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O meu filho já gosta de livros, mas com um ano e três meses, o desporto favorito no que toca a leituras é tirar os marcadores dos livros do pai. Daqui a uns quinze anos faço-lhe o mesmo para ver se ele gosta.

publicado às 15:16

Na sexta seguidista de hoje, amigos, proponho-vos o Diário do Purgatório. Depois não digam que não vos avisei.

Os vossos filhos gostam de ler?

 

Depois da animação que foi este blog durante o dia de ontem, hoje estou numa de nostalgia, por isso desculpem lá a lamechiche pegada que vai ser este post, mas o que passa é que por algum motivo (talvez a chuva, talvez conversas com colegas que vão ser pais, talvez ter deixado o meu filho no infantário há pouco) estou a pensar nos filhos e no que eles nos trazem para a vida, que é muito mais do que qualquer pessoa prevê antes de se meter nisso, e muito diferente de tudo o que se pensa antes de nos metermos nisso, e o certo é que — se não vêm nos livros — parece que os blogs têm sido uma forma de expressão do que é ser pai e mãe (e tio e tia e amigo e tudo o mais), porque se calhar o blog até será um género literário (?) mais propenso à lamechiche paternal, porque, enfim, algum género teria de haver para isso — e tudo isto para vos dizer que aquilo que mais custa quando se tem um filho é mesmo perceber que de repente aterra em nós um medo difuso e estranho, um medo que também sabe a outra coisa bem melhor, a amor, ou ligação, ou seja lá o que for esta coisa estranha que nos acontece a nós e aos filhos (o raio das palavras servem para muito pouco nestes campos que são muito carnais, no sentido menos comum dessa palavra) — um medo que nos estraga a vida, estraga a vida mas não nos importamos, estraga a vida porque ela tem mesmo de ser estragada, um medo absurdo que começa quando sabemos que estamos grávidos (e digo assim no masculino se não se importarem, mas se se importarem, a caixa de reclamações é mesmo aqui em baixo) e pensamos que vai passar quando nascer o bebé, e depois não passa, pensamos que vai passar quando ele tiver aí uns dois meses, e claro que não passa, talvez passe ao primeiro ano, e não passou, e sinceramente quando vejo o meu avô de 85 anos preocupadíssimo com a minha mãe de 53, acho que se calhar não passa nunca, e isto será para todo o sempre, amen, embora saibamos que não é para todo o sempre e, no fundo, é esse mesmo o medo, um medo que sabemos nunca terá um final feliz, porque isto mais tarde ou mais cedo acaba, mas, enfim, no medo de tudo isto percebemos que já não queremos finais felizes, o que queremos é um princípio feliz, um filho feliz nesse começo de vida, que nunca por nunca será fácil, mas é dele, e no meio disto tudo já me perdi, mas o medo continua cá, e também um aperto qualquer no esófago quando vejo o meu filho a rir-se, feliz, neste começo de vida que será o que ele quiser e o mundo deixar, e o mundo vai ter de deixar, porque estamos cá para o que der e vier. Portanto, tenham medo, mas sejam felizes.

Sou pai dum menino e filho mais velho dos meus pais e, assim, de acordo com os últimos estudos (sobre a beleza dos progenitores das meninas e sobre a inteligência dos irmãos mais velhos) que andam por aí na boca do mundo, devo ser um bocado para o mal parecido e bastante inteligente. Alguns amigos meus concordarão e tendo a aceitar a primeira afirmação, mas quanto à segunda digo já que não concordo. 

 

Mas, sim, foram divulgados estudos em que parece haver uma correlação entre a beleza dos pais e o nascimento de meninas (pais mais bonitos, mais meninas) e outro em que surge uma correlação entre ser filho mais velho e ser inteligente.

 

Ora, não é preciso ir ver os estudos (mas façam-no, por amor de Deus), para dizer o seguinte:

 

a) Isto são estudos isolados. Estas verdades científicas, que são sempre provisórias, surgem através de estudos repetidos, depois de muita crítica e muita análise — um estudo isolado muito raramente quer dizer alguma coisa de muito sólido. Para um jornalista, claro, os estudos isolados são sempre mais interessantes, porque é sempre possível encontrar um estudo maluco que afirma qualquer coisa. Mas a ciência não se faz de estudos isolados, mas de muita paciência, muita hesitação, e estudos constantes ao longo de décadas. Se quiserem uma imagem desportiva, isto é como na ginástica olímpica, em que a nota final é a média das notas dos juízes, excluindo a nota mais baixa e a nota mais alta. Ora, o jornalismo de ciência, muitas vezes, concentra-se exactamente na "nota mais alta" dos vários estudos sobre determinada realidade.

 

b) Mesmo que tudo isto seja verdade, isto são análises estatísticas, provavelmente muito pouco significativas. Por exemplo (e não estou a ler o estudo) o estudo sobre os pais das meninas provavelmente diz algo do género: "no grupo de pais considerados 'belos' pelo grupo de avaliação há 53% de nascimentos de meninas, enquanto no grupo de pais considerados "feios" há 49%". Como vos disse, estou a inventar os números, porque o que interessa aqui é o princípio: estas minudências estatísticas não nos devem fazer dizer que, se tens uma filha, és bonito. Isso é estupidez.

 

Por outro lado, o facto de alguém conhecer um pai de um menino que é bom como o milho não invalida, de todo o estudo. Um caso é um caso, isto são estudos estatísticos. Este artigo diz, como se fosse uma crítica válida ao estudo, que o mesmo não explica como Gisele Bündchen, que ninguém acha feia, teve um filho. Ó amigos, o estudo é sobre tendências, não afirma propriamente que "mulheres bonitas só podem ter meninas". Há uma grande diferença entre "há uma tendência para X" e "só pode acontecer X".

 

(Já agora, a questão dos filhos mais velhos está já mais estudada do que a questão dos pais das meninas. Só para saberem...)

 

Mas, pronto, isto é uma das minhas manias: arrancar cabelos pela forma absurda como as pessoas entendem a ciência. A culpa não é das pessoas, mas eu tenho estas manias irritantes, para lá dos livros...

 

(Já agora, na pré-história deste blog, lembro-me de ter falado do assunto.)

 

E porque falámos da Gisele, pronto, fica aqui a parte gráfica deste post, para não ser completamente desinteressante:

 

 

Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gisele_B%C3%BCndchen_2006.jpg

 

publicado às 16:29

Neste post do blog Pais de Quatro, comentei a agradecer a referência com uma banalidade imperdoável: que isto dos filhos "não vem nos livros".

 

Enfim, depois pus-me a pensar. Será que não vem mesmo? Os livros descrevem tanta história, tanta emoção, tantas horas de vida e tanta coisa diferente, que obviamente os filhos hão-de lá estar.

 

Depois, quem é que pode dizer que alguma coisa não vem nos livros? Já alguém leu os livros todos? Já alguém leu 1% dos livros todos que há para ler? Já alguém leu 0,1% dos livros todos que há para ler?

 

Bem me parecia.

 

Mas, mesmo assim, depois de ter passado pela experiência de ter um filho (não tê-lo fisicamente, que isso ficou para a minha mulher, por imperativo legal que devia ser alterado urgentemente em sede de orçamento rectificativo) — dizia eu, depois de ter tido o primeiro filho, fiquei com a sensação que nunca tinha lido aquilo em lado nenhum, nem sequer de forma vaga.

 

Os livros, muitas vezes, tornam-nos atentos às coisas que não notávamos antes, antecipando aquilo que vivemos e dando-nos um quadro de referências onde inserimos a nossa vida real. Um pouco, por exemplo, como quando vamos a uma cidade que nunca visitámos e de repente sentimo-nos em casa, porque aquela cidade vem nos livros que lemos. Se calhar, até a visitámos bem melhor antes de lá pormos os pés do que depois de a vermos com olhos sem livros, que são olhos menos atentos.

 

Ora, para ter um filho não houve livro que me preparasse. De muitos livros (provavelmente sou eu que não leio o que devia), tiro que os filhos são uma parte dessa nuvem de coisas chatas, a casa, a família, aquilo que não faz parte da vida a sério, a horrorosa rotina (ai, qu'horror!). Os bebés até são muito giros, mas também são muito kitsch, não são? Tanta fraldinha, tanto paninho, tanto beijinhos... Não são material literário, a não ser que seja para fazer sofrer alguém. 

 

Porquê? Talvez porque a felicidade seja desinteressante como tema literário, porque a infelicidade é o que nos distingue uns nos outros, à la Tolstoi? Ou será porque a literatura não deixa de ser actividade das horas infelizes, onde escrever é a forma de sublimar a miséria de certos momentos noutra coisa melhor, que nos "salve"? Quem tem filhos escreve pouca literatura? Bom tema para um estudo estatístico, daqueles que irritam alguns sacerdotes da literatice. 

 

Perdoem-me a imodéstia, mas acho que acabei de dizer uma série de lindos disparates. Mas ficam ditos, pode ser que ajudem alguém a destrinçar isto.

 

O que me apetece dizer é que essas horas em que um filho nasce, em que o vemos ao colo da mãe cansada, mas a sorrir, nessas outras horas em que mudamos fraldas, damos banho, vemos o primeiro sorriso e parece que é a primeira vez no universo em que isso acontece, quando começamos a perceber como ele é, quando percebemos que ele nos reconhece e quando pegamos ao colo, nada disso vem nos livros, porque não tem de vir e não é fácil que venha. As palavras são rombas e não conseguem transmitir as emoções e razões destes dias. Reparem, tudo isto soa a cliché — primeiro, porque não tenho talento para mais; segundo, porque as palavras não são uma matéria que se molde facilmente. Por isso caímos todos tão facilmente no vício da fotografia. Pelo menos, parece fácil agarrar aquele momento. É uma ilusão, claro, porque a própria dificuldade das palavras dá-lhes o sopro, por vezes, para capturar, de facto um certo momento, muito melhor do que qualquer fotografia.

 

Adiante: não sei se os filhos vêm nos livros. O meu, certamente não vem.

 

 

Já agora, quando a literatura tenta falar da felicidade, como em Saturday, de Ian McEwan, os críticos não costumam ser meigos. McEwan tornou-se complacente, instalou-se, aburguesou-se. Mas, não, simplesmente descreveu uma família feliz — e descreveu aquele medo que está por baixo de toda a felicidade.

 

Enfim, é um óptimo romance. Que vai muito além da felicidade familiar do protagonista neurocirurgião: temos a tensão entre ciência e literatura; temos a guerra do Iraque; temos o prazer de fazer um bom trabalho; e temos a gravidez e a poesia e a forma como as palavras nos podem salvar (literalmente).

 

Mas havemos de voltar a este senhor.


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