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Ora, vamos lá ver uma coisa: somos um país de emigrantes, e sempre fomos, pelo menos se considerarmos "sempre" uma palavra que abarca as últimas cinco décadas. Mas há diferenças, não só entre as gerações de emigrantes, como também entre as famílias que emigram e os interesses das famílias que emigram e as maluqueiras das famílias que emigram.

Pois se tive primos e tios que foram para as franças e canadás desta vida há uns quarenta anos, tenho agora um irmão que foi para as inglaterras de agora há uns cinco anos. O que se passa agora é que o pobre do emigrante nem sempre se consegue escapar a que às duas por três apareça a família toda à porta. Os meus pais já chegaram a fazer surpresa ao meu irmão, aparecendo por lá sem dizer nada. Isto já não é mesmo como antigamente.

Ora, numa dessas viagens em família a visitar o emigra privado cá de casa e sua esposa (já agora, um dia pode ser que conte a forma estranha como se casaram; fica para depois) — dizia, numa dessas viagens, que já foram muitas, fomos de carrinha de nove lugares por essa Europa acima, para os visitar em Cambridge e para, depois, irmos com eles a Paris. Há coisas piores na vida do que viagens destas — embora a gente duvide um pouco quando, já cansados, depois duma longa viagem até à fronteira entre Espanha e França, ali mesmo no meio do País Basco, aparece uma placa a dizer "Paris - 800 km", e sabemos que depois de Paris ainda temos muito até Cambridge, incluindo um canal inteiro da Mancha. O entusiasmo da viagem, nesse momento, é um aperto e um aconchegar do rabo ao banco, que isto ainda vai demorar. Muitos livros, muitos livros, e muito olhar pela paisagem fora.

 

Fonte: Google Maps

Adiante, portanto, que se faz tarde.

 

Fomos a Cambridge, lá estivemos algum tempo, dei as minhas voltas pelas livrarias da cidade (ah, bliss) e, sabendo que ia a Paris, chamou-me a atenção este livrinho, sujo autor não conhecia, mas que me aparecia recomendando com grande destaque na Waterstone's lá do sítio. Pego nele e compro.

 

Parisians, de Graham Robb. Garanto-vos que o livro é muito melhor do que possam imaginar antes de o ter lido. Garanto que vale a pena, mesmo para quem não gosta de livros sobre cidades e mesmo para quem não gosta de Paris.

 



Ainda antes de chegar a casa do meu irmão, estava agarrado ao raio do livro. Continuei agarrado enquanto púnhamos as malas no carro, continuei agarrado enquanto íamos pelas estradas inglesas fora e só não terminei o livro ainda antes de chegar à Mancha porque entretanto fez-se noite.

Foi nessa viagem de Cambridge para Paris que ficámos cinco horas à espera de lugar nos comboios do túnel da Mancha. Não nos lembrámos que, nas férias da Páscoa os ingleses invadem o Continente, e lá ficámos entretidos na carrinha, a amassar o tempo até podermos entrar no comboio.

 

Pois, com o atraso, só chegámos a França aí por volta das quatro da manhã e acertámos a chegada a Paris mesmo com a hora de ponta, com o sono a escorrer-nos nos olhos, o que me custou especialmente a mim, que me calhou a sorte de atravessar Paris a conduzir até chegar ao hotel marcado no dia anterior, que, digamos, não era exactamente no centro de Paris, mas numa estação de serviço numa auto-estrada lá por perto; é o que dá marcar coisas à última hora (quem conhecer as estações de serviço francesas há-de saber que a coisa não é tão escabrosa como possa parecer; poucos hotéis haverá em Portugal tão bem integrados num jardim maravilhoso como aquele hotelito de estação de serviço).

Portanto, lá fomos nós passear por Paris, e eu com o livro. Fomos encontrar-nos com um amigo do meu irmão para jantar em Montmartre, num restaurante de comida típica do sul de França, onde comi a melhor salada da minha vida, e eu com o livro (que tentei não sujar de salada). Subimos a Montmartre, e livro na mão — e vi-me a intercalar a leitura desta "comédia humana" parisiense com as vistas da própria cidade, ao entardecer. 

Vista de Paris de Montmartre, Vincent van Gogh

Passeámos por Paris, de noite, de dia, por metro, durante uns dois dias inesquecíveis. E foram inesquecíveis também porque fomos à Eurodisney e eu tinha aquele livro na mão...

 

Ora bem. Eu sei que o Louvre e tudo o resto é um milhão de vezes mais significativo do que a Eurodisney. Mas isto merece ser contado. Como vos disse anteriormente, tínhamos ido a Paris quando eu tinha 16 anos. Fomos, também nessa altura, à Eurodisney. Foi um espanto. Fiquei maravilhado com aquilo. Mas entre 1996 e 2011 muita coisa aconteceu, incluindo a passagem dum século e metade da minha vida até então (em 1996, nunca tinha ido à Fnac; não sabia para que faculdade iria estudar; pensava que ia estudar história, quando terminei noutras lides; o bairro onde vivo não existia; etc.). E, o que na altura foi um espanto, algo que nunca víramos, era agora uma série de filas intermináveis (férias da Páscoa, meus senhores!) para ver uma espécie de carrinhos de choque da Disney ou algo do género. Por exemplo, em 1996, achei os Piratas das Caraíbas uma coisa do outro mundo. Parecia mesmo que estávamos nas Caraíbas, à noite, quando lá fora ainda era dia. Agora, achei a coisa fraquinha, principalmente depois de passar duas horas numa bicha. Outro exemplo: a Casa Assombrada fez-me medo em 1996 e fez-me rir em 2011. Estão a ver a ideia...

 

Mas pronto, deu para estarmos todos, a falar como qualquer português, a discutir como qualquer família em viagem, e a ler, como qualquer família com um bibliólico no seu seio.

E, claro, no meio de milhares e milhares de turistas em filas absurdas, fui lendo o livro inglês sobre Paris, uma coisa magnífica como nunca pensei encontrar num livro sobre uma cidade. 

Começa com um jovem que descobre algumas verdades sobre a vida no Palais-Royal, às mãos duma prostituta, que nunca adivinharia que estava a mostrar o mundo ao futuro imperador dos franceses. Continua com a história da rua que se afundou nas profundezas de Paris e do homem que salvou a cidade de implodir. Há rainhas perdidas pelas ruas em tempos de revolução, pedras da calçada que são parte da história, as primeiras fotografias da cidade, que nos transportam para um amanhecer do século XIX, grandes engarrafamentos de dois ou três carros num boulevard, e muito mais. Temos Marcel Proust no o metro, Sarkozy nos subúrbios, de Gaulle a escapar a assassinos, o TGV e muito mais que não cabe num resumo perdido num humilde blog de livros em Portugal — é um livro de história, ou de viagens, ou sobre pessoas, um livro de "não ficção" que usa todos os recursos da ficção, para nos prender a uma cidade sem percebermos bem como. 

Este livro surpreendeu-me e deixou-me apaixonado por uma Paris que encontrei numa livraria de Cambridge, lida em inglês. Isto das purezas culturo-linguísticas nunca foi para mim... 

Portanto, em comparação à viagem de há quase vinte anos, nesta outra viagem, Paris teve outro sabor, não só porque tinham passado tantos anos, mas porque nós éramos outras pessoas, e, no meu caso, porque tinha aquele livro na mão — e também, já agora, porque levava a minha mulher comigo, e Paris em casal (mesmo com a família em redor) é muito diferente do que Paris vista por um adolescente solitário (mesmo com a família em redor). Ou seja, nesta Eurodisney do século XXI, já com sabor de coisa velha, enquanto famílias e famílias continuavam parados numa fila interminável, eu passeava por Paris, entre várias épocas, visitando Paris como nunca o poderia fazer passeando pelas próprias ruas. 


Meus amigos que dizem que gostam mais de viver do que de ler — vejam lá se compreendem isto duma vez por todas: quem anda sempre com um livro atrás vive mais, porque preenche esses vazios que encontramos todos os dias com mais vida, mais ruas, mais histórias, mais pessoas. Não sei se os livros nos fazem viver melhor; mas fazem-nos, certamente, viver mais.


O meu irmão e a minha cunhada voltaram para Cambridge e nós seguimos para sul. Esse foi o momento mais complicado. Muitas pessoas choram essas separações regulares nos aeroportos. Nesse dia, foi num bairro indistinto das franjas de Paris, perto do metro (o metro mais perto do hotel), onde os deixámos, para seguirem até à estação de comboio e partir para Inglaterra. Talvez aquela rua nunca tenha visto uma cena dessas: uma família portuguesa a despedir-se num "até à próxima" que cada vez mais portugueses sabem quanto custa. Mas, pronto, Paris sempre foi muito portuguesa e também sempre foi um pouco da nossa família. Limpas as lágrimas, lá seguimos, para os nossos respectivos países, uma família portuguesa, com certeza.

publicado às 13:41


1 comentário

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De clara a 28.04.2014 às 22:16

Adorei!! Recordar a viagem, recordar o que se sente nas viagens em família, recordar o que sentimos naquela viagem...
É de facto apaixonante "ler-te", sentir o que sentes e o modo como transmites esse sentir ...
Obrigada por tudo o que também me fizeste sentir ao ler isto.

E concordo, vive mais, quem lê! :)

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