisa que parece neve, e até os jornalistas começam a brincar. (Ainda há pouco, na SIC, um jornalista perguntava a um trabalhador da Câmara se não achava isto giro, e o trabalhador, que tinha de ir limpar este granizo todo, fez aquele ar "este gajo é maluco" e disse: "sim, as pessoas acham giro"... "Pessoas", entenda-se, significa "esses gajos que não têm de limpar esta porcaria toda".)
Digamos que o granizo é a neve que temos, e este é o país que temos, e por isso vamos falar de neve que um post sobre granizo é bem menos interessante.
A minha relação com a neve é curiosa: quando era novo vi neve muitas vezes, mas neve caída, não propriamente neve a cair. Ou seja, fui muitas vezes com os meus pais à Serra da Estrela, essa montanha privativa dos portugueses, fiz muito sku, que ski não era para nós, mas ver a coisa em si a cair não vi. A neve, na minha cabeça, foi ficando coisa de filmes, de outros países, de fantasia — cai neve em Nova Iorque, talvez Londres, nos Natais dos filmes, com lareiras, um manto branco lá fora, e nós aqui a contar histórias, a ler um livro, abraçados debaixo das cobertas. Algo assim. Neve em Portugal, só a neve que alguém põe lá na Serra da Estrela.
Ora, quando tinha aí uns dez anos, fiz uma coisa rara: fui passear sem os meus pais — só para poder ver nevar. A minha avó paterna ia à Serra da Estrela (já não me lembro porquê), os meus pais tinham de ir passar o fim-de-semana a Leiria (também já não me lembro porquê) e como se avizinhavam dias de neve (segundo os senhores do tempo), pedi a todos (pais e avós) para ir à Serra, que Leiria já eu conhecia e bem — e lá nunca neva.
Lá fomos. Ficámos numa hospedaria de freiras, na Covilhã, se bem me lembro — e não me lembro de mais nada. A Covilhã é muito bonita, mas fui lá tantas vezes que não sei se alguma das memórias é dessa viagem específica.
Do que me lembro bem foi do que não aconteceu. E o que não aconteceu foi nevar...
Minto. Também me lembro muito bem dum telefonema dos meus pais.
— Então, filho, estás a gostar?
— Muito...
— Já viste nevar?
— Não.
— Ó... É pena. Olha, aqui em Leiria está a nevar.
Se eu dissesse asneiras aos dez anos ao pé dos meus avós, teria dito coisas muito feias.
Pois passaram anos e continei sem ver nevar.
Curiosamente, casei-me com uma rapariga que também nunca tinha visto neve a cair. Ora, levei a coisa para o romântico: nunca tínhamos visto nevar porque estava escrito nas estrelas que teríamos de ver nevar, pela primeira vez, os dois, juntinhos. Afinal, se até trabalhamos juntos, passamos férias juntos, vamos para o trabalho juntos, vamos para a Serra da Estrela juntos, etc., nem era preciso estar escrito nas estrelas: a estatística estava a nosso favor.
Mas as estrelas (e a estatística) são lixadas.
Tivemos um quase-quase quando um dia neva em Lisboa, aí há uns 7 anos (não me lembro bem e não tenho tempo para investigar agora). Pois as televisões diziam "está a nevar em toda a cidade" e só me apetecia telefonar e dizer "ó meus amigos, vejam lá bem o que dizem, porque em toda a cidade não está certamente, que estou a olhar pela janela, e neve é coisa que não está a cair, ok?" (Para ser rigoroso, o sítio onde moro não fazia (ainda) parte do concelho de Lisboa. Mas nunca pensei que a neve ligasse a esses preciosismos das divisões administrativas de Lisboa.)
Portanto, a coisa estava difícil. Tinha, no entanto, uma consolação: iria ver nevar junto da mulher da minha vida.
Eis se não quando tenho de ir com o meu irmão a Inglaterra. Isto em Outubro. Não sei se conhecem bem a meteorologia britânica para lá dos lugares comuns, mas não é habitual nevar em Outubro.
Excepto quando eu vou lá.
Fomos a Cambridge, fizemos o que tínhamos a fazer (há-de ser o tema dum próximo post) e estávamos a caminho de Londres, de comboio, à noite, quando começa a nevar.
Nos únicos dois dias da minha vida (dos últimos 10 anos) em que não estava com a minha mulher, depois de 28 anos sem ver nevar — vejo, por fim, caírem flocos de neve nas minhas mãos.
Saímos do comboio e fiquei que nem uma criança, num qualquer apeadeiro inglês, à noite, perante o olhar intrigado dos ingleses.
Telefonei à minha mulher, que ficou um pouco triste. Mas pronto, a vida é assim, há coisas (bem) piores.
Algum tempo depois, já com o meu irmão a viver em Inglaterra, fui visitá-lo. Aí, sim, a minha mulher viu nevar pela primeira vez. Sorri complacente, do alto da minha sabedoria de pessoa que já tinha visto nevar.
Nessa viagem acabei por ter de fazer algo que nunca pensei possível: conduzir a nevar ao contrário. Aliás, conduzir ao contrário, a nevar (maldita sintaxe!). Quem diria… Conduzir em Inglaterra é uma experiência e tanto, então com neve, não vos digo nem vos conto. Ou melhor: vou dizer-vos e vou contar-vos, mas não será hoje.
Anos passaram. Continuei sem ver nevar… em Portugal. E bastava passar a fronteira... Por volta de 2009, quando estava a passar umas semanas no Porto, por motivos profissionais, decidimos ir dar uma volta pela Galiza para descomprimir. Pois, estávamos nós na auto-estrada galega quando cai uma tal borrasca de neve e vento que os carros tiveram de parar todos. Voltámos a Portugal e o sol à nossa espera, que ver nevar no meu país é que não pode ser.
Portanto, ainda hei-de ver nevar pela primeira vez de mãos dadas com a minha mulher. Só tenho de especificar "em Portugal". É um romantismo mais patriótico. Enfim, o que tem de ser tem muita força, mesmo que bata leve levemente.
Fontes:
Foto 1: http://astropt.org/blog/2012/02/14/neve-em-lisboa-vagas-de-frio-o-que-aconteceu-ao-aquecimento-global/
Foto 2: http://www.wallpaperup.com/122085/5_centimeters_per_second_the_train_station_snow_japan.html#maximize
Ora, vamos lá ver uma coisa: somos um país de emigrantes, e sempre fomos, pelo menos se considerarmos "sempre" uma palavra que abarca as últimas cinco décadas. Mas há diferenças, não só entre as gerações de emigrantes, como também entre as famílias que emigram e os interesses das famílias que emigram e as maluqueiras das famílias que emigram.
Pois se tive primos e tios que foram para as franças e canadás desta vida há uns quarenta anos, tenho agora um irmão que foi para as inglaterras de agora há uns cinco anos. O que se passa agora é que o pobre do emigrante nem sempre se consegue escapar a que às duas por três apareça a família toda à porta. Os meus pais já chegaram a fazer surpresa ao meu irmão, aparecendo por lá sem dizer nada. Isto já não é mesmo como antigamente.
Ora, numa dessas viagens em família a visitar o emigra privado cá de casa e sua esposa (já agora, um dia pode ser que conte a forma estranha como se casaram; fica para depois) — dizia, numa dessas viagens, que já foram muitas, fomos de carrinha de nove lugares por essa Europa acima, para os visitar em Cambridge e para, depois, irmos com eles a Paris. Há coisas piores na vida do que viagens destas — embora a gente duvide um pouco quando, já cansados, depois duma longa viagem até à fronteira entre Espanha e França, ali mesmo no meio do País Basco, aparece uma placa a dizer "Paris - 800 km", e sabemos que depois de Paris ainda temos muito até Cambridge, incluindo um canal inteiro da Mancha. O entusiasmo da viagem, nesse momento, é um aperto e um aconchegar do rabo ao banco, que isto ainda vai demorar. Muitos livros, muitos livros, e muito olhar pela paisagem fora.
Fonte: Google Maps
Adiante, portanto, que se faz tarde.
Fomos a Cambridge, lá estivemos algum tempo, dei as minhas voltas pelas livrarias da cidade (ah, bliss) e, sabendo que ia a Paris, chamou-me a atenção este livrinho, sujo autor não conhecia, mas que me aparecia recomendando com grande destaque na Waterstone's lá do sítio. Pego nele e compro.
Parisians, de Graham Robb. Garanto-vos que o livro é muito melhor do que possam imaginar antes de o ter lido. Garanto que vale a pena, mesmo para quem não gosta de livros sobre cidades e mesmo para quem não gosta de Paris.
Ainda antes de chegar a casa do meu irmão, estava agarrado ao raio do livro. Continuei agarrado enquanto púnhamos as malas no carro, continuei agarrado enquanto íamos pelas estradas inglesas fora e só não terminei o livro ainda antes de chegar à Mancha porque entretanto fez-se noite.
Foi nessa viagem de Cambridge para Paris que ficámos cinco horas à espera de lugar nos comboios do túnel da Mancha. Não nos lembrámos que, nas férias da Páscoa os ingleses invadem o Continente, e lá ficámos entretidos na carrinha, a amassar o tempo até podermos entrar no comboio.
Pois, com o atraso, só chegámos a França aí por volta das quatro da manhã e acertámos a chegada a Paris mesmo com a hora de ponta, com o sono a escorrer-nos nos olhos, o que me custou especialmente a mim, que me calhou a sorte de atravessar Paris a conduzir até chegar ao hotel marcado no dia anterior, que, digamos, não era exactamente no centro de Paris, mas numa estação de serviço numa auto-estrada lá por perto; é o que dá marcar coisas à última hora (quem conhecer as estações de serviço francesas há-de saber que a coisa não é tão escabrosa como possa parecer; poucos hotéis haverá em Portugal tão bem integrados num jardim maravilhoso como aquele hotelito de estação de serviço).
Portanto, lá fomos nós passear por Paris, e eu com o livro. Fomos encontrar-nos com um amigo do meu irmão para jantar em Montmartre, num restaurante de comida típica do sul de França, onde comi a melhor salada da minha vida, e eu com o livro (que tentei não sujar de salada). Subimos a Montmartre, e livro na mão — e vi-me a intercalar a leitura desta "comédia humana" parisiense com as vistas da própria cidade, ao entardecer.
Vista de Paris de Montmartre, Vincent van Gogh
Passeámos por Paris, de noite, de dia, por metro, durante uns dois dias inesquecíveis. E foram inesquecíveis também porque fomos à Eurodisney e eu tinha aquele livro na mão...
Ora bem. Eu sei que o Louvre e tudo o resto é um milhão de vezes mais significativo do que a Eurodisney. Mas isto merece ser contado. Como vos disse anteriormente, tínhamos ido a Paris quando eu tinha 16 anos. Fomos, também nessa altura, à Eurodisney. Foi um espanto. Fiquei maravilhado com aquilo. Mas entre 1996 e 2011 muita coisa aconteceu, incluindo a passagem dum século e metade da minha vida até então (em 1996, nunca tinha ido à Fnac; não sabia para que faculdade iria estudar; pensava que ia estudar história, quando terminei noutras lides; o bairro onde vivo não existia; etc.). E, o que na altura foi um espanto, algo que nunca víramos, era agora uma série de filas intermináveis (férias da Páscoa, meus senhores!) para ver uma espécie de carrinhos de choque da Disney ou algo do género. Por exemplo, em 1996, achei os Piratas das Caraíbas uma coisa do outro mundo. Parecia mesmo que estávamos nas Caraíbas, à noite, quando lá fora ainda era dia. Agora, achei a coisa fraquinha, principalmente depois de passar duas horas numa bicha. Outro exemplo: a Casa Assombrada fez-me medo em 1996 e fez-me rir em 2011. Estão a ver a ideia...
Mas pronto, deu para estarmos todos, a falar como qualquer português, a discutir como qualquer família em viagem, e a ler, como qualquer família com um bibliólico no seu seio.
E, claro, no meio de milhares e milhares de turistas em filas absurdas, fui lendo o livro inglês sobre Paris, uma coisa magnífica como nunca pensei encontrar num livro sobre uma cidade.
Começa com um jovem que descobre algumas verdades sobre a vida no Palais-Royal, às mãos duma prostituta, que nunca adivinharia que estava a mostrar o mundo ao futuro imperador dos franceses. Continua com a história da rua que se afundou nas profundezas de Paris e do homem que salvou a cidade de implodir. Há rainhas perdidas pelas ruas em tempos de revolução, pedras da calçada que são parte da história, as primeiras fotografias da cidade, que nos transportam para um amanhecer do século XIX, grandes engarrafamentos de dois ou três carros num boulevard, e muito mais. Temos Marcel Proust no o metro, Sarkozy nos subúrbios, de Gaulle a escapar a assassinos, o TGV e muito mais que não cabe num resumo perdido num humilde blog de livros em Portugal — é um livro de história, ou de viagens, ou sobre pessoas, um livro de "não ficção" que usa todos os recursos da ficção, para nos prender a uma cidade sem percebermos bem como.
Este livro surpreendeu-me e deixou-me apaixonado por uma Paris que encontrei numa livraria de Cambridge, lida em inglês. Isto das purezas culturo-linguísticas nunca foi para mim...
Portanto, em comparação à viagem de há quase vinte anos, nesta outra viagem, Paris teve outro sabor, não só porque tinham passado tantos anos, mas porque nós éramos outras pessoas, e, no meu caso, porque tinha aquele livro na mão — e também, já agora, porque levava a minha mulher comigo, e Paris em casal (mesmo com a família em redor) é muito diferente do que Paris vista por um adolescente solitário (mesmo com a família em redor). Ou seja, nesta Eurodisney do século XXI, já com sabor de coisa velha, enquanto famílias e famílias continuavam parados numa fila interminável, eu passeava por Paris, entre várias épocas, visitando Paris como nunca o poderia fazer passeando pelas próprias ruas.
Meus amigos que dizem que gostam mais de viver do que de ler — vejam lá se compreendem isto duma vez por todas: quem anda sempre com um livro atrás vive mais, porque preenche esses vazios que encontramos todos os dias com mais vida, mais ruas, mais histórias, mais pessoas. Não sei se os livros nos fazem viver melhor; mas fazem-nos, certamente, viver mais.
O meu irmão e a minha cunhada voltaram para Cambridge e nós seguimos para sul. Esse foi o momento mais complicado. Muitas pessoas choram essas separações regulares nos aeroportos. Nesse dia, foi num bairro indistinto das franjas de Paris, perto do metro (o metro mais perto do hotel), onde os deixámos, para seguirem até à estação de comboio e partir para Inglaterra. Talvez aquela rua nunca tenha visto uma cena dessas: uma família portuguesa a despedir-se num "até à próxima" que cada vez mais portugueses sabem quanto custa. Mas, pronto, Paris sempre foi muito portuguesa e também sempre foi um pouco da nossa família. Limpas as lágrimas, lá seguimos, para os nossos respectivos países, uma família portuguesa, com certeza.
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