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DICIONÁRIO DE PALAVRAS PERIGOSAS: RESPEITO, OPINIÃO.

woodtype-846089_640Bem, não. Acho que tenho de respeitar o direito que todos temos de ter opinião. E ainda respeitar as pessoas, o que implica demonstrar a nossa discordância sem ataques pessoais. Mais ainda: podemos respeitar-nos a nós próprios pondo em cima da mesa a hipótese de estarmos errados. Ah, o franco debate de ideias, sem picanços nem insultos. Será possível? Não sei. É difícil. Custa muito. Mas não me parece impossível. Reparem agora nisto (é um exemplo extremo): seja lá qual for a opinião que leva um tarado a matar 50 pessoas por serem gays, será bem pior do que a ideia simples de que devemos respeitar a vida dos outros. As pessoas, meus amigos, as pessoas concretas valem muito mais do que uma qualquer opinião. E as opiniões contrárias a esse valor de cada um não me merecem respeito algum.

O meu avô Manel janta em casa dos meus pais quase todos os dias desde o final do século XX. A razão não é das mais felizes, mas a vida é assim e às vezes daquilo que nos dói nascem as histórias que gostamos de ouvir.

 

Assim, desde os meus 15 anos que todos os dias oiço as histórias da vida dele — e acabo por ter recordações de todas essas décadas que não vivi.

 

Pois esta semana, talvez por algum arrepio de calor nesta Lisboa de Junho, enquanto seguia, obediente, numa lenta linha de carros, veio-me à ideia viajar no tempo, com o DeLorean que são as histórias dos meus avós.

 

Lembro-me de muitas das coisas que o meu avô Manuel me contou: soldados ingleses a pedir leite num café de Peniche, a PIDE atrás de emigrantes ilegais, hinos soviéticos na banda da terra, histórias de bêbados e telefones, a minha avó no primeiro concurso de televisão — enfim, fica aqui decidido: vou tentar contar o melhor que souber essas histórias que os meus avós me foram contando ao longo dos anos. Foram contando e ainda hão-de contar, que agora vou perguntar-lhes se não têm mais histórias. Porque a meada de que comecei agora a puxar o fio parece não ter fim. E ainda bem.

 

Não sei quanto tempo isto vai demorar. Mas o truque é começar.

 


 

Já agora, esta é a loja onde o meu avô trabalhou entre os anos 40 e os anos 80 do século XX:

 

atouguia

 

Mas as histórias que vos hei-de contar não são só desta loja na Atouguia. Também a mercearia da minha Avó Leonor, em Peniche, tem umas histórias engraçadas.

 

As lojas das pequenas terras têm muito que se lhes diga…

 

 

Um avião no pinhal e o homem que não sabia inglês

 

Não começo pelo início do século XX — pois os meus avós nem sequer tinham nascido nessa altura — mas antes ali no meio, nos anos 40, durante a Segunda Guerra Mundial. Havemos de voltar atrás, até às primeiras décadas, mas para já caímos de pára-quedas nos anos da guerra.

 

A verdade é que uma das histórias mais deliciosas que o meu avô me contou é esta (espero não estar a acrescentar muitos pontos a este conto).

 

Durante a Segunda Guerra Mundial, de vez em quando lá caíam aviões dos combatentes na costa portuguesa.

 

Ora, lembra-se o meu avô disto: numa madrugada fria do início dos anos 40, um avião inglês cai numa praia perto de Peniche.

 

Os tripulantes ingleses foram resgatados pela população da freguesia, que os levou, assustados (e provavelmente molhados) ao café mais próximo, para que pudessem comer.

 

O café ainda hoje existe (é o Avis, em Peniche).

 

Parece-me muito português, isto: o que se faz a soldados ingleses que aparecem numa praia? Pega-se neles e toca de ir para o café.

 

Enfim, foram para o café e fizeram muito bem. A gente que estava no café, admirada com aquelas aparições, perguntou-lhes se havia alguma coisa que quisessem.

 

Imagino a cara dos ingleses com um círculo de portugueses dos anos 40 a perguntarem-lhes:

 

— Mas o que é que os senhores querem?

 

— Que tal um cafezinho?

 

— Vai um bagacinho?

 

— Isso os homens querem é um bife!

 

Foram-lhes oferecendo coisas, mas eles, por uma razão ou outra, iam recusando. Não queriam nada. Nem vinho, nem bife, nem água.

 

Diz o meu avô que, por esta altura chega ali perto um analfabeto, trabalhador da Quinta da Granja, que todos os dias ia entregar vinho ao café de carroça.

 

O nome dele? O meu avô não se lembra. Mas lembra-se que o analfabeto percebe que se passa alguma coisa, olha para os ingleses assustados e a suplicar alguma coisa que ninguém percebia — e declara, confiante:

 

— Os homens querem é leite com café!

 

Todos se calam, o dono do café, já por tudo, arranja o leite com café e os ingleses olham-no com olhos de agradecimento profundo.

 

Bebem o leite bem quente como se fosse a bebida mais saborosa que alguma vez tivessem provado.

 

Como perceberam que o seu salvador fora o tal trabalhador analfabeto, rodearam-no felizes da vida, atirando-lhe com perguntas em inglês em catadupa. Finalmente ali estava quem sabia a sua língua!

 

Como diz o meu avô, o homem mal sabia português, quanto mais inglês. Logo que viu uma abertura por entre os soldados, saltou para a carroça do vinho e pisgou-se dali para fora, antes que ficasse nomeado intérprete oficial da terra.

 

 

Chovem aviões nas praias portuguesas

 

aterrem em portugal

 

Ah, o gosto que é pegar neste fio e ir puxando. Por causa disto, fui investigar e descobri que as quedas de aviões eram tantas que até há um site para as contabilizar a todas. Há um site e um livro:Aterrem em Portugal!, de Carlos Guerreiro. (Já está na lista para comprar.)

 

Procurei nesse site por quedas de aviões na zona de Peniche. Apareceram-me três. Será que alguma delas é aquela de que o meu avô se lembra?

 
Halifax-mk3

Handley Page Halifax

 

Há pouco, perguntei ao meu avô que avião era.

 

Disse-me ele que se lembra dum avião caído num pinhal e dum planador amarado ao largo da praia, mas não sabe se caíram no mesmo dia ou em qual deles vinham os tais ingleses do leite com café.

 

Ora, um dos incidentes registados é a queda do Handley Page Halifax EB178 da Royal Air Force, na zona de Peniche. A descrição do incidente, no site que referi acima, diz o seguinte:

Rebocava um planador para o Norte de África quando um dos motores se incendiou. Dirigiu-se para Portugal e largou o planador que aterrou numa praia próxima. O avião despenhou-se num pinhal e incendiou-se. Os tripulantes escaparam mas alguns sofreram ferimentos. Reed, Treleaven e Saunders foram assistidos por médicos e enviados para Hospital Inglês em Lisboa. Nenhum tinha ferimentos graves. Participavam na missão “Beggar/Turkey Buzzard”, com objectivo de transportar planadores para bases africanas. Estes aparelhos iriam participar na Invasão da Sicília.

 

Serão estes os ingleses do meu avô? Será que eles se lembram do que aconteceu?

 

Pergunto-me ainda isto: o que terão pensado eles? Será que contaram à família da queda em Portugal? O que terão dito aos filhos? Talvez sejam as histórias duma família inglesa, que se entretém a ouvir o avô a contar a história do dia em que caiu numa praia do sul da Europa e foi levado para um café, onde bebeu um belo leitinho quente?

 


 

Andei à procura de imagens de aviões caídos na Internet para ilustrar estepost. Pelos vistos, todos vinham cá parar, não só os ingleses ou americanos:

 
AVIÃO
HTTP://DIASQUEVOAM.BLOGSPOT.PT/2006/01/PRAIAS-E-GUERRA.HTML

 

 

Quem ganharia a guerra?

 

Uns ganham, outros perdem. Todos suspiramos de alívio por ter ganho quem ganhou (até os alemães dão esse suspiro — imagino).

 

Nós olhamos para trás e vemos claramente o que se passou: a Guerra, com o princípio, meio e fim, os vencedores, o mundo que veio depois.

 

Mas como seria viver naquele momento exacto? As notícias confundiam-se, haveria simpatizantes dos alemães e outros dos ingleses — e o dia-a-dia, no fundo, estava longe dessa história de aviões e guerreiros, que existiam nas páginas dos jornais ou passavam lá em cima — isto quando não caíam na praia.

 

A guerra, essa, podia não ter fim… Ninguém sabia o que viria a ser o futuro. Sei que é óbvio — ou mesmo muito banal —, mas quando olhamos para o passado esquecemo-nos de que, para quem lá vivia, aquele era o presente, com todas as cores, todas as dores e todas as rotinas do dia-a-dia: e o futuro ainda não tinha acontecido. (Às vezes, acho que até nos é difícil a nós, habitantes doutros tempos, perceber que os dias não eram a preto e branco…)

 

Será que as pessoas liam o jornal? Do que se falaria no café ou na loja? Isto sou eu a apontar para perguntar ao meu avô…

 

mundográfico1

 

A vida do dia-a-dia a cores e com som bem nítido — e a história ao fundo, imprecisa. Para nós, que estudámos a época na escola, é ao contrário: a história aparece-nos em letras garrafais e a vida do dia-a-dia desaparece, esbatida, escondida nas memórias de cada pessoa.

 

O mesmo acontecerá com o nosso presente: o que se passa com a vida de cada um em cada dia aparece-nos nítido e tremendo — em contraste, a História que aparecerá nos livros de amanhã ainda é difícil de adivinhar no rodopio de notícias. Daqui a umas boas dezenas de anos, as nossas vidas já terão passado e andará por aí uma narrativa mais clara sobre a História deste início do século XXI — narrativa que nós não conhecemos (ou mal intuímos).

 

Só por curiosidade, fui procurar um ou outro jornal da época para me ambientar. Fui à Hemeroteca virtual da Câmara Municipal de Lisboa e encontrei um número de Janeiro de 1943 da revista Mundo Gráfico (quem chamaria isto a uma revista hoje em dia?).

 

A capa não mostra, mas havia muito da guerra lá por dentro:

 

mundografico2

 

Será que se lia esta revista na Atouguia da Baleia?

 

Perguntei ao meu avô e, por lá, só o Diário de Notícias.

 

Pois hoje não tenho tempo de ir à procura destas notícias no velhinho DN. Fica para depois, para passeios na Hemeroteca menos virtual, passeios esses que já não faço há uns anos e que sabem sempre bem.

 

Hoje fico-me por aqui, com esta história de ingleses caídos entre a praia e o pinhal da Atouguia da Baleia. Mas não se preocupem, que há mais: só por ter perguntado sobre alguns pormenores desta história ao meu avô, já ouvi muito mais histórias, entre galegos que vinham fugidos da guerra e não podiam falar em público, o dia em que a minha avó participou no primeiro concurso da televisão portuguesa, como era ver as pessoas a habituarem-se a falar ao telefone (havia horas marcadas para atender chamadas) — e muito, muito mais.

 

Serão estas as viagens pelo século dos meus avós.

Marco Neves


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