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Se ninguém se entende sobre as vantagens e desvantagens do Acordo Ortográfico de 1990 — e não vamos falar de quais são as tais vantagens e as tais desvantagens — todos podemos concordar que não há acordo ou consenso em relação a esta matéria. O que fazer a partir daqui?
Há quem defenda que devemos voltar atrás e recuperar a ortografia de 1945. Outros defendem a manutenção da ortografia de 1990, ou porque concordam com o Acordo ou porque acham que o esforço de voltar atrás já não vale a pena.
Há, no entanto, outra solução: revogar, pura e simplesmente, toda a regulamentação legal relativa à ortografia.
Reparem: a lei não define a pronúncia das palavras, não define a sintaxe das frases, não define o vocabulário. Não é necessário que defina a ortografia oficial — aliás, muitas línguas há em que a lei nada diz sobre as características da língua (basta pensar no inglês).
Alguns ficarão com medo: então, e depois? Deixamos de saber escrever?
Claro que não! Não aconteceria nada de dramático. A comunidade linguística tem mecanismos para chegar a convenções ortográficas, que iriam evoluindo naturalmente, como acontece com a sintaxe, o vocabulário e a pronúncia.
Neste caso, teríamos uma dificuldade não habitual: partiríamos para a "selva ortográfica" (estou a ser irónico...) com duas ortografias que, libertas da discussão jurídica, estariam em luta permanente pela preponderância na sociedade em geral. O Estado também teria de decidir que ortografia usar no sistema de ensino — ou deixaria a decisão para as escolas (como já faz, de facto, no caso das universidades). Não viria daí nenhum drama — rapidamente chegaríamos a conclusões e, mesmo que não chegássemos, cada um usaria a ortografia preferida.
Haveria desvantagens? Só para quem tem aquela mentalidade uniformizadora que não admite variações ou não compreende como a linguagem humana funciona, de facto. Para estas pessoas, a língua é sempre imposta de cima para baixo. De resto, não me ocorrem desvantagens de maior.
Revogue-se a ortografia de 1990. E a de 1945. E a de 1911. Que a ortografia fique entregue às universidades, às escolas, às academias, às editoras, às empresas — e a quem escreve, em geral.
Descubra no irmão gémeo deste blog: Entre Línguas.
Os falantes de determinada língua estabelecem uma relação tão forte entre os sons e os símbolos que são usados para os representar na escrita que se torna, por vezes, difícil perceber como podia ser doutra maneira.
Por exemplo, há portugueses que julgam ver no som "nh" uma qualquer característica que obriga a que o som seja representado por duas letras (um dígrafo). Ora, mesmo aqui ao lado, temos os espanhóis a escrever "ñ" e a considerar este "eñe" como uma letra autónoma.
Já os catalães usam "ny" para o mesmo som. Os galegos usam "ñ" na ortografia oficial, havendo uma ortografia diferente, apoiada por alguns movimentos e universidades, que usa o português "nh".
Quanto ao mirandês, quem tratou de estabelecer uma ortografia única optou por "nh", à portuguesa.
O som "nh" tem tantas variantes porque não existia em latim. As línguas latinas acabaram por ter de se desenvencilhar sozinhas para inventar uma forma de o escrever.
Não só neste caso, mas em tudo o que toca à ortografia, estamos a falar de escolhas: por vezes, são escolhas que se vão acumulando ao longo de séculos, muitas vezes feitas pelos tipógrafos que pela primeira vez tiveram de passar a escrito manuscritos de autores que usavam opções diferentes conforme a página, outras vezes são opções conscientes e feitas de forma sistemática por uma pessoa ou por um grupo de pessoas encarregues de estabelecer um ortografia para uma língua. Casos há ainda que estas escolhas se tornam letra de lei, como acontece com o português, que é regulado por leis e tratados internacionais (um dos quais tem criado a polémica que todos conhecemos).
No entanto, mesmo quando inscrita na lei, a ortografia é sempre uma convenção. Teoricamente, uma língua (que é um fenómeno, à partida, oral) poderia adaptar-se a qualquer sistema de escrita. É possível escrever português em cirílico, por exemplo: bastaria estabelecer um conjunto de regras que fizessem a correspondência entre sons e letras (estas regras podem ser mais ou menos complexas; línguas há em que a relação é quase unívoca, como o espanhol, enquanto outras têm uma relação que, à primeira vista, é anárquica, como o inglês).
Seja como for, a ortografia e em especial os símbolos que distinguem cada língua acabam por ganhar tal força na mente e no coração dos falantes que, só por si, representam e simbolizam toda uma cultura.
O "ñ" é um símbolo do espanhol e da cultura espanhola, os catalães sentem o "ç" como algo que os distingue dos restantes espanhóis (o Barça é Barça e não Barza, se repararem bem) e nós, portugueses, andamos às voltas com a perda ou salvamento de algumas consoantes.
Estes símbolos especiais permitem ainda distinguir línguas, mesmo quando não conseguimos lê-las. O português, por exemplo, é inconfundível com o seus conjuntos de cedilha e til:
Já o catalão, para além da cedilha e do "ny", tem este símbolo estranho entre os dois "ll":
http://ca.wikipedia.org/wiki/L%C2%B7L
Alguém faz ideia quantos livros compra, em média, por ano?
Uma empresa que queira chegar aos clientes na língua certa não deve limitar-se a ir à Wikipédia ver qual a língua oficial do país em questão. Não só pode acabar por ferir susceptibilidades regionais (assim de repente, lançar uma campanha de marketing em ucraniano na Crimeia pode não ser a melhor opção, principalmente por estes dias), como podem acertar na língua, mas errar na versão da língua.
Assim, uma empresa chinesa que decida entrar no mercado brasileiro e contrate tradutores portugueses vai acabar por ter problemas — as duas normas do português estão mais próximas do que julgamos ao nível da escrita, mas não deixa de ser impossível escrever um texto neutro, ou seja, que possa ser usado dos dois lados do Atlântico sem acabar por ser considerado estranho por um dos lados.
Da mesma forma, contratar redactores ou tradutores brasileiros para escrever textos dirigidos aos portugueses é um erro de palmatória. O português é uma só língua — mas quem quer vender produtos num mercado não pode achar que essa língua é igual em todo o lado: nenhuma língua é uniforme, e no caso das línguas internacionais, é costume a própria norma da língua ter variantes marcadas (como é o caso do inglês, do espanhol, do francês...).
Isto são conselhos para as empresas. Não desvalorizem a relação emocional não só com a língua, mas também com a forma local de falar a língua: seja no Brasil, em Portugal, em Angola ou até numa parte específica de cada um desses países.
Para os utilizadores e para os leitores de literatura, o meu conselho é outro: tenham menos medo das outras versões da língua. Leiam mais, de tudo. (Vejam, a esse propósito, o post O português do Brasil aleija os portugueses?)
Conheço quem ache estranho ter muitos livros por ler. Ou seja, segundo algumas pessoas, os livros que temos nas estantes de casa devem ser os livros que já lemos — se assim não for, incorremos no pecado da hipocrisia, como se ter um livro na estante tivesse necessariamente de querer dizer que já o lemos e se não o fizemos estamos a enganar as pobres pessoas que querem saber tudo o que está dentro da nossa cabeça.
Pois eu tenho mesmo muitos livros que ainda não li. Não faço ideia se são a maioria dos livros que tenho (julgo que não), mas são muitos.
Pois ao folhear o The Black Swan de que vos falei há pouco, aparece-me este parágrafo magnífico sobre esse assunto (traduzo directa e livremente, embora haja tradução "oficial" em português — só que não a tenho aqui):
O escritor Umberto Eco faz parte dessa pequena classe de académicos que têm um conhcimento enciclopédico, são perspicazes e não são nada aborrecidos. É o proprietário duma grande biblioteca pessoal com trinta mil livros e costuma separar os visitantes em duas categorias: aqueles que reagem com um "Bem! Senhor Professor Doutor Eco, que biblioteca tem aqui! Quantos destes livros já leu?" e os outros — uma pequeníssima minoria — que percebem este simples facto: uma biblioteca privada não é um apêndice para nos afagar o ego, mas sim uma ferramenta de investigação. Os livros já lidos valem muito menos do que os livros por ler. Uma biblioteca deve conter tanto quanto possível de tudo aquilo que não sabemos — tanto quanto permitirem as nossas finanças, a nossa hipoteca e a crise do mercado imobiliário. Acumulamos conhecimento e livros à medida que envelhecemos e o número cada vez maior de livros por ler nas nossas estantes olha para nós de forma ameaçadora. De facto, quanto mais sabemos, maiores as filas de livros por ler. Chamemos a esta colecção de livros por ler uma "anti-biblioteca".
Já agora, para quem não confiar nos meus dotes de tradução, aqui vai o original:
“The writer Umberto Eco belongs to that small class of scholars who are encyclopedic, insightful, and nondull. He is the owner of a large personal library (containing thirty thousand books), and separates visitors into two categories: those who react with “Wow! Signore, professore dottore Eco, what a library you have ! How many of these books have you read?” and the others - a very small minority - who get the point that a private library is not an ego-boosting appendage but a research tool. Read books are far less valuable than unread ones. The library should contain as much of what you don’t know as your financial means, mortgage rates and the currently tight real-estate market allows you to put there. You will accumulate more knowledge and more books as you grow older, and the growing number of unread books on the shelves will look at you menancingly. Indeed, the more you know, the larger the rows of unread books. Let us call this collection of unread books an antilibrary.”
Por falar em Taleb (vejam o último post), encontrei isto num centro comercial de Portimão em Julho passado. Ainda está por ler, mas capa dura, edição razoável, tudo por sete euros e meio, no meio de muita porcaria. Uma pérola, portanto:
Nem sempre os centros comerciais são tão vazios de conteúdo assim...
Já me aconteceu usar o termo "espanhol" e ter alguém a corrigir-me, como se tivesse dito um grande disparate: afinal, devia saber que se diz "castelhano". Também já ouvi um espanhol a declarar alto e bom som que a sua língua é a espanhola e nunca diria que fala "castelhano", espanhol esse que parecia bastante indignado com o uso da palavra "castelhano".
A questão é simples, mas, como em tudo, há quem goste de complicar. A língua oficial em Espanha (e em vários outros países) tem dois nomes: "espanhol" e "castelhano". Ambos se referem à mesma língua e são sinónimos. Ponto final.
Enfim, os pontos finais raramente são completamente finais... Afinal, os termos "espanhol" e "castelhano" são usados em situações diferentes, embora nunca percam a sua relação de sinonímia. Assim, Espanha usa preferencialmente o termo "espanhol" nas suas relações com o exterior (por exemplo, através da acção do Instituto Cervantes). No território espanhol, o termo "castelhano" é usado, muitas vezes, como forma de contrapor o espanhol às outras línguas de Espanha. A própria Constituição Espanhola chama "castelhano" à língua que declara oficial em toda a Espanha (co-oficial com outras línguas nalgumas regiões).
Nos outros países "hispanohablantes", as várias constituições escolhem, de forma aparentemente aleatória, uma ou outra denominação da língua. O uso real do nome pela população varia de país para país:
Fonte: http://es.wikipedia.org/wiki/Pol%C3%A9mi
Como podemos ver no mapa acima, nas regiões espanholas onde também existe outra língua oficial, usa-se preferencialmente o termo "castelhano" — isto se exceptuarmos os independentistas, que dirão "espanhol" com prazer, pois é a língua duma Espanha com a qual não se identificam. Todos os outros preferem "castelhano" porque sabem que é apenas uma das várias línguas espanholas.
Já conheci catalães que nunca diriam "espanhol" para se referirem à língua de Espanha — mas também conheci uma mexicana que nem conhecia o termo "castelhano" para se referir à língua que falava. Também nos E.U.A., onde o espanhol é a segunda língua, com uma tradição de séculos, praticamente ninguém usa o termo "castelhano".
Já a Real Academia Espanhola, assumindo que ambos os termos são correctos e sinónimos, recomenda o uso do termo "espanhol".
Para resumir: em Portugal, podemos usar ambos os termos. Se querem um conselho, prefiram "espanhol", que sempre é mais comum e mais claro... Mas nem por sombras se lembrem de corrigir alguém porque prefere "castelhano" a "espanhol".
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