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Por estes dias, tenho tido menos tempo para blogues. Ah, os dias são sempre curtos, mas costumo arranjar tempo para umas escapadelas.

 

Ora, o problema é que, para escrever, é preciso tempo, mas também cabeça, e a minha cabeça, nesta última semana, tem andado mais virada para o papel, muito por causa do livro que escrevi sobre a nossa língua, que me tem feito dar umas quantas voltas.

 

Mas não pensem que não ando com ideias: tenho deixado muitos rascunhos na caixa do blogue. Quando a cabeça assentar, lá voltarei à rotina de vos deixar por aqui uns textos sobre línguas, livros e outras manias.

 

Deixem-me só contar-vos algumas das voltas do livro. Hoje de manhã, passei por uma experiência nova: fui à TVI falar sobre os segredos da língua. Na semana passada, andei pela Bertrand do Picoas Plaza, onde a editora organizou o lançamento, que me deixou muito feliz. Quanto aos agradecimentos, fi-los ao vivo — e tenho a sorte de os poder mostrar aqui, neste vídeo, que inclui a generosa apresentação de Fernando Venâncio. Agradeço agora a todos os leitores do blogue, que foram muitíssimo importantes neste projecto.

 

Não querendo abusar da vossa paciência, deixem-me só dizer-vos mais umas palavras sobre o livro (convém fazer alguma divulgação…):

 

  • Na primeira parte («A língua e a tribo»), descrevo a forma como a língua também serve para marcar a tribo a que pertencemos. Falo de sotaques (de Lisboa e do Porto, por exemplo), do mito da palavra «saudade» e até damos uma volta pela Ucrânia. Não deixo de contar uns segredos sobre os tempos de faculdade…
  • Na segunda parte,  («A família da língua»), falamos do parente no sótão (o galego), do irmão emigrado (o português do Brasil) e dos vizinhos: as outras línguas de Portugal (e também de Espanha, aqui ao lado). Falamos ainda do inglês e do chinês (e até do persa). Desconfio que será o primeiro livro sobre o português com uma citação do Beowulf
  • Há, depois, um intervalo, onde converso um pouco sobre as crianças e a língua portuguesa. É a parte mais pessoal de todo o livro, pois por lá andam a brincar o meu filho, os meus sobrinhos e o filho duma amiga minha. É um intervalo, afinal de contas.
  • Na terceira parte («O vício do pânico), podem encontrar textos sobre os famosos falsos erros de português («famosos» para quem costuma vir aqui ao blogue).
  • Na quarta parte («O que fazer com esta língua?»), fica o leitor com algumas pistas sobre como escrever um pouco melhor, que o livro não são só histórias, também diz alguma coisa de útil…

 

Há ainda segredos sobre palavrões, sobre linguistas, sobre a Internet — e mais umas quantas coisas.

 

dozeDiga-se que muitos textos incluídos no livro começaram aqui, neste blogue, e no blogue Certas Palavras. Todos foram revistos e alterados e há umas quantas novidades: só como exemplo, incluí um texto em que falo de erros verdadeiros — sim, porque existem mesmo erros de português, claro está… (O texto está na página 163: «E agora, algo completamente diferente: erros verdadeiros!»)

 

A língua é uma paixão que partilho com muitas outras pessoas. Espero ter criado um livro que sirva para aprender, mas também para passar umas boas horas de leitura, com alguns sorrisos.

 

Com este livro, quis celebrar a nossa língua, as línguas de todo o mundo e ainda as nossas vidas, as vidas dos falantes da língua, que — como muito bem diz Fernando Venâncio no prefácio — merecem sempre o nosso respeito. O livro é uma homenagem a esses mesmos falantes.

 

Espero que gostem — e espero que se divirtam, que também para isso escrevi o livro.

 


Doze Segredos da Língua Portuguesa. Edição da Guerra & Paz. Já nas livrarias. Encomendas: Guerra & PazWook |Bertrand | Fnac

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Limitei-me a dizer isto: no Brasil, o nome correcto do planeta que vem logo a seguir a Urano é «Netuno». Sim, em Portugal é «Neptuno», mas no Brasil é «Netuno». A palavra «Netuno» é usada por professores universitários, por linguistas, por astrónomos, por todos os brasileiros; está nos dicionários, é ensinada pelos professores de português e de ciências. Não está errada. Não há qualquer argumento cientificamente válido que leve a considerar que, no Brasil, «Netuno» é um erro. Vou ser explícito: em Portugal, seria um grande erro escrever «Netuno». No Brasil, é a forma correcta.

 

Sim, o português de Portugal e o português do Brasil são diferentes. Mas alguém tinha dúvidas?

 

Desta minha afirmação, surgiu o mais surreal diálogo que alguma vez teve lugar no blogue. Por favor, leiam o diálogo todo, para perceberem os argumentos dos dois lados.

 

Nesse diálogo, alguém me tentou convencer do seguinte (preparem-se):

  • «Netuno» é um erro, fruto da ignorância dos brasileiros.
  • As palavras, em Portugal, ao longo dos séculos, mudam «cientificamente». No Brasil, mudam porque os brasileiros são ignorantes.
  • «Netuno» não quer dizer nada e é uma palavra desenraizada porque, como o português vem do latim, temos mesmo de usar o «p», sob pena de a palavra perder o sentido. Se os romanos usavam «p», a palavra tem de ter um «p» para toda a eternidade.
  • Sim, «luna» também perdeu uma letra ao longo da evolução da língua, ficando «lua», mas essa perda é científica, porque portuguesa. As perdas de letras brasileiras são só burrice.
  • Sim, os italianos dizem «Nettuno» sem «p», mas isso é porque o italiano não vem do latim. (Sim, depois deste argumento, caí no erro de continuar a conversa. Mas é essa a minha forma de respeitar o outro lado, mesmo quando está profundamente errado.)
  • «Fato» vem do gótico e por isso é erro. Que os brasileiros usem essa palavra em vez de «facto» só mostra que os brasileiros são burros.
  • Se os brasileiros usam «Netuno», se calhar estão a italianizar a sua língua. Grande erro, claro está.
  • Os brasileiros, depois de destruírem a língua, querem agora impô-la assim, estragada, aos portugueses, exigindo que passemos a usar «Netuno».
  • Se eu digo que «Netuno» está correcto no Brasil, não posso ser um verdadeiro português.

 

Perante estes argumentos, fico pasmado e chego à conclusão que não devia ter levado a conversa tão longe. É como estar a bater com a cabeça numa parede: não serve para nada a não ser aleijar a cabeça. A parede fica igual.

 

Mas, enfim, são daquelas experiências que ajudam a perceber que, nas discussões sobre a língua, há também muito de irracional e há quem, infelizmente, esteja refém duma nuvem de ideias erradas, mas muito elaboradas, um pouco à semelhança dos teóricos da conspiração noutros âmbitos. O mecanismo mental deve ser o mesmo.

 

Teria ficado tudo por ali, naquele diálogo, não fora dar-se o caso de receber um comentário em que alguém dava força aos argumentos absurdos. Ou seja, isto não é um caso isolado e talvez seja boa ideia abrir as janelas e deixar entrar um pouco de ar fresco na tal discussão absurda:

  • Em português do Brasil, a palavra «Netuno» está correcta. Sim, é uma das muitas diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil, que se foram acumulando nos últimos séculos, como acontece sempre que uma língua se divide em dois âmbitos sociais distintos. A razão deste afastamento é a mesma que levou ao afastamento das várias línguas latinas depois da fase comum a que chamamos «latim». (Já agora, que os brasileiros chamem à sua língua «português» e não «brasileiro» é irrelevante para determinar se uma palavra ou construção está certa ou errada no Brasil; o que conta para saber o que está correcto no Brasil é o funcionamento real da língua no Brasil, não uma qualquer elucubração sobre o que devia ser — mas não é — a língua dos brasileiros só porque tem o nome de «português».)
  • Sim, o italiano vem do latim, tendo sofrido algumas influências externas, como acontece em todas as línguas (o português, por exemplo). Teve fases intermédias (a que podemos chamar «toscano», por exemplo, já que foi a zona cujo falar serviu de base ao italiano literário), tal como acontece com o português (que teve séculos imensos entre o latim e a língua tal como falada no Portugal independente, séculos que podemos chamar os séculos galegos da língua). Não há uma única língua latina que tenha nascido inteira e pura do latim, sem qualquer fase intermédia. (Aliás, todas as línguas estão, ainda hoje, numa fase intermédia entre o que vinha antes e o que virá depois…)
  • As palavras, ao longo dos séculos, vão sofrendo alterações com o seu uso diário pela população. O mecanismo que levou à queda do «p» de «Neptuno» no Brasil é exactamente o mesmo que levou à queda de muitos outros sons em várias palavras, desde o latim popular (a origem remota da língua portuguesa) até à sua forma actual. Dizemos «cor» e não «color», «lua» e não «luna», «vitória» e não «victória», etc. O que leva à diferenciação entre línguas é o facto de estes mecanismos actuarem sobre palavras diferentes em locais diferentes. Sim, o «p» de «Neptuno» caiu no Brasil e não em Portugal. Houve outras palavras em que o «p» (falado) caiu em Portugal, mas não caiu no Brasil. A língua, nos dois países, está a afastar-se. Não há nada a fazer quanto a isso.
  • Por fim, nada justifica trazer para estas discussões argumentos como «quem não pensa como eu não é português» ou algo do género. É essa visão da língua misturada de tribalismo que leva a visões tão distorcidas do que é a linguagem humana e tão perniciosas para os falantes do português.

Sim, a visão que andei a combater naquele diálogo de surdos é esta: as línguas verdadeiras são imutáveis e o português tem uma versão perfeita, descoberta pelos portugueses a certa altura e que tem de ser preservada a todo o custo. Errado. As línguas mudam constantemente, ao longo dos séculos, e não há forma de dizer o que está certo e o que está errado sem olhar com atenção para a língua tal como ela existe, na realidade, em cada sociedade. É difícil, mas não há outra opção.

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Bem, se anda tudo assustado com o ano de 2016, que parece estar a ser mortífero para os artistas, o que dizer do dia 23 de Abril de 1616, que levou William Shakespeare e Miguel de Cervantes? Ou seja, no mesmo dia morreram os dois nomes mais importantes da literatura europeia (estarei a exagerar?).

 

Faz hoje 400 anos…

 

Ah, mas há uma reviravolta na história: Shakespeare, na realidade, morreu 10 dias depois de Cervantes (segundo o calendário actual, morreu a 3 de Maio de 1616). Mas a Inglaterra ainda não seguia o calendário gregoriano e, por isso, o dia em que Shakespeare morreu era o dia 23 de Abril no seu país, tal como o dia em que Cervantes morreu era o dia 23 de Abril aqui para estes lados da Península.

 

Shakespeare e Cervantes conseguiram morrer e não morrer no mesmo dia: os grandes escritores são piores do que os gatos quânticos.

 

Pois, anos depois, já no século XX, os livreiros catalães lembraram-se de fazer a ligação do dia 23 de Abril ao livro, começando aí a tradição de considerar o Dia de São Jorge também o Dia do Livro. A UNESCO, em 1995, pega na tradição catalã, repara na coincidência das datas da morte de Shakespeare e Cervantes e declara o dia de hoje como o Dia Internacional do Livro.

 

Pormenor interessante: segundo a tradição catalã, o Dia de São Jorge (Sant Jordi por aqueles lados) é dia de oferecer um livro e uma rosa a quem gostamos. Há tradições bem piores.

 

Feliz Dia do Livro!

Um livro essencial para quem se preocupa com o português e, ao mesmo tempo, não quer ficar preso a mitos e ideias-feitas sobre a nossa língua.

 

Encomendas: Guerra & Paz | WookBertrand | Fnac

 

«Marco Neves explica-nos, em linguagem muito directa, muito confrontadora, e por isso muito estimulante, como o idioma funciona, como os mitos à volta dele se desenvolveram, como há, nestas matérias, sempre uma surpresa onde julgávamos já tudo dito.» — Fernando Venâncio, no Prefácio.

 

«E a escrita… a escrita é um encanto, fluida, ágil, com aquele tom certo entre o pessoal e o formativo, com humor q.b. e uma ponta de indignação quando é necessário.» — Ana C. B., Gene de Traça.

 

 

dozeTítulo: Doze Segredos da Língua Portuguesa
Autor: Marco Neves
N.º de Páginas: 240
PVP: €15,50
Género: Não Ficção/Língua Portuguesa
Nas livrarias a 20 de Abril
Guerra e Paz Editores

 

Sinopse:
Um livro essencial para quem se preocupa com o português e, ao mesmo tempo, não quer ficar preso a mitos e ideias-feitas sobre a nossa língua.

 

Sabia que andam a circular por aí erros que não são erros?


Sabia que as crianças precisam de muitas pa­lavras para crescer bem?


Sabia que há uma relação entre o acordo orto­gráfico e a guerra na Ucrânia?


Sabia que a palavra «saudade» não é impossí­vel de traduzir?


Sabia que todos os portugueses têm sotaque?


Sabia que o português e o galego estão tão próximos que, às vezes, se confundem?


Sabia que os palavrões fazem bem (mas não convém abusar)?

 

Num estilo claro e bem-disposto, o autor desmonta mitos e revela segredos da língua, com algumas his­tórias curiosas à mistura — e sem esquecer uma ou outra dica para escrever cada vez melhor.

 

Sobre o autor:
Marco Neves. Tem sete ofícios, todos virados para as línguas: tradutor, revisor, professor, lei­tor, conversador e, agora, autor. Não são sete? Falta este: há três anos que é tam­bém pai, com o ofício de contar histó­rias. Para lá das profissões, os amigos sempre lhe reconheceram a pancada das línguas.

 

Nasceu em Peniche e vive em Lisboa. Tem licenciatura em línguas (quem di­ria?) e mestrado na área da literatura. É director do escritório de Lisboa da em­presa de tradução Eurologos e docente de várias disciplinas de prática da tradu­ção na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.

 

Escreve no blogue Certas Palavras sobre línguas, livros e outras manias.

 

Encomendas: Guerra & Paz | Wook | Almedina | Bertrand | Fnac

 

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Ora, amigos, tenho uma novidade e uma sugestão: que tal aparecerem no lançamento dum livro que começou nestas páginas dos blogues do Sapo?

 

O livro chama-se Doze Segredos da Língua Portuguesa e vai estar nas livrarias a partir do dia 20. No dia 21, às 18h30, na Bertrand Picoas Plaza, teremos a sessão de lançamento, com a presença de Fernando Venâncio e do autor (sim, sou eu).

 

Começou no Sapo, como? Bem, há uns dois anos tive um ataque agudo de fúria blogueira e escrevi muito neste blogue, sobre livros, mas também sobre outros assuntos.

 

Entretanto acalmei-me, mas nessa fúria reparei que os artigos que mais gostava de escrever eram sobre línguas e língua portuguesa, o meu principal instrumento de trabalho.

 

Vai daí, criei um outro blogue (que por razões que agora não vêm ao caso não ficou no Sapo) e fui mantendo este para os passeios de domingo.

 

Alguns dos textos desse blogue de línguas (Certas Palavras) tiveram a sua primeira versão neste Livros & Outras Manias. E, depois de mais umas quantas aventuras (os textos também viajam), acabaram num livro, em conjunto com outros textos mais novos. É esse livro que vai ser lançado para a semana.

 

Que doze segredos são esses? Não posso revelar, claro! Mas posso dizer que o livro inclui um intervalo, para não aborrecer.

 

Como estamos a falar dum livro, decidi que o primeiro blogue onde o iria anunciar seria este, o meu poiso secreto sobre livros e outras manias.

 

Espero que gostem e que apareçam! Fica o convite. 

 

Já agora, o evento no Facebook está aqui.

Convite Doze segredos (1).jpg

 

Há uns dias, contei-vos as minhas desventuras com livros, bagagens e companhias aéreas. Pois não é que ainda acabei por comprar mais um ou dois livros? Não é defeito! É feitio… Agora, sosseguem: o meu irmão emprestou-me uma mala de mão e não tivemos de pagar a multa da Ryanair. Antes assim.

 

Mas porque é tão bom andar com livros na bagagem? Porque ando sempre com livros atrás? Sim, cada um é como é, mas acho que não sou o único, como dizia a canção. Há muita gente assim: vão de viagem, e lá vão com livros atrás.

 

Ora, mas porquê? Onde está o prazer de carregar livros? Ou mesmo de os comprar em todo o lado? Há muitas e boas livrarias por cá — e mesmo que não encontremos nas ruas das nossas portuguesíssimas cidades, temos sempre a Wook, a Amazon e outros que tais.

 

É um mistério, e mais mistério será para quem não gosta assim tanto de livros. Por isso, vou tentar explicar, contando-vos um dia de passeio por Londres. Estas minhas histórias vão continuar: gostava de vos ir contando a forma saborosa como os livros se misturam com a minha vida. Não porque a minha vida tenha alguma coisa de especial, mas apenas como testemunho de como os livros nos fazem viver um pouco mais. Serão as minhas memórias de leitor andante.

 

Afinal, os livros e as viagens são dois dos grandes prazeres da vida. Há outros, claro: conversar, brincar, beijar… Mas mesmo esses combinam bem com viagens e, às vezes, até com os livros. Conversar sobre livros, brincar sobre livros, beijar com livros à volta. Enfim, a vida às vezes não é completamente má.

 

Londres para crianças

Ora, no sábado, quando a minha viagem ao país da minha sobrinha estava já a acabar, decidimos ir, por fim, a Londres. Não é assim tão fácil: há autocarros, comboios, metros e muita gente, numa cidade que é uma das capitais do mundo. Com miúdos, a coisa não é assim tão fácil — nem barata.

 

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Ah, mas é impossível resistir. Ali tão perto e não havemos de dar um salto à capital? Lá fomos, entre autocarros e comboios e metro e double deckersvermelhos, que o Simão adorou, pois então. Há qualquer coisa no kitsch britânico que atrai as crianças: os autocarros vermelhos, os chapéus gigantes dos guardas da rainha, os capacetes redondos dos bobbies, os táxis bem negros, a bandeira de cores bem definidas. Não sei, talvez seja eu que tenho um fraquinho pelo país…

 

Decidimos ir ao Museu de História Natural. Pelo caminho, o Simão foi conhecendo King’s Cross, o metro de Londres e, de fugida, os magníficos parque da cidade.

 

Descobrimos até este delicioso aviso:

 

PILLOW FIGHTS

 

Quem estiver interessado em saber a origem deste aviso, fique a saber que existe o Dia da Luta de Almofadas.

 

A sério.

 

Lá chegámos ao Museu de História Natural — e bem a tempo, porque um sol simpático se transformara entretanto em inverno chuvoso. Já sabemos: em Inglaterra, não são os anos que têm quatro estações, mas os dias…

 

Vimos dinossauros, o que deixou o Simão aos pulos. Ainda vimos o corpo humano por dentro, exposições de insectos, e muito do que esse museu tem para dar.

 

Sim, havia muita gente, demasiada gente — mas quem somos nós para nos queixarmos, que também lá estávamos?

 

O mistério dos caixotes de lixo de Londres

Pois a seguir, acabámos o plano que tínhamos e decidimos ir jantar um pouco mais tarde do que o habitual por lá (ou seja, depois das 19h) para terminar a semana de visita de forma descontraída.

 

Mas onde?

 

Aqui foi mais complicado. Estava a chover. Tínhamos ideias diferentes. Estávamos cansados. Foi difícil chegar a conclusões, mas o meu irmão lá nos convenceu a ir jantar à beira do Tamisa, ao Southbank Centre.

 

Mas as linhas de autocarros não se vergam à nossa vontade. Para lá chegarmos, foram vários minutos a pé, que não seriam nada difíceis, não fosse dar-se o caso de estar a chover.

 

Lá seguimos pelos caminhos dessas ruas do Royal Borough of Kensington and Chelsea. Digo-vos o nome para tentarem imaginar essa Londres específica, de casas com ar de serem demasiado caras para a bolsa da rainha…

 

Chegámos por fim à paragem. Chegou-se ao pé de nós uma mulher dos seus 30 anos, muito bem vestida, que tropeçava numa improvável bebedeira a meio do dia. Tropeçava e gritava: «Onde é que está o raio do caixote do lixo?»

 

Mais um tropeção. Mais uns gritos, à chuva: «Claro que não há! Isto é Londres, não há caixotes do lixo em lado nenhum!»

 

Gritava sozinha, mas gritava com alguma razão, que é difícil deitar alguma coisa no lixo naquela cidade.

 

Culpa do terrorismo, dizem alguns. E, de facto, o meu irmão apontou-me para sítios onde há pouco tempo havia caixotes de lixo e agora já não. Nos anos 70, também era difícil encontrá-los, por causa do IRA. Hoje em dia, os terroristas são outros, e talvez os caixotes do lixo não sejam assim tão perigosos, mas nunca fiando.

 

Lá veio o autocarro, entrámos, passámos pelo City Council de Westminster, depois a Abadia, depois o Parlamento, a ponte sobre o Tamisa, a roda gigante a espantar os olhos do Simão e da Lilah. Parámos na Estação de Waterloo e lá fomos a pé, mais uma vez à chuva, procurar o restaurante. A zona é muito diferente de Kensington: estamos na margem sul, com linhas de comboio a passar por cima de nós e o cimento do Royal Festival Hall à chuva, num dia cinzento. Mas não faz mal.

 

Chouriças em Londres (e um jantar à beira do Tamisa)

Londres também tem as suas feiras. A caminho do vago restaurante prometido, passámos por uma feira com barraquinhas de comida e bebida e ficamos tentados: por momentos, parecíamos transportados para uma festa de Verão numa qualquer vila portuguesa, com chouriços e demais iguarias ali à venda.

 

Tudo tinha um ar apetitoso, mas as mesas de bancos corridos, como em qualquer festa de aldeia, estavam vazias — pois estava londrinamente a chover (e nós a andar e o restaurante que não aparecia).

 

Havia mais gente à procura de poiso. Um português passou por nós a dizer ao grupo que o acompanhava: «Estou aqui estou a ir ao McDonald’s.»

 

Mas nós, não! Havíamos de encontrar um bom sítio para fechar a viagem. Hambúrgueres, não.

 

Lá fomos, com os miúdos protegidos o melhor possível da chuva. Diga-se de passagem que a chuva caía, mas não era uma enxurrada. Incomoda, mas não torna impossível andar a pé. Afinal, por mais inacreditável que possa parecer, chove mais em Lisboa do que em Londres. Só que em Londres a chuva é mais miudinha e demora mais tempo a cair…

 

Uma livraria para sair à noite

Pois cansados e molhados, lá chegámos a um restaurante, ali à beira do Tamisa, ao lado duma das pontes.

 

Foi um jantar muito agradável, num restaurante muito cheio, mas em que os empregados pareciam não ter qualquer dificuldade em brincar com as crianças e em trazer tudo depressa e bem.

 

Conversámos, rimo-nos todos, vimos fotografias da semana, falámos de tudo e nada, como apetece. O meu irmão vive em Cambridge desde 2008 e, assim, temos de nos servir destes momentos para falar e conversar ao vivo. Não é que não falemos quase todos os dias doutra maneira, mas sabe bem estarmos juntos — e vermos os dois primos também juntos, a aprender a brincar (e a misturar línguas de forma deliciosa).

 

Ora, como cereja em cima do bolo, mesmo ao lado do restaurante havia uma livraria Foyles, à vista da nossa mesa, muito bem iluminada, tão apetitosa como uma prateleira cheia de doces para os gulosos. É estranho pensar que, naquela correnteza de restaurantes e bares, está uma livraria aberta até tarde. Enfim: comer bem, passar os dedos pelos livros, beber um copo. Estes apetites não me parecem assim tão diferentes.

 

No fim do jantar, lá pedi desculpa, mas não conseguia resistir. Queria ir dar uma vista de olhos pelas estantes… Eles riram-se e eu lá fui, com o Simão atrás, que quis ir comigo.

 

E foi ali que o meu filho comprou o primeiro saco de berlindes da vida dele… Já eu, apesar da pilha que já tinha para levar para Portugal, acabei por comprar este livro:

BOOK

 

A noite de Londres e as memórias nos livros

Entretanto, voltei. Só estavam a Zélia e a Sofia. O meu irmão também tem os seus impulsos e tinha ido dar uma volta para tirar fotografias ao rio. Fomos ter com ele: a Zélia e a Sofia saíram a conversar animadamente, com a Lilah no carrinho. Eu levei o Simão ao colo até um ponto onde se via o London Eye contra as nuvens ensopadas das luzes de Londres. Apontei e disse-lhe: «Olha a roda a andar.»

 

Ele disse-me: «Não está nada a andar, pai», com ar de professor. Eu disse-lhe: «Está sim, olha com atenção». E ele olhou, muito concentrado, durante uns segundos. E acabou por dizer: «Tens razão, pai!» E sorriu. Já aprendeu a mudar de ideias, o que me parece muito bom.

 

(Mas também tem as suas teimosias: passou a semana a tentar convencer-me que o encarnado é para andar e o verde para parar. Porquê? Não sei bem. Se calhar ficou convencido que se os carros andam do lado contrário, as luzes dos semáforos também são ao contrário.)

SOUTHBANK DIOGO

Foto do Diogo.

 

Nessa noite, ficámos todos uns momentos a ouvir um músico de rua, de noite, com o Big Ben ao fundo.

 

Para quem, como eu, sempre gostou muito de Londres (hei-de vos contar nos próximos capítulos a minha estranha relação com a cidade), tudo aquilo era delicioso.

 

Ora, porque vos conto tudo isto? Bem, porque me apetece, e espero não estar a ser demasiado aborrecido. Mas há outra razão para vos contar memórias que para mim são simpáticas, mas para quase todos os outros serão banais. A razão é esta: queria dar um exemplo em que um livro fica indelevelmente ligado a um sítio e um momento. E não é por ser um livro especial ou sequer por ser um livro sobre Londres. Apenas e só porque o comprei, folheei e li um pouco nessa noite.

 

Para que servem os livros?

Os livros, meus amigos, servem para muitas coisas: para fazer peso na bagagem, para levar debaixo do braço, para servir de base para escrever (ai, que dor!), para atrair pó, para pôr debaixo dos pés das mesas bambas — e até para ler!

 

Mas os livros são também, para quem não passa sem eles, uma maneira muito pessoal de marcar a paisagem e as cidades por onde andamos. Ao folhear este ou aquele livro, lembro-me onde estava quando li esta ou aquela passagem. Às vezes, só a capa chega para lembrar esta ou aquela cidade, este ou aquele café, esta ou aquela companhia.

 

Os livros guardam essas memórias. São uma espécie de fotografia da mente: registam as sensações, as memórias, o diálogo contínuo que temos connosco mesmos: as ideias em que andamos a matutar por esses dias, as conversas, os desejos, até os momentos banais em que entramos num autocarro com o livro na mão e picamos o bilhete. A nossa vida acaba misturada com o que lemos e com os livros que compramos ou que, por sorte, levamos connosco.

 

Os livros servem para viajar melhor, para ir onde nunca fomos, para conhecer a nossa própria cidade, para viver um pouco mais.

 

Sei que, durante muito tempo, sempre que olhar para este livro (Londoners), vou lembrar-me desse jantar de duas famílias de irmãos, das conversas dessa noite, da paisagem de Londres, que nunca tinha visto dali, à noite, à chuva, do percurso de autocarro já com o livro dentro do saco molhado da Foyles,  da conversa com o Simão intrigado com o roda gigante — e ainda da mulher bêbada, dos dinossauros do museu, da dificuldade que era pôr o carrinho da Lilah no autocarro, do metro em que andámos de manhã, das lutas de almofadas que afinal são proibidas em certos parques, não vá alguma acertar num qualquer soldado de chapéu muito grande.

 

Nos próximos capítulos hei-de continuar por aí fora, entre cidades e livros, a falar um pouco das minhas memórias de leitor sem rumo. Porque o verdadeiro prazer de viajar é não saber exactamente onde vamos a seguir: tal e qual como acontece com os livros. É bom planear viagens e pôr livros numa pilha para os ler um a seguir ao outro. Mas ainda é melhor rasgar os planos ou desmanchar a pilha de livros, para voltar a empilhá-la, logo a seguir, doutra maneira qualquer.

 

Vamos a isto.

 

No próximo capítulo, vamos conhecer a voz que lê os nomes das estações londrinas — sim, vou apresentar-vos a senhora que diz, no sotaque exacto que associamos aos britânicos, nomes como Piccadilly Circus, Oxford Street e todas as outras estações (são centenas). Depois, havemos de ir a muitas cidades, incluindo a nossa Lisboa, onde até os autocarros são musas para alguns poetas. Todas estas viagens, claro está, com muitos livros na bagagem.


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