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Javier Marías

publicado às 19:14

Este post vai ser um pouco armado ao intelectual. Mas, cá vai disto: a cultura é a capacidade de ver mais coisas no mundo. Agora, explico com exemplos concretos. (Continuem, porque, na minha imparcial opinião, vale a pena.)

 

Fui a Oxford pela primeira vez enquanto estava a ler Todas las Almas, de Javier Marías. (Isto não serviu apenas para dizer “olhem só, até leio autores espanhóis que ninguém conhece”, até porque muita gente conhece o senhor — e, depois, todos nós desconhecemos coisas que os outros acham essenciais, por isso, quem sou eu…)

 

Seja como for, a questão é que o romance se passa em Oxford. Enquanto andava pelas ruas, fui encontrando lugares do livro que estava a ler — e, confesso, vi muito mais coisas do que veria se não estivesse a ler aquele livro. Depois de sair de Oxford, acabei o livro e as últimas páginas passavam-se numa cidade que eu já conhecia. Esta mistura entre ficção e realidade foi um prazer muito particular. Imaginem o que é sair dum café museu e ver, do outro lado da rua, a montra à frente da qual, na noite anterior, o narrador do livro que tinha na mão encontrara uma das raparigas da história. O livro ficou mais real e Oxford ainda mais interessante. A coisa também funciona com filmes, teatro, música — e até quadros, esculturas e outros que tais. A variedade é grande, mas cada um tem as suas preferências.

 

Continuando: esta contaminação foi um exemplo extremo daquilo que acontece muitas vezes. Quando vamos pela primeira vez a uma cidade sobre a qual já lemos muito e na qual se passam muitos filmes que vimos, é um pouco como se voltássemos a ler e a ver esses filmes — e é também uma forma de vermos a cidade com mais atenção. Por outro lado, ler sobre cidades que conhecemos é continuar lá e aumentá-las — parece que nunca de lá saímos. (Podemos ainda ter memórias de sítios onde nunca fomos — tenho saudades de Tóquio.)

 

Ou seja, a cultura é uma forma de viver mais (não necessariamente de viver melhor — isso é outra história). Quem acha que a cultura é uma forma de fugir da vida não percebeu nada.

 

Imaginem uma pessoa que não gosta de ler, não gosta de cinema, não gosta de música — ou então gosta de tudo isto, mas nada que seja inglês. Agora imaginem que essa pessoa vai pela primeira vez a Londres. Aparentemente, encontra a mesma cidade que uma pessoa interessada, mas, no fundo, não vê quase nada. Acha tudo muito «chato», porque Londres não passa duma cidade, com mais ou menos edifícios, mais ou menos história, mais ou menos museus, mais ou menos pessoas. O mundo parece chato àqueles que são chatos — e as pessoas interessantes parecem aborrecidas aos verdadeiramente desinteressantes. (Escusado será dizer que a divisão entre uns e outros está nos olhos de quem divide, mas isso agora não vem ao caso.)

 

publicado às 12:07

Talvez seja efeito secundário de alguns excessos que cometi quando era muito novo (aí por volta dos quatro, cinco anos), mas tenho recordações que não são minhas. Lembro-me, por exemplo, dum pátio ao cimo duma colina de Lisboa — pelo que sei hoje da cidade, localizo a paisagem dessa memória na Graça, no Castelo ou por aí. A recordação é duma manhã de sol (só pode ser de manhã porque o sol está atrás de mim e vejo a ponte 25 de Abril lá ao fundo). Os telhados são os que todos sabemos, dos quadros da Maluda, mas reais, ali mesmo. Há uma roupa estendida, uma criança a rir-se, um cão a olhar para mim com a língua de fora e um senhor vestido de preto que se aproxima para falar comigo — às vezes penso que ele é Fernando Pessoa, mas isso deve ser de ler demasiado Saramago.

 

 

Isto não tem lógica nenhuma. A sério. Não nasci em Lisboa. Venho cá desde que sou pequeno, algumas das minhas primeiras memórias são em Lisboa ou perto (na Estefânia e em Birre, para ser exacto) — mas esta recordação não pode ser minha. Talvez venha dum livro, dum filme, dum documentário, duma reportagem que vi quando era muito novo. Não faço ideia. Tanto quanto sei, pode ser doutra pessoa.

 

Enfim, gosto desta memória como se fosse minha, mas tenho a sensação não completamente desagradável de estar a lembrar-me doutra vida. No fundo, é como ler: apanhamos mais vidas do que aquela a que temos direito. É, talvez, perigoso — mas é muito bom.

 

Se alguém tiver perdido uma memória à Graça, já sabe onde a encontrar.

 

Referência do quadro: Maluda | Lisboa L | Óleo sobre tela, 73×92cm, 1996 | Colecção particular, Lisboa | Número atribuído: 232 | Fonte: http://maludablog.umnomundo.eu/wp-content/uploads/2008/06/232_lisboa_l.jpg

publicado às 09:01


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