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Acho que nunca contei isto a ninguém...
Houve um dia, há muitos anos, quando ainda andava na faculdade e vivia aquela vida de estudante complicada em que durante muitas alturas do mês não tinha dinheiro na conta, em que decidi ir à Fnac. Enfim, é um prazer como outro qualquer, mas a coisa às vezes era doentia. Ficava horas a olhar para os livros, cabeça de esguelha, sem poder comprar todos os que queria. Folheava, lia, folheava outro, sentava-me, dava mais um volta, via uns CD (na altura em que ainda se comprava música física), voltava aos livros, enfim... Muito li eu por essas sessões de solidão no Colombo (era lá que havia a Fnac).
Pois bem, houve um dia em tive um problemazito. Fui para o Colombo, pus-me a ver livros, e perdi noção das horas. De repente, percebi que não tinha dinheiro para pagar o estacionamento! Ou melhor, eu tinha o suficiente na conta para pagar o estacionamento, que seria aí uns dois euros (julgo que já havia euros, mas não tenho a certeza). Só que não podia levantar dinheiro, porque não tinha o suficiente para uma nota que fosse (estes estudantes...). Tinha, se bem me lembro, uns três euros na conta...
Tinha um problema muito sério: como sairia dali? Não podia pagar o estacionamento com o Multibanco. Não podia levantar dinheiro. Não tinha dinheiro no bolso.
Já estava a imaginar o cenário: uma noite no Colombo... Telefonar a algum amigo para me ir salvar... Ou mesmo telefonar aos meus pais... Lavar pratos para pagar o estacionamento. Ficar eternamente a vaguear pelo Colombo, à espera dum realizador que quisesse fazer o filme da minha vida... Ou, simplesmente, ficar a dormir no carro... Uma série de acontecimentos estratosfericamente embaraçantes que me fariam vaguear como um farrapo inseguro, a tremer, pelo Colombo fora, sem dinheiro para comer, sem cama para dormir. Pânico!
Mas, fez-se luz...
Na altura, a Fnac oferecia estacionamento grátis a quem comprasse fosse o que fosse. Ora, havia uns livritos muito baratos, que custavam muito pouco... Aliás, havia, e há... A colecção é esta:
Pois, bastou pegar num destes livros, quase escolhido ao calhas, pagar com Multibanco, pegar no talão do estacionamento grátis e ir para casa.
(Talvez tenha sido mesmo as Gulliver's Travels, mas não me lembro.)
Fiz tudo com calma, mas estava nervoso: a solução era tão simples e calhava tão bem, que era difícil imaginar que não falhasse. Talvez já nem 3 euros tivesse na conta... Talvez os cartões com menos de 5 euros não funcionassem... Se calhar chegava ao carro e não tinha gasóleo para chegar a casa.
O que vale é que a casa onde vivia era ali perto (na mítica Buraca) — e o fim do mês estava a chegar.
E pronto, foi assim que a Penguin veio em meu socorro. E foi assim também que contei uma coisa neste blog que nunca tinha contado a ninguém.
Bom jantar!
A morte e o sexo são aquilo que não conseguimos agarrar com as palavras e aquilo que nos arrelia a mente quase todos os dias. Somos animais, já todos sabemos. Mas somos animais que, de repente, há uns milhões de anos, descobriram qualquer coisa de diferente.
O quê? Não consigo explicar muito bem. Talvez seja aquilo a que chamamos, hoje, de "consciência", outros chamaram durante muito tempo "alma", ou talvez até seja algo tão mais simples como a capacidade de falar. Porque se calhar foi nesse momento em que alguém disse alguma coisa também percebemos (nós, a humanidade) que éramos conscientes.
Porque somos conscientes e bastante inteligentes, começámos a sonhar com mais qualquer coisa; começámos a imaginar que não éramos apenas animais, mas outra espécie de seres — seres com consciência (ou alma, se quiserem). Conscientes de existirmos, não aceitámos e recusámos e ignorámos durante milénios que fôssemos apenas animais como os outros. Só muito depois, no final do século XIX, redescobrimos essa verdade primordial: somos animais — mas entretanto o estrago estava feito: já tínhamos inventado uma humanidade para lá da nossa animalidade.
Onde entra neste arrazoado a morte e o sexo? O sexo é uma necessidade animal. A morte é uma consequência da nossa animalidade. Não somos deuses, nem essencialmente diferentes dos animais à nossa volta. Mas inventámos palavras, e inventámos também conceitos e ideias para sublimar, ou transformar, ou amaciar o sexo e a morte: o amor, o casamento, a religião, a imortalidade, Deus e tudo o resto.
Começámos a querer ser mais do que animais, e com esse querer transformámo-nos, de facto, em algo mais do que animais.
Mas estes seres humanos que são mais do que animais também morrem e também fodem. (Desculpem o palavrão, mas os palavrões são uma tentativa nossa de chegar mais perto dos grunhidos dos animais que éramos e somos. As palavras normais dificilmente conseguem. Por isso, as cenas de sexo na literatura são quase sempre ridículas. Por isso caímos nos mais constrangedores lugares-comuns quando alguém morre.)
E já pensaram bem no sexo e na morte? (Eu sei que já, a pergunta é retórica.) Já viram alguém morrer? Já sentiram a dor de ter um familiar ou amigo a morrer ao vosso lado? Por outro lado, conseguem reproduzir por palavras o que é o sexo? O estar na cama (ou em qualquer outro lado) com outra pessoa, conhecida ou amada ou desconhecida, nesses gestos animais e íntimos e ridículos para quem vê de fora e outra coisa qualquer para quem está envolvido na coisa? As palavras não chegam e, no entanto, são o que temos se queremos preservar algo mais do que memórias instáveis, que morrem connosco.
Por ser algo a que não conseguimos dar a volta com a nossa mente, que não conseguimos domesticar totalmente, temos curiosidade pelo sexo; por isso, temos curiosidade pela morte. São desejos pornográficos e desejos mórbidos, mas estão lá: queremos ver, sentir, perceber aquilo que temos dentro de nós.
Por isso, escrevemos livros, inventamos canções, construímos cidades: para sermos mais qualquer coisa, para podermos viver, amar e foder, e no fim morrer, e não ser tudo apenas uma vida animal, sem sentido. Quase sempre continuamos sem perceber exactamente o sentido, ou embrenhamo-nos em sentidos que mais não são do que ilusões, mas tentamos. Pelo menos tentamos, e nisso já estamos em movimento, mesmo que não acertemos na direcção.
Já viram como nada disto parece fazer muito sentido? Como estes textos sobre o sexo e a morte acabam em lugares comuns, caminhos batidos? Parece que não há volta a dar. É mesmo assim. O que vale é que, neste par animalesco, há um que apetece — e outro que tentamos afastar, todos os dias, procurando alguns momentos de alívio, que é como quem diz, de felicidade.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Death.jpg
Bem, este blog já serve para alguma coisa de muito útil: estou à espera de vez no dentista e pus-me a pensar em posts a escrever, distraindo-me do que aí vem. Sim, sou um mariquinhas nestas coisas...
Podem agora dizer: mas os livros não servem exactamente para esses momentos de espera, pá?
Sim, servem, mas como expliquei há uns bons posts atrás, um leitor como eu, anos depois, ao reler um certo livro, lembra-se do sítio exacto onde estava quando passou por certa página... Ora, dentistas é coisa que não me quero lembrar daqui a muitos anos...
(Como todo o respeito por tão útil profissão, obviamente. Eu sei que a culpa de estar aqui é exclusivamente minha, que devia ser guloso só com os livros...)
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