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Neste post do blog Pais de Quatro, comentei a agradecer a referência com uma banalidade imperdoável: que isto dos filhos "não vem nos livros".
Enfim, depois pus-me a pensar. Será que não vem mesmo? Os livros descrevem tanta história, tanta emoção, tantas horas de vida e tanta coisa diferente, que obviamente os filhos hão-de lá estar.
Depois, quem é que pode dizer que alguma coisa não vem nos livros? Já alguém leu os livros todos? Já alguém leu 1% dos livros todos que há para ler? Já alguém leu 0,1% dos livros todos que há para ler?
Bem me parecia.
Mas, mesmo assim, depois de ter passado pela experiência de ter um filho (não tê-lo fisicamente, que isso ficou para a minha mulher, por imperativo legal que devia ser alterado urgentemente em sede de orçamento rectificativo) — dizia eu, depois de ter tido o primeiro filho, fiquei com a sensação que nunca tinha lido aquilo em lado nenhum, nem sequer de forma vaga.
Os livros, muitas vezes, tornam-nos atentos às coisas que não notávamos antes, antecipando aquilo que vivemos e dando-nos um quadro de referências onde inserimos a nossa vida real. Um pouco, por exemplo, como quando vamos a uma cidade que nunca visitámos e de repente sentimo-nos em casa, porque aquela cidade vem nos livros que lemos. Se calhar, até a visitámos bem melhor antes de lá pormos os pés do que depois de a vermos com olhos sem livros, que são olhos menos atentos.
Ora, para ter um filho não houve livro que me preparasse. De muitos livros (provavelmente sou eu que não leio o que devia), tiro que os filhos são uma parte dessa nuvem de coisas chatas, a casa, a família, aquilo que não faz parte da vida a sério, a horrorosa rotina (ai, qu'horror!). Os bebés até são muito giros, mas também são muito kitsch, não são? Tanta fraldinha, tanto paninho, tanto beijinhos... Não são material literário, a não ser que seja para fazer sofrer alguém.
Porquê? Talvez porque a felicidade seja desinteressante como tema literário, porque a infelicidade é o que nos distingue uns nos outros, à la Tolstoi? Ou será porque a literatura não deixa de ser actividade das horas infelizes, onde escrever é a forma de sublimar a miséria de certos momentos noutra coisa melhor, que nos "salve"? Quem tem filhos escreve pouca literatura? Bom tema para um estudo estatístico, daqueles que irritam alguns sacerdotes da literatice.
Perdoem-me a imodéstia, mas acho que acabei de dizer uma série de lindos disparates. Mas ficam ditos, pode ser que ajudem alguém a destrinçar isto.
O que me apetece dizer é que essas horas em que um filho nasce, em que o vemos ao colo da mãe cansada, mas a sorrir, nessas outras horas em que mudamos fraldas, damos banho, vemos o primeiro sorriso e parece que é a primeira vez no universo em que isso acontece, quando começamos a perceber como ele é, quando percebemos que ele nos reconhece e quando pegamos ao colo, nada disso vem nos livros, porque não tem de vir e não é fácil que venha. As palavras são rombas e não conseguem transmitir as emoções e razões destes dias. Reparem, tudo isto soa a cliché — primeiro, porque não tenho talento para mais; segundo, porque as palavras não são uma matéria que se molde facilmente. Por isso caímos todos tão facilmente no vício da fotografia. Pelo menos, parece fácil agarrar aquele momento. É uma ilusão, claro, porque a própria dificuldade das palavras dá-lhes o sopro, por vezes, para capturar, de facto um certo momento, muito melhor do que qualquer fotografia.
Adiante: não sei se os filhos vêm nos livros. O meu, certamente não vem.
Já agora, quando a literatura tenta falar da felicidade, como em Saturday, de Ian McEwan, os críticos não costumam ser meigos. McEwan tornou-se complacente, instalou-se, aburguesou-se. Mas, não, simplesmente descreveu uma família feliz — e descreveu aquele medo que está por baixo de toda a felicidade.
Enfim, é um óptimo romance. Que vai muito além da felicidade familiar do protagonista neurocirurgião: temos a tensão entre ciência e literatura; temos a guerra do Iraque; temos o prazer de fazer um bom trabalho; e temos a gravidez e a poesia e a forma como as palavras nos podem salvar (literalmente).
Mas havemos de voltar a este senhor.
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