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Quando tenho um livro para ler, sinto uma coisa parecida com gulodice. Aliás, acho que é mesmo gulodice. Por exemplo, tenho ali na estante A Tale of Two Cities, que nunca li (imperdoável, eu sei!), e que me apetece ler agora, de forma absurda, apesar de ter comprado o livro no século passado. Quero ler, olho para as páginas, e vem-me água à boca ao pensar no que tenho à frente, nas personagens, nas histórias, nas palavras, no mundo inteiro que me vai aparecer de repente.


Sinto a mesma gulodice perante as cidades: as ruas, os recantos, as histórias, as pessoas, as linhas de metro, as luzes nas janelas, os sons — e tudo o resto. Gosto de ler como gosto de mergulhar em cidades, reais ou imaginárias. É tudo uma questão de gulodice.

 

Há livros e cidades que são propícios para esta gulodice — Londres e Dickens, para começar. Depois, há outros livros que apelam mais ao prazer de sentir as linhas que percorrem o mundo, em que este se divide, livros que são pérolas, diamantes, que arrasam o mundo e mostram o avesso, a estrutura, a simplicidade que está por trás e que é o objecto verdadeiro da inteligência (e não tanto da gulodice) — vem-me à cabeça Borges. Em todas as cidades também há disto, nas avenidas principais, nos rios, nos mapas do metro, no nome e nos monumentos, em tudo o que realça e faz perceber a cidade num golpe de inteligência: o esqueleto das cidades, o próprio nome «cidade» e não o nome próprio de cada uma delas: «Lisboa», «Londres», «Liubliana». Mas todas as cidades resvalam para a tal profusão saborosa, mesmo as que se criam como planos exactos (lembro-me de Brasília, da Baixa, do Parque das Nações — tudo sítios que mais tarde ou mais cedo são tudo menos o plano inicial). E os livros, mesmo os que parecem pérolas de inteligência depurada, também são sempre mais do que parecem. Um conto de Borges arrasa o mundo e de repente enreda-se em livros que não existem, bibliotecas infinitas, personagens reais, enciclopédias imaginárias e por aí fora. As Cidades Imaginárias de Calvino são uma espécie de culminar dos dois tipos de livros/cidades, com as cidades destiladas nas suas várias formas, até criar uma radiografia da profusão urbana, invocando-a de forma exemplar — e é por isso que acho o livro saboroso.

 

Entre a gulodice daquilo que adivinhamos e as linhas gerais que tentamos compreender, estão também as pessoas. Tentamos categorizar, compreender, identificar todas as pessoas que conhecemos — é natural e essencial. Tentamos perceber os traços gerais, saber qual é a descrição resumida em que todos os nossos amigos e conhecidos cabem, qual o seu título, o seu género: será que aquela pessoa é um romance, uma pequena vila, um livro de poesia, uma metrópole, um policial, um bairro, uma casa sempre igual ao pé da praia, umas águas-furtadas no centro da cidade? Ora, obviamente, todos somos tudo isso.

 

Isso, e muito mais: temos sempre recantos esconsos, coisas que nem imaginamos, histórias, ruelas, personagens secundárias que quase não aparecem mas explicam muito, bairros malditos, capítulos a mais, palavras que só lá estão pelo prazer de lá estarem, linhas de metro que não vão dar a lado nenhum, noites imensas e praças calmas que ninguém conhece, com jardins e um café calmo, ao fim da tarde.

 

publicado às 15:01

Borges

08.03.14

[Já há muitos meses... Borges num Centro Comercial]

 

publicado às 19:38

Sei que os centros comerciais têm muito má fama por entre quem gosta de ler Borges e outros que tais. Pois eu gosto de ler Borges — e muito mais — mas vou muitas vezes a um centro comercial. Defeito de fabrico, talvez, ou apenas comodismo. Ou o pior de todos os pecados para a gente da literatura: consumismo. Sim, sou um pouco consumista, e o que me salva será (ou nem isso me salve, talvez) que o meu grande consumo seja o de livros. Mas depois, ó meu Deus, sigo a minha mulher pelas lojas de roupa e fico à porta às vezes…

 

Mas não deixo de ser uma figura curiosa: sigo-a, claro está, às vezes a empurrar o carrinho de bebé — mas quantas vezes não o faço com um livro na mão. Hoje, por exemplo, fomos a um outlet ali para os lados de Vila do Conde (andamos cá por cima…), e no meio das famílias a aproveitar o sol de Agosto no meio do shopping (ai, que nem eu resisto à tentação de ser sarcástico), lá encontrei uma pequena feira do livro, cuja existência talvez seja desprezada pela turma literária, mas não deixa de ser sinal de que há mais coisas entre as quatro paredes do shopping do que sonha a tua vã filosofia, ó Horácio (ou lá quem és).

 

E foi assim que comprei dois livros: um livro sobre cidades, de Jacques Le Goff, e um livro de Jorge Luis BorgesEste Ofício de Poeta (traduzido por Telma Costa, para a Teorema — ai de mim desprezar os tradutores!).

 

Depois, lá andei por entre as lojas, as músicas, os bebés (um deles, o meu), a lei o primeiro dos ensaios — ou lições — do Grande. O primeiro ensaio chama-se O Enigma da Poesia e como diz Borges, encontramos poesia em todo o lado — às vezes, diz Borges, até nos grandes escritores. E por entre as linhas do argentino, que foi descrevendo como o “mar escuro como vinho” de Homero era, na altura do épico grego, uma mera metáfora batida, e hoje é outra coisa, são todos os séculos que nos separam de Homero nessa simples expressão — e como um poema em inglês antigo, uma simples descrição da natureza numa praia do mar do Norte no século IX hoje está enriquecida pelo tempo, talvez (acrescento eu) como o vinho que é como o mar da nossa imaginação homérica — dizia eu, por entre as linhas do argentino ia encontrando a tal poesia que não podemos descrever,  mas sabemos bem o que é.

 

Enfim, como vêem, há mesmo poesia em todo o lado, até num banal shopping em Vila do Conde, um outlet ainda por cima, e assim fui concordando automaticamente com as escolhas da minha mulher em termos de roupa, algo desligado do mundo, embora continuasse ali mesmo, no meio das lojas, com Borges na cabeça, a ler citações de poemas antigos, o livro nas mãos, sob o olhar curioso de quem não está habituado a andar no meio da multidão com um livro na mão.

 

publicado às 00:21


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