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Nada tenho contra os ebooks ou, em português de lei, os livros-e (ou seja, "livro Zé"). Tenho muitos desses e as estantes da minha casa agradecem: menos peso e menos pó.

Ah, mas às vezes tenho recaídas. Às vezes quero pegar em livros de papel, que possa snifar como antigamente. São recaídas raras: apenas umas trinta e duas vezes por semana.

Enfim, por isso lá fui eu, como acontece por vezes, passear com a minha mulher e meu pequeno filho para uma livraria. Um casal sossegado, aspecto minimamente respeitável, com um bebé. Eis se não quando——

Antes disso. Uma explicação dos antecedentes: há uns meses, encontrei um livro dum novo autor que não consegui parar de ler até chegar à última página (praticamente antes de chegar à fila para pagar). Chamava-se Maria dos Canos Serrados de Ricardo Adolfo (que nome!). Apesar de ler que nem um perdido, é relativamente raro ter uma reacção tão forte com um autor que não conheço. Isto da leitura também acaba por ir dar aos hábitos: quando sai um livro do Ian McEwan ou do Javier Marías (estou a tratá-los um bocado tu-cá-tu-lá, mas vocês compreendem-me), vou, de facto, a correr comprá-los. Às vezes, vou a correr clicar no site da Amazon... Depois, leio-os como se não houvesse nada para fazer (e há, ó se há). Esta reacção com um autor novo e desconhecido (para mim), isso é raríssimo. Pois o senhor Ricardo Adolfo conseguiu essa proeza. A Maria dos Canos Serrados é uma delícia (perigosa).

Como quem não quer a coisa, comecei à procura do primeiro romance dele, cujo nome não me lembrava, mas que haveria de encontrar. Não foi fácil. Passaram-se semanas. Fui esquecendo o entusiasmo. Não me lembrava já desse meu desejo quando entrei nessa livraria com a minha mulher e com o meu filho, há alguns dias.

Pois vamos muito bem os dois com carrinho de bebé pela livraria fora, quando vejo a capa. Por fim, encontrara o livro de que estava à procura. Aqui está:



Pois, exacto.

Lá fui com esta capa e este título, com mulher e filho, para a caixa. "Era aqui uma Galdéria, se faz favor. Mas não embrulhe, que vai mesmo assim."

Há vergonhas piores. Como, por exemplo, escrever um post num blogue que inclui as palavras "snifar" e "galdéria". Sinceramente.
(E, sim, foi este o melhor de 2013, para mim.)

A coisa começou simples: um blog, uns textos para os amigos. De repente, os amigos começaram a partilhar os posts. Pouco depois, alguns dos posts eram comentados por pessoas que nunca tinha visto ou de quem nunca ouvira falar. As pessoas pareciam gostar. Continuar a postar, a comentar, a sentir-se bem com toda aquela atenção. 

 

Alguns meses depois, arranjou os primeiros ódios de estimação. Alguns amigos mais dados a estas coisas deram-lhe pancadinhas nas costas: passara a um nível superior da blogaria nacional. Nenhum blogger é blogger se não tiver ódios e se não tiver seguidores fiéis que o protegem dos ódios e desencam nesses outros que bem merecem.

 

Continuou a escrever. De repente, já só vivia para o blogue. Um incidente no trânsito? Uma queixa inflamada no blog e os amigos a partilharem, a dizerem "é isso mesmo!", a clicarem no gosto como se não houvesse amanhã.

 

Uma senhora mais antipática a atendê-lo ao pequeno-almoço? Blogue com ela, disfarçada só pela via das dúvidas.

 

Um problema burocrático sem aparente solução? Blog com ele!

 

Um fremitozinho de poder passava-lhe pelos dedos e gostava de escrever cada vez mais e dispor dos outros, sujeitos como estavam à sua opinião inflamada e, acima de tudo, lida e partilhada por tantos e tantos. Sem dúvida, era um blogger especial.

 

Até ao dia em que...

 

Em que o quê? 

 

Cansou-se? 

 

Não foi isso: até ao dia em que teve um acidente na estrada, o outro não se deu por culpado, e decidiu publicar tudo no blog e chamar nomes ao outro e explicar como o outro era uma besta que se atrevera a pôr-se à frente dum blogger de sucesso, com 5000 seguidores no Facebook, trinta comentadores residentes, vários ódios de estimação e um webdesigner a manter o blog. Onde é que já se viu? A verve era tremenda. O blogue tremia de desprezo e indignação pelo atrevimento desse fedenho mal amanhado que não era ninguém neste mundo. As claques gritavam como num estádio. O pobre diabo que se atreveu a fazer não se sabia bem o quê nesse acesso ao IC19 era o bobo da festa e não sabia. 

 

Até que soube, porque o sobrinho era leitor do blog e avisou o tio. Que escreveu uma carta simples, a pedir desculpa, e a solicitar em poucas palavras para que o blogger da moda acabasse com a campanha de ódio, que estava a incomodar a filha de dez anos.

 

O blogger sorriu, sobranceiro. 

 

Mas sentiu um frio, qualquer coisa estranha na espinha. Perdeu nesse dia o seu pequeno poder de blogger e foi de férias uns tempos. 

 

Quando voltou, tinha ainda os 5000 seguidores no Facebook, mas tudo aquilo era uma brincadeira distante, como um jogo muito intenso e viciante que nos envolve durante umas horas até se desligar o computador uns minutos — momento em que vemos o nosso reflexo pálido no ecrã do computador e percebemos que nada daquilo é real. 

 

O problema é o dia em que vemos também a imagem duma miúda de 10 anos a ler mensagens de ódio contra o pai que se tinha esquecido de fazer pisca.

 

Mas nada disto é real, pois não?

publicado às 00:52


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