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Aproxima-se o Mundial e, com ele, algumas bocas ou reflexões mais ou menos indignadas sobre o que significa mesmo ser português. Isto porque a selecção, de há uns anos para cá, tem integrado alguns jogadores que se naturalizaram portugueses.
Muitos ficam chocadíssimos com isto, porque acham que não são portugueses mesmo a sério. Outras pessoas não querem saber disso e só se preocupam se a selecção joga bem ou não. Podemos não gostar, mas a questão existe e convém falar dela.
Tudo isto radica em visões diferentes do que é a nacionalidade de cada um. Algumas dessas visões são francamente perigosas e, quanto a mim, erradas. Por exemplo, há quem junte à discussão alguns toques (quase sempre disfarçados) duma visão racial da nacionalidade: não pode ser português porque nem sequer é filho de portugueses. Para estes, mesmo que Pepe tivesse nascido em Portugal, não seria português. Para outros, o que conta é ter nascido em Portugal. Mas há filhos de emigrantes que chamamos portugueses e não nasceram cá. O lugar do nascimento define a nossa identidade de forma tão marcada? Porquê? Outros dizem que é necessário ter crescido em Portugal: ora, se crescer em Portugal garante uma relação com o país, não torna uma pessoa portuguesa. Basta perguntar ao (ainda) rei de Espanha. Sendo assim, o Pepe não pode ser português? Se não pode, por que razão não pode?
Tentemos pensar de cabeça fria (o que é dificílimo nestas questões).
Primeiro, Pepe ganhou a nacionalidade portuguesa de forma perfeitamente legal. Quando falo aqui de "nacionalidade", estou a falar do conceito jurídico de nacionalidade, ou seja, da relação de determinada pessoa com um Estado. De acordo com as leis portuguesas, Pepe é português. Pode votar em Portugal, pode ser eleito para tudo (excepto para Presidente da República, único cargo com uma restrição mais específica do que a nacionalidade: o Presidente tem de ser originário de Portugal, seja lá o que isso quer dizer). Se não concordamos com essas leis, podemos defender a sua alteração: mas ninguém pode negar que Pepe é, em termos jurídicos, português. Sendo assim, porque deveria ser excluído da selecção? Além disso, ao entrar na selecção portuguesa, escolhe conscientemente nunca poder vir a fazer parte da selecção brasileira. O critério para fazer parte da selecção é mais apertado do que o critério da nacionalidade, pois a lei não impede que um português mantenha uma outra nacionalidade. Pepe tornou-se português de forma legal e rejeitou a possibilidade de jogar na selecção do seu outro país. Nada a apontar em termos formais.
Agora, todos sentimos que ser português é mais do que aquilo que aparece no registo civil. O Estado é uma estrutura política, mas tem — ou pelo menos quer ter (e em Portugal certamente que tem) — uma ligação profunda a determinada nação, ou seja, a um conjunto de pessoas que se identificam com uma comunidade nacional (se a definição parece circular, é porque o é). Poucos portugueses concordarão a 100% com o que significa fazer parte dessa "comunidade nacional", mas quase todos dirão: significa falar português, significa ter uma ligação forte ao território português, significa qualquer coisa de indefenível. (Alguns serão mais tribais e obrigam a uma relação étnica com Portugal...)
A verdade é que tudo isto é importante e não podemos escapar a essa necessidade de fazermos parte dum grupo com características com as quais estabelecemos uma relação emocional (chame-se tribo ou nação). Mas digo-vos: ser demasiado rigoroso nestas definições só pode dar mau resultado. Não é por termos um jogador que nasceu no Brasil a jogar na selecção que vamos ter problemas. Estas misturas são boas, mesmo que o nosso sentimento tribal fique um pouco magoado.
Ao contrário do que possam pensar, o caminho da civilização implica reduzir a identidade baseada em critérios tribais, vagos e potencialmente perigosos, e ancorá-la antes a critérios mais legais, mais definidos e menos emocionais. É um caminho difícil, mas um caminho em que o Estado-Nação é já uma etapa mais avançada que a tribo ou a relação feudal. Ser português significa acima de tudo ter uma relação com o Estado português e não recusar activamente essa relação. Tudo o resto tem de vir por acrescento, mesmo que cada um de nós encontre nesse "resto" o sentido da nossa relação com o nosso país. O "resto" é importante, é talvez o mais importante, mas não podemos garantir que todos o partilhem. Os direitos e deveres dos portugueses existem colocando-nos em pé de igualdade perante um Estado e as suas leis. Sim, a relação emocional com o Estado baseia-se na nossa necessidade de identificação com um grupo, mas não se esqueçam de tudo o que já aconteceu quando se levou tal emoção às últimas consequências.
No caso do Pepe, a vontade de jogar na selecção foi o "resto" que o levou a querer ser português. Terá sido por interesse? Sim, interesse em jogar na selecção. E será talvez mais — não sei, não o conheço pessoalmente. Mas andamos todos pela rua a perguntar a cada um o que o leva a querer ser português? Somos portugueses porque crescemos cá, somos portugueses porque queremos trabalhar cá, somos portugueses por várias razões. Uma sociedade civilizada não pode importar-se com as características de cada um ou com a origem de cada um, desde que cada um aceite alguns pontos essenciais: falar a língua, aceitar as leis, defender o país (cada um à sua maneira). O Pepe falha algum destes testes?
Prefiro um país complicado, aberto, indefindo se preciso for do que um país que se esforça por ser puro, o que só pode dar muito mau resultado. A pureza nacional é um fétiche que já matou muita gente e que não nos traz nenhuma vantagem. Portugal devia ser mais do que uma ideia antiga de pureza, que de qualquer forma quase ninguém sabe definir muito bem. Vamos descontrair, aceitar que há portugueses com uns restos de sotaque divertidos — e que, já agora, a selecção jogue bem!
Sobre o papel do rei Juan Carlos no que toca à democracia espanhola, podem ler este livro recomendado há uns tempos. Vale a pena!
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