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Sobre quando tanta gente se juntava para ver televisão que a casa quase vinha abaixo. Sobre o dia em que a minha avó foi ao primeiro concurso da RTP. Sobre quando fui ver o 1, 2, 3 ao vivo. Sobre o homem na Lua, o 25 de Abril, o dia em que nasceu a SIC, como deixei uma escola em polvorosa num dia de Setembro — e mais umas quantas coisas. Tudo à volta desse ecrã da nossa vida.

 

As histórias da televisão ouvimo-las quase sempre da boca de quem lá estava, dentro da pequena caixa. Mas também há o outro lado: as histórias daqueles que viam esses programas — sim, todos nós que vivemos estas últimas décadas com essa caixa na sala.

 

Já é difícil imaginar que houve uma altura em que ver imagens de pessoas em movimento numa pequena caixa era qualquer coisa de extraordinário. O meu avô conta-me que a sua mãe, a minha bisavó Manuela, pedia por vezes para desligarem a televisão para que as pessoas que lá estavam dentro descansassem um pouco. Rimo-nos hoje, mas haverá o dia em que os nossos bisnetos se rirão dos disparates que diremos sobre tecnologias que hoje ainda nem existem…

 

Pois essa caixa onde pessoas em ponto pequeno se esforçavam para nos oferecer teatro, música, notícias, humor e tanto mais — essa caixa tem muito que contar.

 

O primeiro televisor da terra: um dia a casa vem abaixo

Sempre ouvi as histórias do meu avô sobre tanta coisa e uma dessas histórias é sobre a primeira televisão da Atouguia. Foi comprada, para venda, por um daqueles comerciantes que iam mudando de ramo ao sabor do vento. O meu avô e uns amigos, de vez em quando, lá iam ver aquela grande novidade.

 

Perante aquele espanto e perante o grupo de gente que começava a juntar-se para ver televisão na loja, o meu avô virou-se para um amigo e disse-lhe: se comprássemos isto e vendêssemos bilhetes, se calhar tínhamos negócio. Entusiasmaram-se e depressa tinham uma sala onde todos podiam assistir ao que passava durante a noite, desde que pagasse 10 tostões. Imaginem o velho televisor a preto-e-branco e bancos para a assistência. Hoje, temos a televisão no bolso. Nessa altura, ver televisão era um espectáculo com a sua própria sala.

 

Ora, a certa altura, o meu avô começa a ter algum receio: talvez aparecesse por lá a Inspecção dos Espectáculos e tinham o caldo entornado. Decidiram passar o negócio para quem estava livre de chatices com inspecções: montaram a televisão num primeiro andar duma casa junto à igreja e todo o lucro ia para a paróquia. A terra continuou a ver televisão em conjunto e ninguém se chateava.

 

copiadertpmariahelenavarelaOra, um certo dia, Maria Helena, uma das locutoras da RTP, anuncia para o dia seguinte a transmissão do filme português Rosa do Adro. Pois depressa todos na terra já sabiam da novidade e todos lá estariam, dez tostões na mão, para ver o filme.

 

Seria uma enchente de deitar a casa abaixo! Literalmente: o meu avô temia pelo chão de madeira daquele primeiro andar. Ele e o amigo lá andaram o dia todo a pôr estacas — o meu avó lembra-se, aliás, do número exacto: 27 estacas. Não, não seria nessa noite que a televisão seria o motivo duma tragédia nacional.

 

À hora marcada, lá estava a terra em peso. Sentados, em pé, pendurados na janela, todos esperavam pela Rosa do Adro.

 

Esperam e esperaram — e nada.

 

Por fim, aparece Maria Helena a informar o país que, por motivos imprevistos, não seria possível transmitir o filme.

 

A sala em peso fez um «ohhh». Mas ninguém arredou pé: lá ficaram a ver o que deu nessa noite — o meu avô é que não se lembra o que foi. Imagino que estivesse atarefado a ver se o chão aguentava…

 

Parece que estas salas do televisor eram comuns a muitas terras. Poucos quilómetros ao lado, os meus avós Leonor e Faustino trabalhavam no Stella Maris de Peniche e garante-me o meu pais que por lá também havia a Sala da Televisão, onde se via televisão como hoje vemos cinema.

 

A minha avó no primeiro concurso da televisão

O ano de 1957 foi um ano especial para mim: não só me nasceu o pai, como tive uma avó na televisão. Conta o meu avô que a minha avó Gisela foi ao primeiro concurso da RTP. Estive à procura do nome e ou bem que é Quem Sabe, Sabe ou Veja se Adivinha. Ambos foram apresentados por Artur Agostinho. (Por curiosidade, encontro pelos labirintos da Internet a curiosa informação que do concurso Quem Sabe, Sabe saiu um concorrente que viria a ser famoso com outro programa: o Pe. Raúl Machado, das Charlas Linguísticas. A televisão estava a dar os primeiros passos e até ir a um concurso era maneira de entrar no meio…)

 

A minha avó chegou quase até ao fim, mas saiu de lá sem nada — porque não sabia donde era o famoso presunto. Não sabia ela e não sei eu: para mim, presunto é de toda a península! O meu avô lá me explicou que presunto que é presunto só pode ser de Chaves. A minha avó foi à televisão no primeiro ano de vida deste novo mundo e saiu de lá a saber donde vinha o bom presunto — mas sem o prémio.

 

botilde2Ah, os concursos televisivos… Uma das minhas primeiras recordações é ver o 1, 2, 3. Não só na televisão, mas também ao vivo: ali por volta de 1985, fui com os meus pais assistir à gravação do mais famoso concurso da televisão portuguesa.

 

Lembro-me pouco da gravação. Lembro-me muito mais de estar a assistir em casa à emissão e de ficarmos todos contentes quando a câmara nos mostra, a um canto, a bater palmas — o que andámos a fazer durante uns minutos antes de começar a gravação, para depois a pós-produção poder encher chouriços sempre que necessário.

 

(Mas também me lembro de andar no metro escuro de Lisboa, de olhar para uma cidade bem mais suja do que hoje, provavelmente por causa dos tubos de escape sem catalisador…)

 

A História em directo: o Homem na Lua, o Zip, Zip e a Revolução

Os meus pais lembram-se de ver o Homem a chegar à lua. A minha mãe tinha 9 anos quando Neil Armstrong chegou à Lua e deu o tal pequeno passo que no fundo era um passo de gigante para toda a Humanidade (disse ele). Conta-me ela que, lá na Atouguia da Baleia, viu vários velhotes a vir para a rua olhar para o céu, a ver se viam os americanos vestidos de astronautas a dar saltos na cara da Lua. Como não viam nada, muitos declararam imediatamente que aquilo era tudo uma grande tanga.

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Pois, se o Homem na Lua marcou a época para quem olha para os livros de história, sempre que falo com alguém sobre esses anos, quase todos referem o Zip, Zip. Diz-me o meu avô que nessa altura já havia mais televisões: nas tabernas e mesmo em muitas casas. A tal Sala da Televisão ao lado da igreja continuava a existir e a ter gente a aparecer, todos os dias, às transmissões, mas devagar esse hábito comunitário começou a desaparecer e a televisão invadiu a privacidade dos serões das casas portuguesas.

 

Mas reparem: se virem bem, a televisão uniu-nos. O país todo viveu uma revolução em directo. O 25 de Abril terá sido o primeiro acontecimento da nossa História que os Portugueses viveram ao mesmo tempo, sem esperar pela chegada de notícias pelo telégrafo. Sim, porque a televisão uniu a nação como nada até então tinha conseguido. No século XIX e durante muitas décadas do século XX, muita gente vivia sem ter grandes notícias do que se passava na capital. Pois a televisão trouxe-nos a política para dentro de casa — e os Portugueses, como poucos, assumiram o telejornal e as notícias como hábito e mesmo, diga-se, como vício. Ficámos cara a cara com os políticos, começámos a ralhar com eles, a indignar-nos com o que ouvíamos. Lembro-me de ver o meu avô Faustino a reclamar com o que alguma personagem da vida nacional estava a dizer. Imaginem isso um século antes… No festim de desaguisados partidários em que entrávamos com entusiasmo, a televisão pôs-nos a todos na mesma sala — e apesar de acabarmos a ralhar uns com os outros, estávamos todos juntos a olhar para o ecrã, pelo menos durante o telejornal. E, claro, víamos as mesmas séries, os mesmos concursos e, pela primeira vez, começámos a ouvir as mesmas palavras, com o mesmo sotaque, todos os dias.

 

Não me posso lembrar da revolução, claro está, mas já vi as gravações tantas vezes que é quase como se me lembrasse. Ali por volta de 1997, fiz um trabalho escolar de muitas páginas sobre o acontecimento e fui com uma amiga minha aceder à internet no Instituto Superior Técnico (onde estudavam umas primas dela), para conseguirmos descarregar vídeos, imagens e documentos — sim, mas isto já pertence à história da Internet, não da televisão. Fica para outros festivais de nostalgia, em que entra o barulho dos modems…

 

Do que me lembro bem, isso sim, foi de ver a reconstituição que a SIC fez pelos 25 anos da Revolução, em 1999, transmitindo os episódios à hora exacta em que aconteceram.

 

Foi um tempo de história, de paixão, de humor, de canções e paredes escritas. E eu acabei por ficar com memórias desse tempo que não vivi muito por culpa da televisão.

 

O Incêndio do Chiado e uma capital de todos nós

A mercearia da minha avó Leonor e do meu avô Faustino foi um dos sítios onde cresci: ia para lá enquanto os meus pais iam trabalhar e, quando já podia ir sozinho para a escola, passava por lá muitas vezes — e brincava no largo à frente da mercearia, com um chafariz que ainda hoje me deixa enternecido. A mercearia em si foi mudando ao sabor dos hábitos do país e das regras inscritas nas leis — quando eu era pequeno tinha um ar bem mais antigo, de mercearia a sério. Hoje em dia é um mini-mercado.

 

Arquivo da CML.

Todos almoçávamos lá muitas vezes, numa cozinha que a minha avó ainda tem. Pois cheguei lá um dia, e na televisão que estava em cima do frigorífico, uma coluna de fumo a subir pelos telhados de Lisboa — o Incêndio do Chiado. A minha família olhava para a televisão em silêncio. Lembro-me de ir visitar o Chiado algum tempo depois (não sei quanto) e ver aquilo através dum passadiço de ferro que foi instalado — aquela ferida na cidade está-me marcada na memória.

 

E, com isto, lembro outro facto curioso: por via da televisão (e também, claro, da rádio) todos os Portugueses conhecem Lisboa — ouvimos os nomes das ruas e avenidas, conhecemos os bairros, sentimos esta cidade como nossa — nem que seja por ouvirmos as notícias do trânsito de manhã. A alguns lisboetas mais ciosos da sua aldeia, isto faz confusão: mas é o que acontece com as capitais — fazem parte da paisagem mental de todos, não só de alguns.

 

Rosa Mota e outros que tais

Entre a medalha de ouro de Rosa Mota e a medalha de ouro seguinte passaram oito anos. Para mim, foram esses os anos em que comecei a reparar nas coisas. Quando, em 1992, vi os meus primeiros jogos olímpicos (que tiveram alguma responsabilidade na pancada catalã de que sofro), na minha cabeça a última medalha de ouro portuguesa era coisa muito antiga: tinha sido na década passada, em 1988!

 

Em 1996 já eu tinha 16 anos. Estava no secundário. Estava no quarto e lembro-me de ficar banzado com aquela ultrapassagem final, a Fernanda Ribeiro a ultrapassar a atleta chinesa (que momentos antes parecia ter aquilo ganho). Saltei da cama (sim, tinha televisão no quarto) e fui ter com os meus pais que estavam também felizes a olhar para o ecrã — são estranhas alegrias irracionais, mas alegrias, seja como for. Tal como também foi um pouco irracional a alegria com que em 1994 tínhamos saudado o falhanço de Baggio, que deu o Mundial de 1994 ao Brasil. Na altura, tinha as cadernetas e olhava para aquilo como um jogo de cromos. Portugal? Ah, eu sabia que Portugal nunca ia a esses campeonatos. Tinha de me contentar com o Brasil.

 

A Eurovisão, os Jogos Sem Fronteiras, a Chuva de Estrelas…

A voz do apresentador por telefone, as palmas, as canções em línguas estranhas… O grande Festival Eurovisão da Canção! Só o nome cheira a Anos 60, mas ele lá anda, a cambalear, mas ainda vivo.

 

luciaAquilo é tudo uma grande infantilidade, mas era muito nosso. Víamos aquilo em dois momentos: a canção portuguesa e a votação. Lembro-me muito bem do Quando Cai a Noite na Cidade e, depois, da Lúcia Moniz e seu cavaquinho. É um pouco ridículo e também comovente pensar no entusiasmo que este país sentiu por ficar em sexto lugar num concurso europeu de más canções e piores fatiotas. Mas, que querem?, a vida é assim.

 

Pelo menos os Jogos Sem Fronteiras assumiam a brincadeira muito a sério: aquilo eram jogos de gente adulta vestida de bonecos. Era mesmo assim — e era muito bom. Tinham coisas estranhas — como o facto de Portugal ganhar muitas vezes. E também havia isto: o País de Gales participava e a Amadora estava sempre lá. E Peniche, vejam bem.

 

jsfDiga-se que, apesar da bonecada, era um jogo com muita classe porque tinha o Eládio Clímaco a apresentar e andava a mostrar cidades do centro da Europa aos portugueses. Foi assim que soube que havia terra com nomes como Brno. Ora, eu sempre quis ir a Brno!

 

Parece que ficámos mais velhos, todos: hoje ninguém ficaria assim muito contente por passar uma noite a ver galeses vestidos de galinha a saltar para dentro de piscinas. Já nem aguentamos a Eurovisão, vejam lá bem! Parece que o país saiu da adolescência — ou se calhar fui eu.

 

O nervosismo do primeiro dia da SIC

Ora, ali por volta de 1992… Não, não foi por volta coisa nenhuma: foi mesmo no dia 6 de Outubro de 1992. Lembro-me do dia porque tinha trazido para casa um recado na caderneta e estava com medo de mostrar aos meus pais.

 

E, assim, às quatro da tarde estava eu sentado na cama dos meus pais, nervoso, e decidi distrair-me vendo a primeira emissão da SIC. A Alberta Marques Fernandes lá apareceu e o mundo mudou. A SIC trouxe muita coisa, incluindo portentos de qualidade como o Big Show SIC e ainda os primeiros seios da televisão portuguesa com o famoso Água na Boca. Ah, para os miúdos entre os 12 e os 16 anos, foi uma revelação. Mas não sejamos mauzinhos: também trouxe tanta coisa de bom…

 

Meses depois, foi a vez da TVI, mas dessa não me lembro. Não tinha recado na caderneta. Mas lembro-me que, anos depois, nos primeiros tempos da faculdade, vivi uns meses na casa da prima Raquel, uma senhora familiar do meu avô que tinha sido telefonista na RTP. Ela contava-me histórias imensas e para ela as televisões privadas eram clubes inimigos. Vestiu a camisola da RTP até morrer. Ela contava-me que adorava o Herman José — até ao dia em que ele se passou para a SIC e ela nunca mais mais o perdoou.

 

Crescer entre o Roque Santeiro e a Ally McBeal

As telenovelas, claro. Vejo um clipe qualquer do Roque Santeiro e cai-me a infância toda em cima. Mas não posso ver durante muito tempo, porque vejo como as coisas eram bem diferentes na altura e não necessariamente para melhor. Pois experimentem procurar vídeos de telenovelas portuguesas dos anos 80. Preparem-se para uma grande surpresa.

 

Roque Santeiro… Tieta… A certa altura os meus pais fizeram o desmame das telenovelas brasileiras e mudaram-nos a todos lá em casa de armas e bagagens para a ficção nacional. Assim, lembro-me bem da telenovela Pedra Sobre Pedra, mas já não vi clássicos como o Rei do Gado ou aquela telenovela meio italiana em que uma actriz que fazia as delícias dos adolescentes nacionais andava sempre a chamar pelo seu Matteo.

 

transferirEnfim, essas memórias acabam por ser acima de tudo das músicas dos genéricos: como a música da telenovela Palavras Cruzadas. Ou então de séries como Duarte & Companhia. Esta última, diga-se, aguenta-se à bronca do tempo bem melhor que as telenovelas.

 

O YouTube e a RTP Memória são um perigo: não convém andar muito por lá. Podem muito bem destruir doces ilusões. Para quem acha que antigamente é que os programas eram bons, sugiro algumas experiências. Por exemplo, vejam a transmissão do primeiro programa a cores (um dos Festivais da Canção). Reparem no público a reclamar porque alguém se enganara nas contas, os apresentadores a hesitar, deslizes saborosos mas que hoje seriam aproveitados para milhentas repetições no YouTube e para queixas infindas no Facebook sobre como esta gente não sabe apresentar um programa de televisão…

 

Sobre este efeito psicológico que nos leva a crer que antigamente é que era bom, ainda há uns tempos li um artigo que não consigo recuperar em que um jornalista explicava de forma muito concreta que os musicais de hoje da Broadway são incomparavelmente melhores do que os musicais de há umas décadas. Mas a memória melhora tudo e não reparamos. O mesmo se aplica a tanta coisa do que víamos, que nos parece muito bom porque nos apareceu à frente dos olhos nos melhores anos (que, aliás, se bem me lembro, é o nome duma qualquer série juvenil de há umas décadas — uma espécie de Riscos antes dos Riscos, que por sua vez foram um Morangos com Açúcar antes dos Morangos com Açúcar, mas com mais «problemas da vida real»).

 

Sim, a nostalgia é perigosa. Mas também é bom cair nesse pecado de vez em quando. Quem trabalhava na televisão fazia o melhor que sabia com meios muito diferentes dos de hoje. Acho que temos todos de agradecer a actores, apresentadores, guionistas. Eu, por mim, declaro: nunca teria visto tanta coisa (tanto filme, tanta peça, tanto debate) sem a televisão. Desde telenovelas a programas como Acontece… (Sim, às vezes via coisas dessas para matar a fome de livros…) A televisão foi muito importante para um rapaz ensimesmado como eu. Sim, não foi só a televisão, nem foi principalmente a televisão. Foram os livros, os jornais, a escola, as conversas — disso falaremos noutro dia. Agora, o que quero sublinhar é que também foi a televisão que me mostrou a mim o mundo — a mim e a todos, arrisco dizer.

 

ally-mcbeal-537595Não posso deixar de falar das séries do fim da adolescência da minha geração: séries como Quantum Leap, o Bocas, a Ally McBeal, o HR, o Seinfeld e outras que tais… No primeiro dia da faculdade, um puto a olhar para os alunos mais velhos sem saber o que fazer, lembro-me de ouvir umas alunas do último ano a falar do último episódio da Ally McBeal. E eu a pensar: ah, então é disso que falam os estudantes universitários!

 

Note-se: muito do que vimos ao longo destas décadas foi legendado. Por isso, vá lá, façam-me um favor e agradeçam também aos tradutores e legendadores…

 

Herman e o 11 de Setembro

Na faculdade, por vias da Marta, uma prima que trabalhava na SIC, conseguia por vezes convites para ir com os meus amigos assistir às gravações do Herman SIC. E lá íamos, todos contentes, até Paço d’Arcos, onde nos maravilhávamos com todo o ambiente das gravações de televisão.

 

Em Agosto de 2001, telefonei à Marta para saber se podíamos ir assistir à gravação da semana seguinte. Ela diz-me que não podia falar, porque tinha a redacção toda de pantanas por causa dum acidente nas obras da construção da A8, em que morreram alguns trabalhadores. Eu que lhe telefonasse na semana seguinte.

 

Deixei passar umas semanas. Decidi telefonar-lhe de novo numa bela manhã de Setembro, mas cá para mim, meio a sério meio a brincar, pensei: é melhor ligar a televisão para saber se houve mais algum acidente ou algo do género.

 

Pois, ligo a televisão e vejo uma das Torres Gémeas a deitar fumo. E, pouco depois, um avião a lançar-se contra a outra torre.

 

Deixei o Herman para depois.

 

Estava em casa. Quando as torres caem, recebo uma chamada do meu pai: «Tu estás a ver isto?» — e desligou. Na loja de electrodomésticos dele, os aviões batiam repetidamente contra as torres, multiplicados pelas dezenas de televisões em cima umas das outras — enquanto toda a gente, parada, olhava pela montra ou dentro da loja.

 

Telefono para a escola da minha mãe e peço para falar com ela. «Mãe, a América está a ser atacada!» Sim, fui um pouco alarmista, mas naquele momento era o que me apetecia dizer. Os medos da Guerra Fria voltaram todos e ela vai pela escola a chamar toda a gente, deixando-me com o telefone pendurado a ouvir as conversas nos corredores, onde professores e alunos se juntavam, sem saber se vinha aí a III Guerra Mundial.

 

Humor de Perdição

O Herman… Sim, o humor sempre foi das razões para nos agarrarmos ao pequeno ecrã — e o Herman é o gigante incontornável. Lembro-me de ouvir a música do Casino Royal, de me rir com as piadas dos programas dele dos Anos 80, de assistir, bem mais velho, ao Herman Enciclopédia e gostar muito daquilo, uma bela amostra da explosão do humor nacional que veio depois. E recordo uma certa passagem de ano apenas e só por causa do Crime da Pensão Estrelinha. 

 

O Herman também dividiu as gerações: os meus avós nunca foram muito de gostar daquele humor, mas os meus pais tinham-no como ídolo nos Anos 80. Já nos Anos 90, com a tal Enciclopédia, foi a minha geração a assumi-lo como seu. Não tínhamos ainda séries como o Paraíso Filmes nem o Gato Fedorento — agora, a verdade é que estes já pertencem mais à história da Internet, se virmos bem. Mas começaram na televisão, pois então.

 

A vitória de Portugal

Hoje, claro, vemos todos canais diferentes. E temos a internet, o YouTube, o Netflix, os blogues, o Facebook, as mensagens de telemóvel. Mas, de vez em quando, lá nos juntamos todos, como ainda há poucos meses, para assistirmos à improvável vitória de Portugal no Euro 2016. Foi assim que ouvi todo o meu prédio a gritar e a Zélia, eu e o Simão nos pusemos aos saltos os três, ridículos e felizes, como todo esse país que por um dia se uniu de novo à volta da televisão para ver um feliz jogador desengonçado a atirar uma bola para dentro da baliza. E depois desligámos todos as televisões e viemos para a rua.

 

Mas, é verdade: hoje, ligo pouco aos nossos velhos canais de televisão. Gosto mais de andar a escrever por aqui ou a navegar nos vídeos do YouTube — ou, claro, a ler um livro ou a trabalhar, que é um passatempo bastante intensivo — e há as séries e os filmes que podemos ver sem ligar a horários.

 

Às vezes, noto: havia quem reclamasse que a televisão era um meio de comunicação com pouca interacção, que nos iria deixar a todos estúpidos. Enfim, hoje têm à frente um mundo onde as pessoas comentam, interagem, ouvem e reclamam e os mesmíssimos reclamadores lá vêm dizer que isto com tanta interacção não vai lá, toda a gente comenta, toda a gente escreve no Facebook, toda a gente fala e diz o que lhe apetece — que horror! Enfim, há quem nunca esteja contente — e há quem ache que o mundo ou é perfeito ou não vale a pena.

 

Convém não menosprezar o poder da nostalgia, do que passa e não volta. Há quem confunda a emoção que sentimos ao olhar para trás com o valor absoluto das coisas, como se o passado fosse necessariamente mais genuíno e melhor. O meu filho dá-de ter memórias do que havia no tempo dele e também há-de chorar o fim de uma ou outra tradição. Como será no dia em que acabar o canal Panda? E talvez um dia ele escreva um texto num qualquer sistema que ainda não há, com saudade dos dias em que ouvia as músicas dos Caricas, que agora irritam os ouvidos dos pais…

 

A televisão lá continua, com muitos canais, em muitos ecrãs — e venha ou não a acabar, estilhace-se ou não em mil canais, faz parte das nossas memórias, faz parte das vidas de todas as gerações que por cá andam: o meu avô lembra-se do dia em que a minha avó foi à televisão, os meus pais recordam enternecidos o Zip, Zip e o Tal Canal e eu lembro-me do Vitinho a mandar-me dormir, da música do 1, 2, 3, do arranque da SIC com medo de mostrar o recado à minha mãe, do Dartacão — que por acaso o meu filho também vê e de tudo o resto que vivemos a olhar para um ecrã. E essa gente da televisão lá continua, nessa caixa que intrigava a minha bisavó, a fazer-nos um pouco mais felizes nem que seja por uns minutos e nem que seja à força dum golo marcado nos últimos minutos dum jogo contra a França.


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