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Sei que os centros comerciais têm muito má fama por entre quem gosta de ler Borges e outros que tais. Pois eu gosto de ler Borges — e muito mais — mas vou muitas vezes a um centro comercial. Defeito de fabrico, talvez, ou apenas comodismo. Ou o pior de todos os pecados para a gente da literatura: consumismo. Sim, sou um pouco consumista, e o que me salva será (ou nem isso me salve, talvez) que o meu grande consumo seja o de livros. Mas depois, ó meu Deus, sigo a minha mulher pelas lojas de roupa e fico à porta às vezes…
Mas não deixo de ser uma figura curiosa: sigo-a, claro está, às vezes a empurrar o carrinho de bebé — mas quantas vezes não o faço com um livro na mão. Hoje, por exemplo, fomos a um outlet ali para os lados de Vila do Conde (andamos cá por cima…), e no meio das famílias a aproveitar o sol de Agosto no meio do shopping (ai, que nem eu resisto à tentação de ser sarcástico), lá encontrei uma pequena feira do livro, cuja existência talvez seja desprezada pela turma literária, mas não deixa de ser sinal de que há mais coisas entre as quatro paredes do shopping do que sonha a tua vã filosofia, ó Horácio (ou lá quem és).
E foi assim que comprei dois livros: um livro sobre cidades, de Jacques Le Goff, e um livro de Jorge Luis Borges, Este Ofício de Poeta (traduzido por Telma Costa, para a Teorema — ai de mim desprezar os tradutores!).
Depois, lá andei por entre as lojas, as músicas, os bebés (um deles, o meu), a lei o primeiro dos ensaios — ou lições — do Grande. O primeiro ensaio chama-se O Enigma da Poesia e como diz Borges, encontramos poesia em todo o lado — às vezes, diz Borges, até nos grandes escritores. E por entre as linhas do argentino, que foi descrevendo como o “mar escuro como vinho” de Homero era, na altura do épico grego, uma mera metáfora batida, e hoje é outra coisa, são todos os séculos que nos separam de Homero nessa simples expressão — e como um poema em inglês antigo, uma simples descrição da natureza numa praia do mar do Norte no século IX hoje está enriquecida pelo tempo, talvez (acrescento eu) como o vinho que é como o mar da nossa imaginação homérica — dizia eu, por entre as linhas do argentino ia encontrando a tal poesia que não podemos descrever, mas sabemos bem o que é.
Enfim, como vêem, há mesmo poesia em todo o lado, até num banal shopping em Vila do Conde, um outlet ainda por cima, e assim fui concordando automaticamente com as escolhas da minha mulher em termos de roupa, algo desligado do mundo, embora continuasse ali mesmo, no meio das lojas, com Borges na cabeça, a ler citações de poemas antigos, o livro nas mãos, sob o olhar curioso de quem não está habituado a andar no meio da multidão com um livro na mão.
Tenho duas:
Assim, como? Sem certezas. É mais giro, mais interessante, mais excitante escolher um lado e defendê-lo com unhas e dentes, verve e retórica, argumentos bombásticos, à-partes acutilantes, ironias venenosas — sem estar na liça para chegar a conclusões, apenas para lutar, por desporto. Ora, este blogue não é assim. Defende algumas coisas, mas não quer defender um lado só porque sim. É um blogue que pode mudar de opinião. É um blogue que tenta descobrir e chegar mais perto da verdade, sem ser teimoso só porque sim. É um blogue ponderado — e haverá algo mais perigoso do que a ponderação, por esta esfera de excitação que são os blogues e companhia?
Este blogue tenta não ser simplista, mas gosta de procurar explicações simples e verdadeiras. Gosta de ir ao básico, se for preciso, e não estar enredado em discussões muito esmiuçadas, mas com pés de barro.
Acima de tudo, este blogue tenta ter menos certezas do que o habitual, porque hesitar em chegar a conclusões é uma higiene mental muito útil nestes ambientes bloguísticos de grandes certezas e grandes disparates. Este blogue poderá ter convicções, método, ideias próprias, e defender isto tudo com unhas e dentes se necessário for. Mas certezas absolutas? Dificilmente.
Mas também não é um blogue que caia na tentação de ter a certeza que nunca chegamos a lado nenhum. É um blogue que defende a ciência, o espírito crítico, a curiosidade intelectual (e a outra, se for preciso), a liberdade, a democracia, e outros valores mais ou menos vagos. E é um blogue que gosta muito de literatura — e que sabe como a ciência e a literatura nem sempre se dão bem (mas deviam). No fundo, é um blogue que quer chegar a algum lado, mesmo que não consiga.
É um blogue — vejam só — optimista (num sentido muito preciso, que mais tarde se explicará) — e um blogue que gosta de contrariar, para testar as ideias e ver se elas se aguentam. Um blogue estranho, portanto.
O interessante, aquilo de que todos gostam, é de blogues que pensem exactamente como cada qual. Não gostam de sair da zona de conforto, de atacar a sua própria forma de pensar. Muito menos gostam de blogues que não tenham uma agenda, para usar a expressão inglesa. Enfim, este blogue andará calmo, mas saberá defender aquilo em que acredita — sem nunca andar à procura de conflitos, porque o que este blogue quer, no fundo, é aprender, porque este blogue saiu duma mente curiosa.
É tão fácil cair na tentação de bater na ciência. A Sábado publicou um artigo quase humorístico sobre estudos científicos que defendem teses opostas (Sábado, n.º 486, pp. 70-72). Ou seja, a jornalista pega numa ideia comum muito difundida ("os cientistas hoje dizem uma coisa, amanhã outra — logo, não podemos confiar na ciência") e quer confirmá-la, divertindo os leitores à custa dos doidos dos cientistas. Estes, para quem lê o artigo, parecem baratas-tontas à procura de respostas, sem nunca as encontrar (o que até tem um fundo de verdade, mas não da forma que a jornalista pensa). Bater na ciência é fácil, porque a ignorância científica fica reconfortada ("afinal, não sou ignorante; estes cientistas é que não percebem nada").
Sim, é verdade que é possível encontrar estudos para todos os gostos. Por isso é que a verdadeira ciência obriga a estudos replicáveis, nunca se baseia num só estudo para chegar a conclusões, exige uma série de estudos de confirmação para que uma nova teoria seja aceite pela comunidade científica, sabe que há sempre estudos atípicos, há estudos bem-feitos e estudos mal-feitos, e por aí fora.
O que um jornalista poderia fazer era pegar num dos tópicos referidos neste artigo e analisar os vários estudos, perceber quais são os melhores, que meta-análises se fizeram, quais são as conclusões mais sólidas a que podemos chegar neste momento (se as houver), o que diz a comunidade científica sobre o assunto, quais as razões para estes resultados díspares, terá havido problemas nas experiências contraditórias, etc.
Podia até escrever um artigo semelhante, com estes exemplos, mas que explicasse por que razão estes resultados contraditórios aparecem e que métodos usa a ciência para progredir neste emaranhado. Porque a ciência consegue progredir. Quem a ignora (e faz gala disso) é que não sabe o que perde.
Pilha de livros!
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