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Os portugueses lêem poucos livros espanhóis. Pronto, dizem-me já os pessimistas do costume: os portugueses não lêem, ponto final. Refaço a frase: os portugueses que lêem lêem poucos livros espanhóis. Ficou uma frase abstrusa, mas pelo menos mais verdadeira.
Ficam já a saber que nisto de os portugueses lerem poucos livros espanhóis, quem fica a perder são os portugueses...
Querem um exemplo? O livro Anatomía de un instante, de Javier Cercas (em português: Anatomia de um Instante, editado pela Dom Quixote).
O livro, como explica o autor, apareceu-lhe como única opção depois de investigar os eventos de 23 de Fevereiro de 1981 com o objectivo de escrever um romance. Essa foi a data do último golpe de Estado da Europa Ocidental, felizmente abortado. O autor investigou os eventos e chegou a esta conclusão: só um livro de história poderia fazer juz a uma história que é ela própria um romance.
A narrativa centra-se no instante em que Tejero entra pelo Congresso dos Deputados de arma na mão e os deputados, compreensivelmente, baixam-se todos. Todos, excepto dois: Adolfo Suárez e Santiago Castillo, sentados nos extremos opostos do hemiciclo, o primeiro o representante final do franquismo, e o segundo o líder do Partido Comunista Espanhol. Vejam bem a capa da edição espanhola, abaixo. Aí têm Suárez impávido, perante um golpe de Estado. Isto tudo gravado pelas câmaras da TVE!
A partir dessa coragem exemplar dos dois políticos de extremos opostos, segue-se uma viagem apaixonante pela vida dos dois homens e pela vida de Espanha das décadas que antecederam a Transição e de tudo o que aconteceu nesse período apaixonante.
Vemos como ambos tiveram de abdicar de muito do que eram para conseguir esse prodígio: uma Espanha que se tornou uma democracia desenvolvida sem sobressaltos de maior, poucas décadas depois duma Guerra Civil que pôs os avós desta geração de políticos uns contra os outros — até à morte. Já estes abdicaram das ideias franquistas, no caso de Suárez, e abdicaram da nostalgia pela República perdedora da Guerra Civil, no caso de Carrillo.
As cedências são mútuas, o resultado inesperado. Suárez legaliza o Partido Comunista. Carrillo aceita a bandeira franquista como bandeira nacional. E estes são apenas dois exemplos. O resultado? Os partidos de ambos tornam-se irrelevantes em poucos anos — mas Espanha ficou, sem dúvida, a ganhar. Se querem lições de como pôr o país à frente do partido, aqui têm uma bem concreta.
O livro é daqueles que não se consegue deixar de lado. E ninguém sai indiferente ao que lê aqui — muito menos os portugueses, que têm em Espanha uma caixinha de surpresas que poucos acabam por descobrir, iludidos que estão pela imagem simplista do são os nossos vizinhos.
Reparem em Adolfo Suárez sentado (Carrillo, nesta foto, não se vê) e nas costas dos outros deputados, agachados nas bancadas:
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