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Os manuais escolares têm má fama entre aqueles que dizem defender a verdadeira literatura. Afinal, que raio de literatura é essa que é partida aos bocados e entregue aos alunos em pedaços mastigáveis? Quem poderia alguma vez perceber o valor e o sabor da literatura lendo bocados de livros? 

 

Até concordo. Mas a coisa é, claro, mais complexa. E, na verdade, temos sempre os poemas, que são obras completas ali na página.

 

Há poemas que nos atingem sem percebermos bem como. No meu 10.º ano, tinha um manual cinzento (mesmo cinzento, em termos de cor, não em termos de conteúdo). Encontrei este poema, que acho que nunca cheguei a dar na aula, e não faço ideia porquê, fiquei agarrado:

 

Um Amor

 

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão, 
puxaste-me para os teus olhos 
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua, 
ainda apanhámos o crepúsculo. 
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar 
diferente inundava a cidade. Sentei-me 
nos degraus do cais, em silêncio. 
Lembro-me do som dos teus passos, 
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas, 
e a tua figura luminosa atravessando a praça 
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é, 
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali, 
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha 
essa doente sensação que 
me deixaste como amada 
recordação. 

Nuno Júdice, in "A Partilha dos Mitos"

 

Fosga-se, que ainda hoje fico afectado por este poema. Por algum motivo, isto batia certo com uma imagem qualquer que tinha do que era viver numa cidade e ter um grande amor numa cidade — e perder esse grande amor. Era como se eu já tivesse vivido aquilo, o que seria impossível.

 

Essas luzes dos autocarros no crespúsculo, os passos numa praça ou num cais — bolas, parece que até consigo ouvir os exactos autocarros da Carris a passar com as luzes a acenderem-se e achar isso bonito.

 

Enfim, anos depois, vim a ser aluno de Nuno Júdice, mas parece que as pessoas conseguem desdobrar-se e ali tinha um professor e não o poeta do poema que mais me tinha alterado. Nunca lhe cheguei a dizer.

Ora, a pergunta é de resposta fácil: Almeida Garrett! Se lerem as Viagens na Minha Terra com olhos de blogger, verão que é um blog chapadinho. E só não foi um blog porque a cobertura 3G no Vale de Santarém no início do século XIX era absolutamente indecente! Por isso é que este país não avançava!

 

Reparem no primeiro post, que podia muito bem ter sido escrito num tablet, a caminho de Santarém:

 

Que viage á roda do seu quarto quem está á beira dos Alpes, de hynverno, em Turim, que é quasi tam frio como San'Petersburgo—intende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o proprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.

 

Eu muitas vezes, n'estas suffocadas noites d'estio, viajo até á minha janella para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me inganar com uns verdes de árvores que alli vegetam sua laboriosa infancia nos intulhos do Caes-do-Sodré. E nunca escrevi éstas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha penna: pobre e suberba, quer assumpto mais largo. Pois hei de dar-lh'o. Vou nada menos que a Santarem: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se hade fazer chronica.

 

Era uma idea vaga, mais desejo que tenção, que eu tinha ha muito de ir conhecer as riccas varzeas d'esse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais historica e monumental das nossas villas. Aballam-me as instancias de um amigo, decidem-se as tonterias de um jornal, que por mexeriquice quiz incabeçar em designio politico determinado a minha visita.

 

Pois por isso mesmo vou:— pronunciei-me.

 

São 17 d'este mez de julho, anno de graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de boa estrea. Seis horas da manham a dar em San'Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro-do-Paço. Chego muito a horas, invergonhei os meus madrugadores dos meus companheiros de viagem, que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Ja vou quasi no fim da praça, quando oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d'ancien règime: é o nosso chefe e commandante, o capitão da impreza, o Sr. C. da T. que chega em estado.

 

(Bolas, que hoje estou para os clássicos e para as ortografias antigas. O raio do hynverno é lindo!)

 

A amizade não é um tema tão comum na literatura como o é o amor ou a paixão ou a vingança ou todas essas outras emoções mais definidas, mas se virem bem acaba por ser pena. Afinal, enquanto que paixões temo-las bem contadas e o amor ainda mais e os outros sentimentos assim fortes e literários não são assim tão comuns como possa parecer a quem lê livros em catadupa, a amizade é extraordinariamente diversa, e uma só pessoa pode ter relações diferentes e subtis e muito interessantes com várias pessoas diferentes, e em cada uma destas relações haver material para livros que nunca mais acabam.

 

Isto tudo para vos mostrar este livro, que comprei uma vez para oferecer a uma grande amiga minha por altura do Natal, mas que entretanto foi ficando esquecido dentro duma gaveta, enquanto a amizade arrefecia por razões várias, nenhuma delas definitiva, mas todas elas a puxar para esse afastamento que todos sabemos conhecemos, um afastamento sem o drama dos amores que se rompem, mas com o mesmo efeito. Os amores acabam com um estrondo, há amizades que acabam por erosão geológica, erosão essa que por vezes nos surpreende por levar uma casa a cair pela falésia abaixo.

 

Não sei se isto ficou assim muito bem explicado, mas cá fica o livro, que todos conhecemos. Comprei-o já vai para uns bons 15 anos, julgo eu. Estava nos primeiros anos da faculdade, e todos sabemos como os amores e as amizades nascem como cogumelos por essas alturas — o que por vezes não admitimos é que também morrem com alguma frequência e, se no caso do amor sabemos todos fazer o luto, nem que seja com uma bebedeira, no caso da amizade fica por vezes aquela sensação vaga e triste de algo que se perdeu — e nem sequer temos assim tantas canções e tantos livros para nos confortarem.

 

 

Nunca senti que este livro fosse realmente meu: é uma oferta a uma amiga dessa pessoa que comprou o livro, que não sou bem eu, porque com cada amigo que ganhamos e com cada amigo que perdemos, deixamos de ser exactamente a pessoa que éramos.

publicado às 13:50

"visinhança", "theoria", "Janellas Verdes", "á beira", "Collegio", "emfim", etc.

 

Já alguém se deu ao trabalho de ir ver a primeira edição d'Os Maias? Podem encontrá-la aqui.

 

Só para aguçar a curiosidade, vejam o início e o fim da obra que atormenta os alunos portugueses há tantos anos (é pena tantos caírem na esparrela de pensar que um livro é mau só por ser obrigatório, grande e não começar da forma mais excitante possível). 

 

 

 

 

Este fim teve um certo impacto em mim quando o li pela primeira vez. Hei-de voltar a isto.

 

Entretanto, reparem na ortografia. Atrevam-se a escrever como o Eça nos testes sobre Os Maias e vão ver o que vos acontece. 

 

Por outro lado, aqueles que acham que novas ortografias são um desaforo aos grandes autores, que não escreviam assim... Bem, já vieram um pouco tarde, que a ortografia mudou em 1911. (Aviso: isto não é um argumento a favor do Acordo Ortográfico. É apenas e só um argumento contra um argumento parvo em particular.)

Uma das típicas generalizações que diz mais da burrice de quem a diz do que da burrice dos americanos.

Há americanos ignorantes? Claro que sim! Tal como há ignorantes em todos os países, desenvolvidos ou não. Mas antes de avançarmos, talvez fosse bom reflectir um pouco sobre o que quer dizer "ignorante". Será que o mundo se divide claramente entre "ignorantes" e "não ignorantes"? Ou seja, se aparecer um americano na televisão a dizer que não sabe muito bem onde é Portugal (o exemplo típico que os portugueses usam para acusar os EUA de ignorância extrema), isso significa logo que é ignorante? Já conheci pessoas sem conhecimentos de geografia para lá do seu concelho que eram tudo menos ignorantes. Mas, enfim, cada qual lá terá o seu catálogo de coisas "óbvias" que todos têm de saber que, normal e estranhamente, corresponde ao catálogo daquilo que cada um sabe...

Adiante. Havendo critérios fáceis de definir sobre o que é um ignorante, avançamos para outras reflexões: será que os americanos são assim tão ignorantes? Será que não ouvimos apenas aquilo que nos interessa ouvir, ou seja, que notamos apenas os exemplos que confirmam a nossa ideia inicial (neste caso, que os americanos são ignorantes)?

Porque até pode haver muita ignorância naquele país, mas vamos lá dar perspectiva: quantos portugueses sabem onde fica exactamente a Eslovénia? A Eslováquia? A Croácia? Será que se fizéssemos um questionário bem feito, haveria uma maior percentagem de portugueses a saber a localização exacta da Lituânia do que de americanos a saber onde é Portugal? E não me venham com a história que Portugal é mais importante do que a Lituânia, porque a Lituânia teve um papel central na história da Europa. Não conhecem que papel foi esse? Estão a pedi-las...

Continuando. Sendo um país de ignorantes, será de esperar que tenham resultados científicos e académicos baixíssimos. Que tenham poucos prémios Nobel. Que as suas universidades estejam aflitas, carregadíssimas de ignorantes. Será isso que acontece?

Sei perfeitamente que a ignorância alheia aleija muito. Quando a vemos na população que elege os políticos mais poderosos do mundo, aleija mais ainda (às vezes aleija mesmo fisicamente, quando nos passa um drone em cima). Mas temos de combater as nossas ideias tão bem-feitinhas, tão vagas, tão indignadas e, às vezes, tão injustas.

Neste caso, o que se pede é um critério mensurável que nos permita comparar "ignorâncias" entre populações. Podem procurar. Digo-vos que ficamos um pouco mal na pintura. A não ser que o único critério de sabedoria do mundo seja saber onde é Portugal...

Quando ouvirem um americano a dizer que não sabe onde é Portugal, digam-lhe onde é. Quando ouvirem um português a dizer que não sabe onde é o Chipre, digam-lhe onde é. E respirem fundo. Depois, comecem a reparar nos casos que não confirmam aquilo em que acreditam.

Por exemplo, quando fui a Nova Iorque, há uns anos, comecei a falar com um americano, que logo me afirmou, quando lhe falei de Portugal, que preferia Coimbra de entre todas as cidades portuguesas que conhecia.

E esta, hein?

*

Pedro Mexia, em Fora do Mundo:


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