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Já todos conhecemos esta mania de algumas pessoas.
Dizemos, delicadamente: «Queria um café, se faz favor.»
Resposta: «Queria — ou quer?» — acompanhada de sorriso satisfeito, de quem apanhou o outro numa falta qualquer, não se sabe bem qual.
A lógica por trás da piada sem graça é esta: não podemos usar o imperfeito quando estamos a falar de alguma coisa que queremos, agora, no presente. Não é que os cultores da piada pensem nisto tudo assim tão explicadinho. Mas, na cabeça deles, «queria» só pode estar mal: é no passado, já passou. Se quer agora, diga «quero».
Pois, está bem.
Então, cá vai a novidade: as línguas são mais complicadas que as nossas lógicas da batata. As línguas são um conjunto de hábitos pouco arrumados e, neste caso, a forma como a língua portuguesa, sempre matreira, encontrou para expressar a delicadeza de um pedido foi usar o imperfeito em vez do arrogante presente do indicativo. Os linguistas até encontraram um nome para o fenómeno: «imperfeito de cortesia».
A língua é ilógica? Sim, mas, neste caso, ainda bem. Sempre é mais simpático assim.
Agora, vejam lá isto: muitos dos erros inventados de que tenho falado por aqui vão no mesmo sentido — alguém encontra uma irregularidade qualquer e apressa-se a corrigi-la, armado em mecânico da língua. Depois, sorri, com gosto, do erro que vê nos burros falantes de português.
«Saudades tuas — ou saudades de ti?» (Imaginem o sorriso de piada fácil.)
«Terramoto — ou terremoto?»
«À deriva — ou ao sabor da corrente?»
«Pelos vistos — ou pelo visto?»
. . .
E assim ficam, satisfeitos, com a lógica intacta e a língua em fanicos.
Se continuarem por aí fora a tentar arrumar a língua ainda acabam com o verbo «ser», que é tão irregular e tão ilógico, coitadinho. Boa sorte com isso e com essas batalhas muito úteis, não haja dúvida.
Sim, eu queria muito que parassem com a tal piada de café e também com essas ideias simplistas sobre o funcionamento da língua. Queria e quero. Obrigado!
(Uma versão desenvolvida e revista deste texto foi publicada há tempos no livro Doze Segredos da Língua Portuguesa.)
Ora, para uma pessoa que anda sempre a falar de segredos, podia fazer aqui alguma revelação escabrosa, revelar alguma cena doméstica ou vício tremendo que deixasse os leitores em polvorosa e me desse aí uns bons quinze segundos de fama no Facebook.
Pois, mas não vai acontecer nada disso. Vou apenas contar-te um banal segredo do dia em que nasceste. Nada de estrondoso, mas hoje deu-me para isto. Porquê? Talvez porque acabou de nascer o João, o filho duma amiga nossa, e nestas alturas vem-me sempre à memória esse dia.
Pois bem: o segredo é este: o teu pai é um piegas. Peço desde já desculpa aos antipieguistas deste país. Mas é verdade: quando nasceste, chorei. Depois das lágrimas do parto, que são normais, andei o resto do dia a disfarçar, a morder o lábio, a olhar para o lado, a tentar limpar as lágrimas bem depressa. Por isso, soube bem, mais à noite, sair para o pátio do hospital, olhar para as estrelas, com o telemóvel a ferver de mensagens e chamadas, e calado deixar então sair a tal lágrima mal contida. Soube bem e não sei o que te hei-de dizer mais.
Mas o problema é que a coisa não acabou por aí. Meu Deus, que bebé chorão fui eu nesses dias, muito mais do que a tua valente mãe e muito mais do que tu, que até eras muito sossegado. (Repara bem, já agora, no pretérito imperfeito; o sossego, três anos depois, foi-se todo, ó reguila!)
Quando voltámos para casa, bastava apanhar na televisão uma série manhosa qualquer, banalíssima que fosse, para me virem as lágrimas aos olhos. Bastava passar por um bebé na rua. Chorava, ria — enfim, um piegas. A coisa só amainou uns três meses depois… Não contes a ninguém, por favor.
Já quando estava contigo, não chorava: punha o meu ar compenetrado, porque há banhos a dar, fraldas a pôr e tudo o resto de que já nem me lembro bem. Sem chorar e muito feliz, punha-me a olhar para ti, a ver-te adormecer, ao pé da tua mãe — percebi, então, que tudo tinha mudado. Mesmo antes de nasceres, já sabia que ia sentir isso mesmo, claro. Mas a realidade tem outro sabor. E outro peso.
Curiosamente, nessas primeiras semanas, ganhamos uma certa segurança. Aliás, já por aí ouvi dizer que há inseguranças que desaparecem quando nasce o primeiro filho e parece-me a mim, que percebo pouco disso, que é bem verdade.
Tudo isto são palavras banais, não é? Eu sei, eu sei. Quando tentamos falar de coisas muito nossas e muito importantes — o amor, o sexo, a morte, a vida, os filhos — tudo nos soa a banal; as palavras deixam-se ir no que já todos disseram, porque todos passamos por isto. Sim, é verdade, todos passamos por estes episódios, mas é sempre como se fosse a primeira vez, é sempre diferente, de alguma maneira — e esta sensação de algo que é natural, que é antigo, que é de todos e, no entanto, é novidade e é só nosso… Esta sensação de estarmos a passar por algo que vem do princípio do mundo, mas que nunca tinha acontecido antes… Vou parar com estas tentativas. Não faço ideia como se diz o que quero dizer sem cair nestas tontices. Que venha alguém com mais talento acabar o trabalho, porque pelos vistos não consigo. Mais vale calar-me.
Bem, calo-me já de seguida, mas deixa-me contar-te só mais uma coisa. Mais um segredo, se quiseres. Aquilo de que não estava mesmo nada à espera quando tu nasceste foi o medo que comecei a sentir. Agora, repara: não é bemmedo. Já disse lá em cima que me senti mais seguro nessas primeiras semanas. Mas tinha medo.
Como é que eu hei-de explicar?
Dizem que a saudade é uma espécie de tristeza boa. Pois, falta-me aqui a palavra para «medo bom», ou seja, um medo que existe porque és demasiado importante. Talvez a palavra que estou à procura seja «amor», mas, lá está, isso seria imperdoavelmente banal. Isto de que estou a falar é tudo menos banal. Uso, em vez disso, uma maneira de dizer bem portuguesa: quando tu nasceste, a tua mãe e eu ficámos com o coração nas mãos. Desde então, para cá, tens brincado, divertido, com esses dois corações que temos na mão — e nós contigo.
Enfim, lembrei-me de tudo isto porque nasceu um dos teus primos emprestados. Os pais dele já sabem, agora, o que é ter o coração nas mãos. Os dias são agora mais perigosos e nunca mais dormimos da mesma maneira. Mas, depois de nos habituarmos, ter o coração nas mãos sabe bem. Faz parte do estranho amor que nos deixa piegas — e tão felizes.
Um pai é um pai e um pai (ou uma mãe, claro) fica babado com as coisas mais simples. Perdoem-me, portanto, este relato duma cena familiar.
Faço a viagem entre Peniche e Lisboa muitas vezes. A paisagem que vemos na auto-estrada é ondulante e pontuada de moinhos (e, agora, ventoinhas).
Estamos no reino do verde claro, entre colinas e terras simpáticas. Estamos a falar da antiga Estremadura, uma região serena entre o verde escuro e montanhoso do Norte e as planuras imensas do Sul — e tudo com muito mar, ao fundo.
Bem, mas este fim-de-semana a Zélia, o Simão e eu fizemos a viagem de noite, para voltar para Lisboa.
À noite, todas as paisagens são pardas e, se quisermos, assustadoras, principalmente numa auto-estrada, onde a velocidade não deixa perceber bem o que são as luzes que vemos a passar a alta velocidade. Mesmo a paisagem simpática do Oeste não é mais do que sombras e, no céu, aparecem uns estranhos pontos encarnados a piscar.
O meu filho não se importa. Já conhece. Viemos a cantar as músicas que ele nos ia pedindo (um dia conto-vos). Pois, de repente, aparece-nos a lua por trás duma montanha, enorme e laranja, para espanto imediato do Simão, que começa a apontar: «Olha a lua!»
Espanto dele e nosso, que há coisas que nunca cansam.
Passavam nuvens à frente do disco laranja da lua.
O meu filho pergunta-me: «A lua está viva?»
Digo-lhe que sim, sem saber bem porquê.
E ele faz-me esta outra pergunta, preocupado: «A lua está ferida?»
Olhei com mais atenção: havia, na lua, uma mancha negra muito definida que parecia mesmo uma ferida.
Disse-lhe que não, que a ferida era uma nuvem.
Ele ficou mais descansado, e passou os minutos seguintes a olhar para a lua, calado, lá nas suas coisas.
E nós calados, também, por causa da lua — e do Simão.
*
Depois de partilhar o texto acima, a minha mãe (que tinha ficado a tomar conta dele, com o meu pai, no domingo) contou no Facebook que, no dia anterior, o Simão lhe perguntara se a lua tinha morrido. Porquê? Porque não a via no céu… A minha mãe disse-lhe que não, que ainda iria aparecer. Deve ter vindo daí a pergunta que me intrigou: «A lua está viva?»
*
Depois de ler o artigo acima, o meu irmão contou-me que a Lilah, a minha sobrinha, quando veio cá a Portugal há dias também o surpreendeu com a lua. Estavam a andar de carro, quando ela diz: «Moon, Venus, many stars…» Depois, faz muitos gestos e ri-se: «so beautiful, pretty moon!». O que surpreendeu o meu irmão foi o simples facto de eles nunca lhe terem dito nada parecido. É um choque bom quando os nossos filhos começam a dizer coisas só deles… Disse-me ele ainda que, quando viajam, ela parece dar um salto no que diz e no que pensa. Também me parece ver isso no Simão. Nessas idades percebemos bem o valor que tem viajar: dá-nos mais ideias, dá-nos mais mundo, dá-nos mais palavras. Como os livros, aliás (e não só…).
O leitor Paulo Vieira enviou-me esta mensagem:
Ouvi-o na Prova Oral afirmar que a nossa língua vem do galego e estava agora a ler uma notícia do Público sobre os Lusíadas, a que fez referência no artigo da língua bastarda, e nessa notícia é dito que a obra tem uma forte influência do castelhano, língua que aparentemente era muito usada na corte.
Fiquei interessado e gostava de esclarecer quais as origens da nossa língua. Recomenda algum livro sobre o tema?
No final deste artigo, deixo algumas sugestões de leitura.
Mas antes, porque esta compulsão para escrever parece não ter cura, vou tentar explicar aquilo que sei (ou penso saber). Mas tenho de avisar: não sou linguista histórico. Sou um tradutor e professor que estuda linguística por motivos práticos e junta a isso uma paixão pela disciplina.
Pois bem: a verdade é que gosto muito da história da língua — e julgo ser este um tema que nos interessa a todos. Com base no que fui aprendendo ao longo dos anos, mas também com base na leitura dos livros e artigos que refiro no final, aqui fica o meu resumo (os erros, claro, serão meus e não dos livros e artigos — ressalve-se!).
Enfim: todos nós que dizemos falar português e todos os que dizem falar galego falamos qualquer coisa que teve origem nos falares da Galécia, ali no noroeste da Península. Durante séculos, o latim trazido pelos soldados e colonos romanos e adquirido por toda a população foi sofrendo transformações — não as podemos ver em tempo real, porque ninguém as registava ou escrevia, mas, muitos séculos depois, quando finalmente a língua começou a ser escrita, havia nesse território uma língua já formada, com verbos próprios, com formas próprias, com características que a identificam e a distinguem das outras línguas em redor.
A Galécia romana. A nossa língua terá nascido no triângulo que corresponde, de forma muito pouco rigorosa, à metade noroeste do território a verde.
O que chamavam as pessoas a essa língua que já era, em muitos aspectos, a nossa? Não lhe chamavam nem galego nem português: chamavam-lhelinguagem, com toda a probabilidade. Era a língua do povo. Nós, agora, olhando para trás, podemos chamar-lhe «português», o que não deixa de ser anacrónico, ou «galego», o que não deixa de assustar algumas almas mais sensíveis, ou «galego-português», para agradar a gregos e a troianos (como se esses fossem para aqui chamados). Na escrita, durante todos esses séculos do primeiro milénio, o latim continuou rei e senhor.
Quando Portugal se tornou independente, começámos a usar a língua que existia no território, que era ainda apenas o Norte. Não a escolhemos de imediato, pois nos primeiros tempos o latim ainda foi a língua oficial. Mas, devagar, a língua que era de facto falada começou a infiltrar-se nos textos escritos, às vezes de forma imperceptível, outras vezes de forma mais clara.
O país expandiu-se para sul e, com ele, veio a língua, claro. O português nasceu nesse canto noroeste e expandiu-se até ao Algarve (e, mais tarde, até além-mar). Por alturas de D. Dinis era já a língua oficial.
Depois, no final do século XIV, temos revoluções, a batalha de Aljubarrota… — a nobreza nortenha perde influência, a burguesia lisboeta alça-se à posição de classe dominante (e tudo o mais que faz parte da História). Lisboa é agora a capital e a nação esquece-se que a língua veio do norte, não foi criada em todo o território nacional. O que se falava em Lisboa seria esse galego-português que viera para sul com a Reconquista. Houve, claro, algumas intrusões do moçárabe, a linguagem latina do sul (com muitos arabismos). Mas, nas suas estruturas e características principais, a língua que Portugal assumiu como sua é a língua criada na Galécia: não houve um ponto em que o galego e o português se tivessem separado claramente.
Não houve um ponto em que o galego e o português se separassem claramente. Mas há, isso sim, algum afastamento da língua padrão em relação ao que se fala mais a norte. Muito desse afastamento fez-se também por causa das influências externas. Com a corte em Lisboa, e durante muitos séculos (na época de Camões, por exemplo), o castelhano teve uma influência que hoje poucos imaginam. Os escritores portugueses também escreviam, muitos deles, em castelhano. Liam em castelhano. A igreja usava muito o castelhano. A corte também usava o castelhano. Era a língua de prestígio. As misturas eram inevitáveis…
Ora, o português popular de todo o país não sofreu estas influências de forma tão marcada. Assim, arrisco-me a dizer que o português popular manteve durante mais tempo uma maior grau de semelhança com o galego do que o português-padrão — talvez por não ter tanta influência castelhana. Principalmente no Norte, o português e o galego mantiveram-se tão próximos que a fronteira era difícil de traçar. Mais a sul, na Corte, na capital, a língua “desgaleguizava-se” (ver artigos de Fernando Venâncio citados abaixo). Para as elites lisboetas, o galego e o português do Norte começaram a soar a português da província. E, no entanto, era de lá que tinha vindo a língua…
Depois, o castelhano deixou de ser uma influência forte no português (aí por volta do século XVIII); vieram então as influências francesas e, já bem entrado o século XX, começamos a olhar para o inglês.
Sim, sempre fomos uma língua que sofreu influências fortes de outras culturas. Podemos não gostar do facto, mas é isso mesmo: um facto. Não fiquem horrorizados: o castelhano também teve vagas dessas, o francês idem — então o inglês nem se fala. Não percam muitas horas de sono com isso — e, depois, a língua vai atrás da cultura, neste ponto: se quisermos uma língua pura, temos de fechar a cultura a influências exteriores. As línguas mais puras são as mais isoladas, as menos importantes.
Para terminar este resumo muito resumido, diga-se que o português-padrão se expandiu de forma fenomenal durante o século XX, com a escola, a televisão, a rádio, a imprensa. Aí, as formas do sul começaram a suplantar as outras formas, que subsistem, mas com menos força. O português começou a tornar-se mais homogéneo (e menos nortenho/galego) — mas tudo isto já é história das últimas décadas…
Bem, quanto ao galego, lá em cima, num país sem corte, uma sociedade rural, não sofreu tanta influência castelhana até muito tarde, embora essa aparente pureza seja apenas reflexo do isolamento da sociedade. Grande parte da população galega, aliás, só terá começado a sentir a invasão da sua língua pelo castelhano quando a escolaridade obrigatória apareceu no horizonte — e a televisão, jornais, etc. Ou seja, para muitos galegos, o castelhano tornou-se influência no século XX (nas elites terá sido antes, claro). Apesar de tardia, a influência do espanhol é avassaladora, claro está. Aliás, chamar-lhe influência será um eufemismo cruel. O espanhol não influenciou o galego: o espanhol começou a substituir o galego. Afinal, o Estado é o espanhol e a escolaridade da população foi em castelhano até muito tarde. Ou seja, nos séculos XIX e XX, o galego levou uma coça de que ainda não se levantou, apesar de, desde os anos 70, o governo autónomo ter, oficialmente, uma política de defesa da língua.
Alguns galegos tentam aproximar a sua língua do português para assim melhor se defenderem do peso do castelhano; outros apostam num galego autónomo tanto do castelhano como do português. Mas que o galego e o português ainda estão mais próximos do que imaginamos, isso é indesmentível: então quando começamos a olhar para o vocabulário popular, aquele que muitos desprezam injustamente, começamos a ver como falamos uma língua que não deixa de ser muito galega.
… o português tem origem no latim popular falado no noroeste da Península, na Galécia Magna, língua essa a que podemos chamar galego por ser uma língua da zona do Reino da Galiza, uma língua já com características muito próprias séculos antes da existência de Portugal. Ao tornar-se a língua dum estado independente a sul, chamado Portugal, a língua passou a chamar-se português — e com esse nome foi transplantada para os outros países que a falam. Apesar das mudanças a sul, a língua mantém uma forte proximidade com o que se fala a norte da fronteira. Essa língua portuguesa, como é típico duma língua dum país de cultura aberta a outros povos, sofreu grandes influências exteriores: do castelhano, do francês, do inglês… Até hoje. Também nos dias de hoje as formas mais padronizadas do português começam a suplantar as formas mais populares entre a população em geral — enquanto na Galiza, o castelhano avança.
Isto é uma explicação simplificada, claro está. É ainda a minha forma de o explicar: outros dariam ênfases a outras partes ou acrescentariam pontos talvez importantes… Se alguém quiser corrigir, matizar, completar, os comentários estão abertos!
(Proponho ainda que dê uma vista de olhos pelas histórias romanceadas que escrevi e que tentam dar uma ideia do que foi o percurso do idioma nesses primeiros séculos: «História Secreta da Língua Portuguesa».)
Bem, mas a pergunta era outra: que livros de especialistas podemos ler sobre o assunto?
Proponho dois livros breves, recentes, sobre a História da língua:
Proponho também três artigos de Fernando Venâncio sobre o assunto (convém dizer que as aulas que o autor deu na FCSH, este ano, permitiram-me aprender muito sobre as origens da língua):
As redundâncias são essenciais a qualquer língua: são uma forma de proteger a informação que queremos transmitir mesmo quando não temos condições óptimas de som (é uma explicação rápida, mas voltarei ao assunto).
Mas, claro, não interessa explicar isto, porque muitas pessoas puseram na cabeça que as redundâncias são más, ponto final.
Tanto é assim que se apressam a inventar erros falsos e encontram redundâncias mesmo quando não as há.
Ainda há pouco vi no Observatório da Asneira alguém a queixar-se porque um jornalista tinha dito a expressão «O jogo tinha acabado de terminar…».
Ora, aqui não estamos perante uma redundância. Dizer «o jogo tinha terminado» ou «o jogo tinha acabado de terminar» é diferente. O verbo «acabar» e o verbo «terminar» têm dois significados distintos, nesta expressão, e não são redundantes.
Mas, lá está, a fúria de achar erros nos outros é tanta que nem se pensa um segundo.
Ah, e sabem qual foi a reacção quando disse que a frase estava correcta? Alguém me reenviou para o verbete da palavra «redundância», como se o problema fosse eu não saber o que isso quer dizer.
Enfim. É o que vos digo.
«Considerem esta página um exercício de defesa activa da língua portuguesa: quero defendê-la de muitos que por aí andam a dar tiros a belas palavras e expressões da língua. Dizem eles que são erros, quando, em muitos casos, não são erros coisa nenhuma: são apenas palavras e expressões que tiveram o azar de irritar, um belo dia, esta ou aquela pessoa.
Como a língua é muito mais do que aquilo que cada um de nós acha que sabe dela, convém defender as tais expressões, para que a língua não fique mais pobre — ou, por outras palavras, para que nenhum falante seja atacado só porque usa palavras e expressões perfeitamente legítimas da língua portuguesa.
Este dicionário tem duas secções: «Perguntas e respostas» (no final) e o próprio «Pequeno Dicionário de Erros Falsos» (abaixo). A página está em construção permanente e será actualizada sempre que eu encontrar palavras e expressões vítimas de violência linguística (ou receber uma pergunta pertinente). Se alguém tiver alguma ideia, força!»
Ler mais aqui.
Alguns livros são como barras de chocolate: apetece comê-los duma vez, mas com alguma força de vontade conseguimos ir deixando uns pedaços para depois. Há um livro que é uma tentação para os meus olhos: A Mouthful of Air, de Anthony Burgess.
Burgess é um dos meus autores favoritos. O livro é sobre línguas. Junta-se o agradável ao apetitoso, e fico maravilhado a ler sobre línguas, sobre literatura e tudo com aquela voz inconfundível de quem faz o que quer com a coitada da língua inglesa, que no fim nem sabe de que terra é.
Assim, com muita força de vontade, vou lendo o livro devagarinho, ao longo de muito tempo. Sim, às vezes consigo fazer isso mesmo. Ora, há pouco apeteceu-me ler mais um pouco. Foi assim que, enquanto ao meu lado o meu filho seguia uma história de lobos e tigres, li sobre aquilo que se sabe da pronúncia de Shakespeare.
Burgess lá explicava, divertido, que se os nossos ouvidos de hoje em dia aterrassem na Londres isabelina e ouvissem o próprio do Shakespeare a declamar os seus sonetos ou a representar alguma das suas peças, ficariam admiradíssimos com o sotaque que hoje diríamos bem provinciano. Só como exemplo, «lust» seria lido com um «u» à portuguesa, «shame» seria algo como «shéme», «so» seria «sô», tal como «to go» («to gô»), «to know» («to nô»), etc.
Ora, o mesmo aconteceria se nós, portugueses de agora, nos víssemos transportados para a Lisboa quinhentista e encontrássemos Camões na rua. A sua pronúncia estaria cheia de características que hoje diríamos ser nortenhas, ou talvez agalegadas ou — caia então o Carmo e a Trindade — brasileiras!
Não estou a dizer que Camões falava como um brasileiro de agora. Estou apenas a dizer que a pronúncia seria tão diferente da nossa que teríamos dificuldade em localizá-la — e algumas das suas características (as vogais bem mais abertas, por exemplo) são hoje típicas do português do Brasil e não do nosso português de Portugal.
Para quem tem da língua a visão de qualquer coisa de imutável que alguns safados andam a mutilar, isto fará muita confusão. Mas, não: a língua muda mesmo muito ao longo dos séculos: as vogais mudam, as consoantes também, as palavras perdem e ganham sentidos de forma imprevisível, a sintaxe também tem as suas danças. (A ortografia, se formos a ver bem, até acaba por ser dos aspectos da língua que menos muda…)
Algumas das características do português-padrão que damos por adquiridas e que fazem parte integrante do «falar bem» de hoje em dia começaram como modas ou como maneiras de falar que os bem-falantes da época desprezavam activamente. Tudo isto tem muito de aleatório — e pouco de consciente.
Podemos analisar as mudanças e até combater algumas delas. Agora, o que não é verdade é que a língua exista imutável e pura, fora da boca dos seus falantes. E, sim, temos mesmo de admitir: a língua portuguesa, como qualquer outra, é um bicho difícil de apanhar e de compreender — mas, como um tigre, é um bicho perigoso, mas muito belo.
Sim, Camões falava um português diferente do nosso: e eu, por mim, gostava de poder ouvi-lo — não sendo possível, podemos tentar reconstruir a sua pronúncia através dum estudo aprofundado da sua escrita: olhando, por exemplo, para certas características ortográficas, para os erros que denunciam determinada forma de falar ou para as rimas, que mostram como o final das palavras soava na época (são algumas das técnicas dos linguistas históricos).
Enfim, é assim que sabemos que, provavelmente, Camões soaria, aos nossos ouvidos, um pouco a nortenho com travos de brasileiro. Tudo isso faz parte da nossa língua — tal como a estranha pronúncia de Shakespeare também faz parte do inglês.
Ora, longe de me horrorizar, pensar nisto põe-me um sorriso na boca…
(Para quem gosta destes assuntos da língua, deixem-me lá fazer um pouco de publicidade descarada: já conhecem o livro Doze Segredos da Língua Portuguesa?)
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