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Ora, tenho aqui uns quantos posts em gestação, sobre Mário de Carvalho, sobre uma viagem a Andorra, sobre a minha paixão absurda pela Catalunha, sobre um livro que me ofereceram em Barcelona, sobre mais livros da minha vida e ainda sobre outras coisas, mas enquanto não sai nada, continuo a sessão de strip tease literário, com uma segunda foto muito íntima, de mais um pedaço das minhas estantes.

 

 

Como vêem, a coisa é um pouco caótica. Não é que não tenha tentado organizar tudo por autores, ou línguas, ou temas — mas pouco tempo depois, já há muita coisa fora do sítio, livros que vão em fuga para outros lugares, novos livros que chegam e vão para as estantes vazias, mudanças de casa em que a organização se mantém nalgumas zonas, mas perde-se noutras — enfim, as estantes são uma espécie de sedimentos geológicos de tentativas de organização passadas, e lá vou vendo também, nessa forma orgânica de desorganizar as minhas estantes, o meu percurso de leituras e quase leituras e livros por ler.

 

Nesta segunda foto, o que temos? Temos muita Espanha, pelos vistos... Ali o Cervantes (comprado num El Corte Inglés há muitos muitos anos, em Badajoz, se não estou em erro, para não acharem que é tudo caramelos do outro lado da fronteira), com Vásquez Montalbán a encimar a coisa, com a grande escritora catalã Mercé Rodoreda ali no meio, com o seu espelho partido, ou seja, em catalão, Mirall Trencat.

 

A minha biblioteca rebela-se um pouco e põe ali um Camões de Oliveira Martins só para nacionalizar um pouco a coisa, para além de colocar, na base de tudo, um livro de gestão urbana aqui da urbe.

 

Os outros livros que por aqui estão, hei-de chegar a eles. 

 

Vamos em frente, que há muito para escrever por este blog.

publicado às 20:33

Como vos disse, estou em casa dos meus pais, e pus-me a olhar para os livros que temos por cá. Uma série de enciclopédias, de colecções do círculo de leitores, muitos livros infantis e juvenis, alguns romances da minha mãe, os livros dela quando era nova, alguns livros dos meus irmãos — e muita coisa que acabou por ser importante para mim há muitos anos, mesmo que tenha escolhido deixar os livros por cá…

Há bocado os meus olhos repousaram na colecção do Círculo dos Leitores das Obras completas de Júlio Dinis.

 

 

O ano da colecção? Não sei. Porque o raio do Círculo dos Leitores faz uns livros muita giros para pôr nas estantes mas esquece-se de pôr o ano da edição na edição em si!

 

Se conseguisse, tinha posto uns três ou quatro pontos de exclamação na frase anterior. Mas é algo que não consigo. Tenho um bloqueio qualquer. Para mim, um ponto de exclamação já é caso de indignação ao nível dum ovo atirado à cara dum ministro.

 

Pronto, fim de indignação muito académica.

O Júlio Dinis (Tio Júlio para os amigos) é daqueles autores vagamente simpáticos que são considerados pelos meios literários apenas ligeiramente acima, sei lá, da MRP — e o ligeiramente acima é apenas porque o senhor já morreu há muitos anos. Não é por mal, mas o senhor escrevia uns romances um pouco açucarados e não é fácil escrever grandes dissertações em que se afirma que “Portugal estava todo lá”. Não, Portugal só pode estar todo lá no Eça. Portugal de antanho está também um pouco no Camilo. E o Garrett é que é que até fazia textos a dar para o modernos. Júlio Dinis? Ui, que coisinha sem sal. 

Ao contrário do que o tom ligeiramente irónico do parágrafo acima possa fazer crer, até concordo com essa análise. Se querem ganhar tempo a ler autores do século XIX, há muito melhor do que o tio Júlio.

(Já agora, uma nota rápida para vos dizer: já viram que, do século XIX, pouquíssimos autores sobrevivem? Ai, o tempo, o tempo, que até os imortais mata…)

Apesar disso, os livrinhos do tio são livros bons, talvez não como literatura de adultos, mas para jovenzinhos a iniciarem-se na literatura, talvez naquela transição entre o Clube das Chaves e outros voos mais sólidos. Digo isto como descrição do que se passou comigo...

Houve uma altura aí entre os meus 12 e 15 (não me lembro bem), em que li esta colecção toda de enfiada. Aquilo sabia bem ao gosto pouco atrevido do miúdo bem comportado que eu era — e já sabia a coisa séria. E tinha a vantagem de conhecer um Portugal interessante, o Minho do século XIX.

Como sempre, lembro-me de algumas imagens, de alguma emoções: da palavra trigueira, duma tradição qualquer relacionada com as colheitas, duma estrada entre o Minho e Trás-os-Montes... Lembro-me ainda de ter ficado surpreendido ao perceber que As pupilas do senhor reitor não tinham a ver com os lindos olhos do tal reitor.

E lembro-me dos sítios onde li a colecção, hábito que ainda durou uns bons e largos meses...

 

Lembro-me dum chalet das Astúrias onde fiquei com os meus pais numa viagem por terras de Espanha. Há uma foto em que estamos a sair do tal chalet e eu com uma carga de livros na mão, os meus irmãos a brincar à minha volta. Era uma casinha romanticamente instalada no meio dos Picos de Europa, nessa região espanhola onde devia ter levado o Alexandre Herculano para ler e sentir o peso da Ibérica visigótica, com o Eurico, o Presbítero. Mas fiquei-me com o açucarado Júlio. Enfim, não tinha noção do espaço literário, é o que é.

 

Lembro-me também da casa de férias duns amigos dos meus pais, uma casa de pescadores antiga e saborosamente imperfeita, em Ferragudo, muito diferente do Algarve que quase todos conhecem — casa onde li à sombra duma oliveira no pátio interior. E lembro-me de estar na casa de banho dessa casa algarvia, casa de banho que ficava no pátio, a ler, enquanto todos estranhavam a demora.

Lembro-me de haver uma página em branco num dos livros e ter ficado irritadíssimo com isso...

E, por fim, lembro-me do que não li: Uma Família Inglesa, logo aquele que é o romance mesmo assim mais vem considerado do autor, e um que até poderia ter sido útil no meu curso. Enfim, nunca fui muito de ler por obrigação e o entusiasmo pelo autor durou uma série de meses mas desapareceu nas primeiras páginas da família inglesa, que mesmo assim consegui perceber que vivia no Porto, o que me parece muito típico para ingleses portugueses, que também os há.

 

Enfim, se o Tio Júlio não valer por mais nada, vale por essas recordações...


A colecção incluía tudo, incluindo rascunhos, contos por criar, etc. Por algum motivo, fiquei intrigado com aquilo e deu-me vontade de escrever. Escrevi contos juliodinisianos, armado em adolescente escritor, que espero já tenham desaparecido na voragem das mudanças de casa. Felizmente, nunca me deu para achar que a coisa era interessante. Tinha, de facto, a comichão de escrever, algo que todos os leitores, mais cedo ou mais tarde, sentem (pelo menos no nosso poético Portugal). Felizmente, entretanto apareceram os blogues para coçar essa comichão de escrever que tantos temos.

 

Deixo-vos com este início da Morgadinha, que sempre achei um início saboroso, com uma estrada, entre duas velhas províncias — mas isso sou eu, que sempre me dei muito bem com estradas e livros...

 

Bolas, tenho vários posts começados e várias ideias que quero trazer para aqui, mas os dias são todos diferentes, e os assuntos aparecem e passam para a frente da fila, deixando os outros posts em estado de rascunho e a murmurarem "isto só neste país!", enquanto o post novinho em folha faz de conta que não é nada com ele e chega-se à frente para ser publicado.

 

Pois, o certo é que hoje não posso deixar de falar de neve. Não porque tenha visto neve a cair, porque não vi (aliás, como vou explicar, nunca vi tal coisa em Portugal). Hoje foi dia de granizo, que deixou Lisboa com uma cobertura branca que parece fazer mal aos dentes. 

 

A coisa é estranha: chove, e todos resmungam. Cai qualquer coisa que parece neve, e até os jornalistas começam a brincar. (Ainda há pouco, na SIC, um jornalista perguntava a um trabalhador da Câmara se não achava isto giro, e o trabalhador, que tinha de ir limpar este granizo todo, fez aquele ar "este gajo é maluco" e disse: "sim, as pessoas acham giro"... "Pessoas", entenda-se, significa "esses gajos que não têm de limpar esta porcaria toda".)

 

Digamos que o granizo é a neve que temos, e este é o país que temos, e por isso vamos falar de neve que um post sobre granizo é bem menos interessante.

 

 

A minha relação com a neve é curiosa: quando era novo vi neve muitas vezes, mas neve caída, não propriamente neve a cair. Ou seja, fui muitas vezes com os meus pais à Serra da Estrela, essa montanha privativa dos portugueses, fiz muito sku, que ski não era para nós, mas ver a coisa em si a cair não vi. A neve, na minha cabeça, foi ficando coisa de filmes, de outros países, de fantasia — cai neve em Nova Iorque, talvez Londres, nos Natais dos filmes, com lareiras, um manto branco lá fora, e nós aqui a contar histórias, a ler um livro, abraçados debaixo das cobertas. Algo assim. Neve em Portugal, só a neve que alguém põe lá na Serra da Estrela.


Ora, quando tinha aí uns dez anos, fiz uma coisa rara: fui passear sem os meus pais — só para poder ver nevar. A minha avó paterna ia à Serra da Estrela (já não me lembro porquê), os meus pais tinham de ir passar o fim-de-semana a Leiria (também já não me lembro porquê) e como se avizinhavam dias de neve (segundo os senhores do tempo), pedi a todos (pais e avós) para ir à Serra, que Leiria já eu conhecia e bem — e lá nunca neva.

Lá fomos. Ficámos numa hospedaria de freiras, na Covilhã, se bem me lembro — e não me lembro de mais nada. A Covilhã é muito bonita, mas fui lá tantas vezes que não sei se alguma das memórias é dessa viagem específica.

Do que me lembro bem foi do que não aconteceu. E o que não aconteceu foi nevar...

Minto. Também me lembro muito bem dum telefonema dos meus pais.

— Então, filho, estás a gostar?
— Muito...
— Já viste nevar?
— Não.
— Ó... É pena. Olha, aqui em Leiria está a nevar.

Se eu dissesse asneiras aos dez anos ao pé dos meus avós, teria dito coisas muito feias. 

Pois passaram anos e continei sem ver nevar.

Curiosamente, casei-me com uma rapariga que também nunca tinha visto neve a cair. Ora, levei a coisa para o romântico: nunca tínhamos visto nevar porque estava escrito nas estrelas que teríamos de ver nevar, pela primeira vez, os dois, juntinhos. Afinal, se até trabalhamos juntos, passamos férias juntos, vamos para o trabalho juntos, vamos para a Serra da Estrela juntos, etc., nem era preciso estar escrito nas estrelas: a estatística estava a nosso favor. 

Mas as estrelas (e a estatística) são lixadas.

Tivemos um quase-quase quando um dia neva em Lisboa, aí há uns 7 anos (não me lembro bem e não tenho tempo para investigar agora). Pois as televisões diziam "está a nevar em toda a cidade" e só me apetecia telefonar e dizer "ó meus amigos, vejam lá bem o que dizem, porque em toda a cidade não está certamente, que estou a olhar pela janela, e neve é coisa que não está a cair, ok?" (Para ser rigoroso, o sítio onde moro não fazia (ainda) parte do concelho de Lisboa. Mas nunca pensei que a neve ligasse a esses preciosismos das divisões administrativas de Lisboa.)

Portanto, a coisa estava difícil. Tinha, no entanto, uma consolação: iria ver nevar junto da mulher da minha vida.

Eis se não quando tenho de ir com o meu irmão a Inglaterra. Isto em Outubro. Não sei se conhecem bem a meteorologia britânica para lá dos lugares comuns, mas não é habitual nevar em Outubro.

 

Excepto quando eu vou lá.

Fomos a Cambridge, fizemos o que tínhamos a fazer (há-de ser o tema dum próximo post) e estávamos a caminho de Londres, de comboio, à noite, quando começa a nevar. 

Nos únicos dois dias da minha vida (dos últimos 10 anos) em que não estava com a minha mulher, depois de 28 anos sem ver nevar — vejo, por fim, caírem flocos de neve nas minhas mãos.

Saímos do comboio e fiquei que nem uma criança, num qualquer apeadeiro inglês, à noite, perante o olhar intrigado dos ingleses.

Telefonei à minha mulher, que ficou um pouco triste. Mas pronto, a vida é assim, há coisas (bem) piores.

 

 

Algum tempo depois, já com o meu irmão a viver em Inglaterra, fui visitá-lo. Aí, sim, a minha mulher viu nevar pela primeira vez. Sorri complacente, do alto da minha sabedoria de pessoa que já tinha visto nevar.

Nessa viagem acabei por ter de fazer algo que nunca pensei possível: conduzir a nevar ao contrário. Aliás, conduzir ao contrário, a nevar (maldita sintaxe!). Quem diria… Conduzir em Inglaterra é uma experiência e tanto, então com neve, não vos digo nem vos conto. Ou melhor: vou dizer-vos e vou contar-vos, mas não será hoje.

Anos passaram. Continuei sem ver nevar… em Portugal. E bastava passar a fronteira... Por volta de 2009, quando estava a passar umas semanas no Porto, por motivos profissionais, decidimos ir dar uma volta pela Galiza para descomprimir. Pois, estávamos nós na auto-estrada galega quando cai uma tal borrasca de neve e vento que os carros tiveram de parar todos. Voltámos a Portugal e o sol à nossa espera, que ver nevar no meu país é que não pode ser.


Portanto, ainda hei-de ver nevar pela primeira vez de mãos dadas com a minha mulher. Só tenho de especificar "em Portugal". É um romantismo mais patriótico. Enfim, o que tem de ser tem muita força, mesmo que bata leve levemente.

 


 

Fontes:

Foto 1: http://astropt.org/blog/2012/02/14/neve-em-lisboa-vagas-de-frio-o-que-aconteceu-ao-aquecimento-global/

Foto 2: http://www.wallpaperup.com/122085/5_centimeters_per_second_the_train_station_snow_japan.html#maximize


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