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Hoje fui à Bertrand dum centro comercial qualquer. A Bertrand é uma rede de livrarias simpática, mas, enfim, para mim tem um defeito grande: a secção de livros estrangeiros parece uma daquelas estantes nos hotéis com livros muito usados e muito maus para os clientes estrangeiros poderem pegar, ler à beira da piscina e voltar a pôr no sítio (e os estrangeiros, claro, fazem isso mesmo). 

Ia com o meu filho e, curiosamente, foi a mesma Bertrand onde há uns meses encontrei uma galdéria que me deu uns bons meses de diversão e um livro num passatempo do Sapo (quem só agora encontrou este blog, peço encarecidamente que siga o link, para não ficar a achar o pior aqui do vosso blogueiro).

 

Desta vez, ia com o carrinho de bebé à frente e acabei por não conseguir ver nada, porque o S., normalmente muito bem comportado, decidiu começar num berreiro, que talvez tivesse a ver com o facto de não lhe ter dado um livro para a mão. Mas não podia... Só faria uma coisa dessas se fosse comprar o livro, e hoje não queria comprar nada. 

Portanto, entrei e sai com o miúdo aos berros. Mas, como era a mesma loja da tal galdéria, pus-me a matutar no blog. É coisa que, agora que ando nestas más vidas, me acontece às vezes. Resultado, lembrei-me dum episódio de há alguns anos, na Bertrand do Vasco da Gama, quando ainda não havia Fnac e a Bertrand ficava onde é hoje o Gato Preto. Fui a essa Bertrand tantas vezes que me lembro da disposição da loja como se ainda existisse...

Pois, estava eu a folhear livros quando entra uma rapariga com um rapaz atrás, que diz alto e bom som: "não me faças vir aqui, que eu nem com o cheiro posso!"

Que cheiro era esse? O dos livros, claro. O rapaz não podia nem com o cheiro desses objectos maléficos.

 

Olhei para cima por reflexo para ver o casal. Ela gostaria alguma coisa de livros, para arrastar o namorado até ali, e tinha aquele ar paciente de quem não era a primeira vez que passava por aquela vergonha. O rapaz parecia perfeitamente normal, mas bastante divertido em ser um blasfemo naquele tempo da livralhada. Sorri. Ali estavam duas personagens dum romance qualquer: "O Rapaz que não gostava de livros" ou algo assim... Seria uma vingança simpática: "Ai não gostas do cheiro? Então vou-te enfiar num livro que até andas de roda." Claro que não tinha nem tempo nem talento para tal empreendimento, mas a ideia fez-me, de facto sorrir.

 

Imaginei as cenas complicadas com inúmeros professores de português a tentarem enfiar literatura naquela cabeça. Imaginei discussões com a namorada, a tentar chantangeá-lo para que ele lesse o que é bom. Imaginei enredos de comédia romântica, com encantos e desencantos, tudo regado com boa literatura. Enfim, estive ali a delirar um bocado. 

 

Olhei em redor. Não tinha sido o único a ouvir o dislate. Algumas pessoas folheavam livros, passavam os dedos pelas lombadas, estavam com aquela cara série de devotos, e viam-se os lábios mordidos, os olhos com um brilho de horror, uma tremideira nos dedos, como se estivessem a conter um gesto obsceno.

 

Vou ter de fazer uma confissão muito séria para um gajo com pretensões a ter um blog de livros: naquele momento achei o rapaz mais simpático do que aquelas pessoas um pouco atrapalhadas, a murmurarem uns quantos insultos àquela gentinha que não gosta de ler.

 

Porque, meus amigos, isto dos livros não é para nos andar a separar entre os bons e os maus. É para muita coisa, mas não devia ser para isso. Os rituais próprios da literarice, os lançamentos, a seriedade com que andamos a ouvir os escritores, quais sacerdotes, a forma muito triste como a nossa gente (a dos livros) fala do mundo como se o mundo fosse algo porco de que nos devíamos separar, porque o nosso reino não é, lá está, deste mundo — tudo isso faz muito pior à literatura do que o alegre rapaz que entra por uma livraria a dentro a declarar que nem do cheiro dos livros gosta.

 

Porque gosto demasiado de livros para andar a venerá-los. 

 

Não sei se fui claro. Seja como for, o rapaz merecia, de facto, o supremo castigo de ser enfiado num livro, como personagem. Tenho dito. Alguém que com engenho e arte faça o favor de me arranjar essa vingança, que agora não tenho tempo.

 


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