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Ora, para uma pessoa que anda sempre a falar de segredos, podia fazer aqui alguma revelação escabrosa, revelar alguma cena doméstica ou vício tremendo que deixasse os leitores em polvorosa e me desse aí uns bons quinze segundos de fama no Facebook.

 

Pois, mas não vai acontecer nada disso. Vou apenas contar-te um banal segredo do dia em que nasceste. Nada de estrondoso, mas hoje deu-me para isto. Porquê? Talvez porque acabou de nascer o João, o filho duma amiga nossa, e nestas alturas vem-me sempre à memória esse dia.

 

Pois bem: o segredo é este: o teu pai é um piegas. Peço desde já desculpa aos antipieguistas deste país. Mas é verdade: quando nasceste, chorei. Depois das lágrimas do parto, que são normais, andei o resto do dia a disfarçar, a morder o lábio, a olhar para o lado, a tentar limpar as lágrimas bem depressa. Por isso, soube bem, mais à noite, sair para o pátio do hospital, olhar para as estrelas, com o telemóvel a ferver de mensagens e chamadas, e calado deixar então sair a tal lágrima mal contida. Soube bem e não sei o que te hei-de dizer mais.

 

Mas o problema é que a coisa não acabou por aí. Meu Deus, que bebé chorão fui eu nesses dias, muito mais do que a tua valente mãe e muito mais do que tu, que até eras muito sossegado. (Repara bem, já agora, no pretérito imperfeito; o sossego, três anos depois, foi-se todo, ó reguila!)

 

Quando voltámos para casa, bastava apanhar na televisão uma série manhosa qualquer, banalíssima que fosse, para me virem as lágrimas aos olhos. Bastava passar por um bebé na rua. Chorava, ria — enfim, um piegas. A coisa só amainou uns três meses depois… Não contes a ninguém, por favor.

 

Já quando estava contigo, não chorava: punha o meu ar compenetrado, porque há banhos a dar, fraldas a pôr e tudo o resto de que já nem me lembro bem. Sem chorar e muito feliz, punha-me a olhar para ti, a ver-te adormecer, ao pé da tua mãe — percebi, então, que tudo tinha mudado. Mesmo antes de nasceres, já sabia que ia sentir isso mesmo, claro. Mas a realidade tem outro sabor. E outro peso.

 

Curiosamente, nessas primeiras semanas, ganhamos uma certa segurança. Aliás, já por aí ouvi dizer que há inseguranças que desaparecem quando nasce o primeiro filho e parece-me a mim, que percebo pouco disso, que é bem verdade.

 

Tudo isto são palavras banais, não é? Eu sei, eu sei. Quando tentamos falar de coisas muito nossas e muito importantes — o amor, o sexo, a morte, a vida, os filhos — tudo nos soa a banal; as palavras deixam-se ir no que já todos disseram, porque todos passamos por isto. Sim, é verdade, todos passamos por estes episódios, mas é sempre como se fosse a primeira vez, é sempre diferente, de alguma maneira — e esta sensação de algo que é natural, que é antigo, que é de todos e, no entanto, é novidade e é só nosso… Esta sensação de estarmos a passar por algo que vem do princípio do mundo, mas que nunca tinha acontecido antes… Vou parar com estas tentativas. Não faço ideia como se diz o que quero dizer sem cair nestas tontices. Que venha alguém com mais talento acabar o trabalho, porque pelos vistos não consigo. Mais vale calar-me.

 

Bem, calo-me já de seguida, mas deixa-me contar-te só mais uma coisa. Mais um segredo, se quiseres. Aquilo de que não estava mesmo nada à espera quando tu nasceste foi o medo que comecei a sentir. Agora, repara: não é bemmedo. Já disse lá em cima que me senti mais seguro nessas primeiras semanas. Mas tinha medo.

 

Como é que eu hei-de explicar?

 

Dizem que a saudade é uma espécie de tristeza boa. Pois, falta-me aqui a palavra para «medo bom», ou seja, um medo que existe porque és demasiado importante. Talvez a palavra que estou à procura seja «amor», mas, lá está, isso seria imperdoavelmente banal. Isto de que estou a falar é tudo menos banal. Uso, em vez disso, uma maneira de dizer bem portuguesa: quando tu nasceste, a tua mãe e eu ficámos com o coração nas mãos. Desde então, para cá, tens brincado, divertido, com esses dois corações que temos na mão — e nós contigo.

 

Enfim, lembrei-me de tudo isto porque nasceu um dos teus primos emprestados. Os pais dele já sabem, agora, o que é ter o coração nas mãos. Os dias são agora mais perigosos e nunca mais dormimos da mesma maneira. Mas, depois de nos habituarmos, ter o coração nas mãos sabe bem. Faz parte do estranho amor que nos deixa piegas — e tão felizes.



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